quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Classes fundamentais e classes de transição


Resumo: O presente estudo tem como finalidade investigar os fundamentos históricos das classes sociais e as linhas gerais de sua atual configuração na sociedade burguesa. Para isso, recorre-se à última grande obra do filósofo húngaro G. Lukács, que desenvolve a ontologia marxiana do ser social explicitando as categorias mais universais do processo de humanização e desumanização. A ontologia dialética de Marx, que supera as antinomias do método metafísico, possibilita entender a relação de pares como essência-fenômeno e captar, de maneira mais precisa, os aspectos da universalidade, particularidade e singularidade das categorias. Deste modo, as classes sociais e suas atividades se mostram em suas identidades históricas revelando o que está em continuidade e o que está em descontinuidade. E, nesse sentido, o desenvolvimento da sociedade de classes indica uma dinâmica histórica distinta para as classes fundamentais e para as classes de transição.
Palavras-chave: Lukács, classes sociais, sociedade capitalista, ontologia dialética, trabalho, trabalho abstrato

Abstract: This study aims to investigate the historical foundations of social classes and the general trends of their current configuration in bourgeois society. For this, it is used the Hungarian philosopher G. Lukács’s last great study, in which he develops the Marxian ontology of the social being, explaining the most universal categories of the process of humanization and dehumanization. Marx's dialectical ontology, which overcomes the antinomies of the metaphysical method, makes it possible to understand the relation of pairs as essence-phenomena, and to grasp, more precisely, the aspects of the universality, particularity, and uniqueness of categories. In this way, social classes and their activities are shown in their historical identities revealing what is continuity and what is in discontinuity. And, in this sense, the development of class society indicates a distinct historical dynamic for the fundamental classes and for the transition classes.

Keywords: Lukács, social classes, capitalist society, dialectical ontology, work, labour.
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AYRES, Paulo. Classes fundamentais e classes de transição: Lukács e os fundamentos histórico-ontológicos das classes sociais. Universidade Estadual de Maringá (UEM). Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Filosofia. Programa de Pós-graduação em Filosofia (Dissertação de Mestrado). Maringá, 2018.
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quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Sobre o social-liberalismo, a Old Left

A velha esquerda e a razão

O novo irracionalismo se considera crítico e denuncia um status quo visto como hostil à vida. A partir de uma certa leitura de Foucault, Deleuze e Lyotard, e sob a influência de um neonietzscheanismo que vê relações de poder em toda parte, ele considera a razão o principal agente da repressão, e não o órgão da liberdade, como afirmava a velha esquerda. 


Sérgio Paulo Rouanet, As razões do iluminismo
São Paulo: Companhia de Letras, 1987, p. 11-12.

O liberalismo rousseauniano

A obra de Rousseau, que pode ser considerada como representante da ala esquerda da pequena burguesia francesa na época da Ilustração, demonstra nitidamente o caráter progressista e ao mesmo tempo ambíguo do pensamento burguês. Rousseau criticou duramente o feudalismo e o despotismo, defendeu a democracia liberal e a igualdade jurídica entre os homens. "O Rousseau revoltado e anarquizante das primeiras obras volta-se totalmente para o mito da sociedade primitiva, perfeita e feliz. Sabe-se, por exemplo, que, no Discurso sobre as ciências e as artes (1750), ele foi a ponto de denunciar as desvantagens das ciências e das técnicas, das artes e do progresso em geral." Depois, afasta-se da ideia de uma comunidade de bens e transforma-se num reformista, propondo um novo "estado de sociedade" capaz de reencontrar a felicidade perdida. No Contrato social, Rousseau é um republicano que defende uma sociedade de artesãos e pequenos camponeses. Nesse período, ele já afirma que o "contrato social" é um recurso analítico e que o "estado selvagem" é uma suposição abstrata, não obstante continue raciocinando nos termos desse contrato. "Suponho aos homens — diz Rousseau — terem chegado a um ponto em que os obstáculos que atentam à sua conservação no estado natural excedem, pela sua resistência, as forças que cada indivíduo pode empregar para manter-se nesse estado. Então este estado primitivo não pode subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse seu modo de ser". O pensamento burguês partia dessa abstração, seja considerando essa situação verossímil ou apenas como ponto de partida teórico-analítico. De qualquer modo, a sociedade era percebida como uma soma de indivíduos, e estes como depositários de uma essência humana plenamente determinada. Rousseau não foi o primeiro, mas sua evolução sintetiza o impasse do pensamento burguês e de seus possíveis desdobramentos.
Adelmo Genro Filho, "Ecologismo e marxismo: dois pesos e duas medidas".
In: Marxismo, filosofia profana. Porto Alegre: Tchê, 1986, pp. 49-80.

A categoria da gradualidade no hegelianismo

Em polêmica contra Hegel, que salienta a necessidade de que a mudança político-constituicional ocorra de modo lento e gradual, Marx observa que "a categoria da transição gradual, em primeiro lugar, é historicamente falsa e, em segundo, não explica nada". O jovem Marx, portanto, não tem dúvidas sobre o fato de que Hegel se coloca em posições gradualistas e reformistas, mas esse é apenas um aspecto do problema; o outro consiste no fato de que a crítica a tais posições é conduzida com argumentações e categorias que não apenas pressupõem a lição de Hegel, mas que parecem ser literalmente extraídas do seu texto. Na Enciclopédia podemos ler: "A mudança gradual é o último refúgio superficial para poder atribuir tranquilidade e duração às coisas" (par. 258 Z). Se a Filosofia do direito é dominada, pelo menos no momento em que expõe um concreto programa político para a Alemanha, pela categoria da gradualidade, provocando com isso o protesto e a crítica de Marx, a Lógica é dominada pela categoria de salto qualitativo e, portanto, suscita, a tal propósito, o consenso e o entusiasmo de Lenin.

É claro: estamos na presença de dois planos diversos, que Engels procurou identificar e distinguir como "método" e "sistema". Como tivemos oportunidade de ver no primeiro capítulo do presente trabalho, a duplicidade de planos é de algum modo percebida também pelos críticos reacionários. Naturalmente, tal distinção não identifica dois planos nitidamente separados, mas ela mesmo tem caráter metodológico. Podemos dizer que o "método" reflete a experiência histórica da Revolução Francesa e das grandes perturbações da época, e reflete ainda as exigências profundas da luta teórica contra a ideologia da reação e da conservação; o "sistema" remete a escolhas políticas imediatas. Pode-se dar um exemplo. A celebração da categoria da gradualidade, antes de se tornar uma palavra de ordem do moderantismo liberal, é uma palavra de ordem dos ambientes conservadores e reacionários; na Prússia, os porta-vozes dos Junker se contrapõem em nome da "sábia gradualidade" às reformas, consideradas arrojadas, que desmantelam o edifício feudal prussiano depois da derrota de Jena.

Domenico Losurdo, Hegel, Marx e a tradição liberal: liberdade, igualdade, estado.
Trad. C. A. F. Nicola Dastoli.
São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 196-197.

A comunicativa conciliação de classes em Habermas

A importância de J. Habermas para o debate teórico nos últimos anos do século XX~não deve ser subestimada. Por duas razões fundamentais. A primeira porque, ao se manter no campo do racionalismo em um momento em que a maré montante do pós-modernismo se fez sentir com mais força, Habermas se credenciou para uma sobrevida que se estenderá para muito além da crise das formas mais bárbaras que a ideologia conservadora assumiu nas últimas décadas. A derrocada do pós-modernismo que hoje assistimos certamente deixará intacta a influência de seu pensamento.

A segunda porque a Teoria do agir comunicativo é o primeiro constructo filosófico, depois de Marx, capaz de fornecer uma concepção articulada de toda a reprodução da sociabilidade contemporânea. E capaz de o fazer — e daqui deriva seu enorme potencial ideológico do ponto de vista o mais conservador — a partir de uma categoria, o mundo da vida, que se propõe como substituta do trabalho enquanto fundante do mundo dos homens. Ao elaborar a Teoria do agir comunicativo, Habermas se converteu no autêntico filósofo da burguesia nesta época de crise, pois forneceu as bases para uma concepção de mundo em tudo compatível com o mercado e com as relações político-democráticas do capitalismo desenvolvido.

Sérgio Lessa, Mundo dos homens: trabalho e ser social.
São Paulo, Boitempo, 2002, p. 205.

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sábado, 8 de setembro de 2018

ARTE REALISTA| Despirocar


Despirocar
Alexandre Kumpinski / Ian Ramil

Faz tempo eu tô com azia, durmo mal, tenho alergia
Quando acordo, nem bom dia, e a ducha fria ainda me dói
Em atraso permanente, escolho a roupa, escovo os dentes
Abro a porta da frente e a luz do dia me corrói

Então eu me pergunto, quando sobra algum segundo
Em que eu reflito sobre o mundo, se funciona e coisa e tal
Concluo que tá preta a situação, pra lá de azeda
O leite que 'inda sai da teta nem sequer é integral

Desesperado eu penso em gargalhar
Mas decido respeitar a minha dor
Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez, de vez
Talvez, de vez

No bus eu subo afoito, engolindo algum biscoito
Acotovelo logo uns oito, eu tô cansado e vô sentar
Depois do chacoalhaço, tô no trampo e um palhaço
Mesmo me vendo um bagaço, já começa a me ordenhar

Digito, atendo o fone, meio dia eu sinto fome
Me levanto sem meu nome e vou pra fila do buffet
Depois de dois cigarros, acomodo o meu pigarro
Me reponho de bom grado e termino o afazer

Desesperado eu penso em gargalhar
Mas decido respeitar a minha dor
Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez, de vez
Talvez, de vez

Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez seja melhor
Despirocar de vez
Talvez, talvez


Cansado eu chego em casa, o Willian Bonner me afaga
Me contando alguma fábula de algo que ocorreu
Requento qualquer rango, cambaleio até o meu canto
'Inda nem fechei o tampo e o meu corpo adormeceu
Desesperado eu penso em gargalhar
Mas decido respeitar a minha dor

Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez, de vez
De vez, talvez

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Antes que tu conte outra (BRA, 2013) - Apanhador Só.
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quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O silêncio agnóstico de Wittgenstein


por György Lukács

Em nossas considerações até aqui, o problema da ontologia ficou deliberadamente limitado à estrutura interna da ciência, a sua manifesta relação gnosiológica com a realidade, ao significado gnosiológico dos problemas ontológicos na apreensão de fatos concretos etc. Mas é claro que com isso o papel das interrogações e das respostas ontológicas na vida humana não está ainda suficientemente esboçado. Pois, como veremos na segunda parte, ao tratar do trabalho, a correta relação do homem com a realidade existente em si, que transcende a consciência, de fato é o problema central da vida cotidiana, da práxis cotidiana. Pode-se mesmo afirmar, legitimamente, que a atitude científica da humanidade tem sua origem geneticamente vinculada a essa necessidade elementar. Porém, mesmo com essa gênese a questão nem de longe está esgotada. Em sua essência mais íntima, todo o âmbito da atividade do ser humano é determinado pela realidade existente em si, ou seja, pelo seu espelhamento na consciência predominante em cada época: essas concepções atuam sobre os diversos conteúdos e formas da práxis humana. Esse complexo só pode receber um tratamento adequado e aprofundado no âmbito das ciências sociais concretas, nas análises concretas da práxis humana, incluída a ética. Por isso, aqui é possível apenas fornecer um esboço indicativo, sumário, dos fatos mais fundamentais. Apesar disso, tal esboço é indispensável porque o predomínio mundial do neopositivismo, que emerge de maneira gradual, justamente por sua postura de neutra recusa a toda ontologia tornou-se um fator decisivo na formação das modernas concepções de mundo, tanto no sentido da teoria pura como no da práxis a ela intimamente vinculada, na acepção mais ampla da palavra práxis. Já conhecemos a atitude universalmente dominante dos neopositivistas: trata-se do benevolente desprezo do manager, enfim completamente adulto e amadurecido, pelas ilusões infantis-românticas daqueles que, não encontrando realização e satisfação no perfeito funcionamento de um mundo inteiramente manipulado, perseguem sonhos originados nos estágios primitivos, há muito ultrapassados, do desenvolvimento da humanidade.

Todo conhecedor do desenvolvimento da filosofia moderna sabe, porém, que desse modo a análise realizada não abrangeu a totalidade do pensamento burguês socialmente significativo. Em paralelo com a marcha triunfal do positivismo aparecem continuamente filosofias que, embora posicionadas, do ponto de vista gnosiológico, em terreno totalmente ou bastante semelhante, consideram que se devem discutir os problemas “históricos” e “tradicionais” da filosofia e encontrar soluções para eles em conformidade com a nova época. Do ponto de vista da atitude social, isso significa que esses pensadores reconhecem o irresistível avanço da manipulação no capitalismo contemporâneo como inelutável, como “destino”, mas procuram ostentar uma resistência espiritual às suas consequências ideológicas espontâneas, imediatas. A grande influência desses pensadores mostra que exprimiram e exprimem uma necessidade social efetivamente existente. Também nesse particular não podemos ter a intenção de discutira fundo, in extenso, esse movimento de protesto. Remetemos somente a Nietzsche, na segunda metade do século passado, e a Bergson, na virada do século. Que a teoria do conhecimento de Nietzsche estava muito próxima do positivismo, já o havia reconhecido Vaihinger, certamente uma competente testemunha, posto que ele – ao tempo da redação da Filosofia do como se – foi um dos primeiros a tentar reinterpretar Kant em conformidade com um positivismo coerente. Nesse contexto, considerava, junto com Forberg e Lange, Nietzsche como um companheiro de jornada, e com toda razão não o perturbava o fato de Nietzsche ter construído sobre sua teoria do conhecimento positivista uma metafísica (sem aspas) romanticamente aventureira, que de certa maneira tinha sua parte crucial no “eterno retorno”. A relação íntima da teoria do conhecimento bergsoniana com o pragmatismo é por demais conhecida para que seja necessário analisá-la mais de perto. E a lista de tais figuras intermediárias poderia ser estendida à vontade.

Porém, aqui nos interessa mais o presente do que a sua pré-história. Sobre o polo “rebelde”, da moda, oposto à autossuficiência do neopositivismo, ao conformismo neopositivista diante da generalização da manipulação, justamente agora em pleno florescimento, sobre o existencialismo, enfim, falaremos em breve. Entretanto, parece-nos instrutivo, por exemplo, constatar não somente a profunda influência de Carnap e Heidegger, como extremos opostos, sobre o pensamento moderno, mas, sobretudo, o fato de serem os extremos de correntes que socialmente provêm da mesma origem, razão pela qual têm muito em comum em seus fundamentos teóricos e se completam em tal polaridade. Por isso, parece-nos necessário, antes de passar ao exame do existencialismo, aludir brevemente a um neopositivista que esteve de acordo com os neopositivistas em todas as questões gnosiológicas fundamentais do neopositivismo, que muito contribuiu para fundamentar e aperfeiçoar suas aspirações e influiu essencialmente no desenvolvimento da doutrina, mas que, por permanecer filósofo, e não simplesmente um manager da vida intelectual, vivenciou como problemas os tradicionais problemas da filosofia, e mesmo se – conforme a boa ortodoxia neopositivista – os tenha expulsado do reino da filosofia científica, sentiu-os como autênticos problemas, como um conflito interior: pensamos em Wittgenstein.

Não é preciso mostrar detalhadamente que as concepções de seu Tractatus (consideraremos aqui apenas essa, que é a mais famosa e influente obra de Wittgenstein) estão muito próximas das concepções da escola neopositivista. Também repudia toda problemática ontológica como metafísica, como absurda. Ele afirma:
A maioria das proposições e questões escritas sobre temas filosóficos não é falsa, mas um contrassenso. Por isso, não podemos de modo algum responder a questões dessa espécie, mas apenas estabelecer seu caráter de contrassenso. A maioria das questões e proposições dos filósofos decorre de não entendermos a lógica de nossa linguagem. [...] E não é de admirar que os problemas mais profundos de fato não sejam problemas.[1]
O conteúdo dessa formulação está plenamente de acordo com a doutrina geral do neopositivismo, tem meramente outra entonação. Não somente evoca a sensação de que os problemas desterrados da filosofia científica permanecem, a despeito de tais decretos,como problemas humanos autênticos, mas deixa entrever igualmente um estranho dilema na postura interior em relação ao mundo sem ontologia, sem realidade, da perspectiva neopositivista. Wittgenstein refuta também o nexo causal como superstição[2]. Por essa razão, considera coerentemente um mito, no sentido dos velhos mitos, uma moderna visão de mundo fundada sobre as ciências naturais, na medida em que pretenda ser visão de mundo.
Toda moderna visão de mundo baseia-se na ilusão de que as chamadas leis naturais sejam as explicações dos fenômenos naturais. Portanto, ficam diante das leis naturais como diante de algo inatingível, como os antigos diante de Deus e do Destino. E uns e outros estão certos e estão errados. Os antigos certamente são mais claros, na medida em que reconhecem um fechamento evidente, ao passo que no novo sistema deve parecer que está tudo explicado.[3]
Porém, é notável e interessante que em Wittgenstein o rigoroso logicismo incline-se às vezes para uma ontologia irracionalista. Assim, ele contesta – em total conformidade com a rigorosa semântica neopositivista – que a marca das proposições lógicas seja a generalidade e explica essa sua tese afirmando que uma proposição não generalizada pode ser tão tautológica, isto é, uma proposição da lógica, quanto uma proposição generalizada. Nesse contexto, porém, esta notável sentença é introduzida: “Ser geral quer dizer apenas: valer casualmente para todas as coisas”[4]. O que significa, aqui, “casualmente”? Ainda que a expressão fosse interpretada num sentido puramente semântico, conduziria de todo modo a consequências irracionalistas, posto que, também em Wittgenstein, o logicismo matemático tem a função de produzir, entre as proposições singulares, sequências homogêneas da redutibilidade de uma à outra, por conseguinte, de criar – pelo menos no plano da manipulação das proposições – séries de deduções logicamente conexas que excluem toda casualidade. A validade casual da generalidade para os objetos dos quais ela é a generalização transformaria num absurdo todas essas conexões, porque a pura casualidade não é redutível nem traduzível. Mas como dificilmente se poderia esperar de um lógico extremamente talentoso como Wittgenstein uma inconsequência metodológica dessa espécie, parece-nos que essa frase deve ser atribuída a uma involuntária derrapagem de Wittgenstein no ontológico, ao ser surpreendido pelo brilho intenso de uma profunda discrepância ontológica entre sua própria lógica matemática e a realidade subitamente tornada consciente.

Naturalmente trata-se de um episódio isolado, mas curiosamente não é o único. De fato, a observação franca e sincera sobre o solipsismo tem um caráter semelhante.Wittgenstein diz:
O que o solipsismo pensa é inteiramente correto, só que não pode ser dito, mas se mostra. – Que o mundo é meu mundo mostra-se no fato de que os limites da linguagem (da linguagem que só eu compreendo) significam os limites do meu mundo. – O mundo e a vida são um. – Eu sou meu mundo. (O microcosmo.) [...] O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo.[5]
Trata-se de muito mais do que a mera revelação de segredos escolares à la Heine. Mais uma vez, é uma súbita compreensão da realidade, o abismo da realidade repentinamente se escancara diante do neopositivista, e novamente ele renega, de maneira irracionalista,o sagrado dogma da neutralidade da esfera da manipulação no que se refere à subjetividade e à objetividade. Nesse caso, a oposição entre a impossibilidade de dizer – o neopositivista pode dizer tudo que é logicamente correto – e a mera possibilidade de mostrar, essencialmente irracionalista, denuncia uma atitude diante da realidade, em última análise, análoga à revelada em nosso exemplo anterior.

A conclusão do tratado traz uma espécie de síntese desse sentimento em relação à vida. Wittgenstein exprime-se ali com cativante franqueza:
Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham sido respondidas, os problemas de nossa vida não terão sido sequer tocados. Nesse caso, é claro que não restará mais nenhuma questão, e essa é precisamente a resposta. Percebe-se a solução do problema da vida no desaparecimento desse problema. (Não é por essa razão que as pessoas, para as quais, após longas dúvidas, o sentido da vida se tornou claro, não puderam dizer em que consiste esse sentido?) Há, entretanto, o inefável, ele se mostra, é o místico.[6] 
E é importante que esse raciocínio tenha sido precedido pelo aforisma: “O místico não é como o mundo é, mas que ele é”. Sob esse aspecto, e não do ponto de vista de um positivismo consistente, que o Tractatus conclui com máxima coerência: “Do que não se pode falar, deve-se silenciar”[7]. No entanto, quando a resposta de um filósofo ao que são os problemas da vida consiste na prescrição do silêncio, que outro significado pode haver nisso senão a confissão da falência dessa própria filosofia? Falência naturalmente não do ponto de vista do puro neopositivismo, que floresce, prospera e está conformado e feliz nessa situação, mas do ponto de vista da filosofia tal como sempre foi entendida pela humanidade desde seu despertar para a consciência e para a autoconsciência. Wittgenstein se refugia das consequências de sua própria filosofia no irracionalismo, só que é demasiado inteligente e filosoficamente lúcido para querer fazer desse abalo ontológico uma filosofia irracionalista própria. Ele se mantém fiel à sua causa, ao neopositivismo, e, diante do abismo, diante do beco sem saída de seu próprio pensamento, recolhe-se a um silêncio orgulhoso e recatado. Nesse silêncio, entretanto, ressoa um profundo não conformismo: do ponto de vista da vida, dos genuínos problemas da vida, a universalidade da manipulação é declarada nula, anti-humana e degradante para o pensamento humano autêntico. O comportamento de Wittgenstein é – naturalmente, sob o aspecto puramente intelectual – contraditório até a insustentabilidade. Justamente por isso, no entanto, expressa – por assim dizer, com um gesto filosófico – algo extremamente importante e contraditório para a presente situação social: o pensamento (e, sobretudo, o sentimento) daqueles que não vislumbram saída da manipulação geral da vida pelo capitalismo atual, mas que são capazes de contrapor-lhe apenas um protesto antecipadamente impotente – o silêncio de Wittgenstein.

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Notas:
[1] Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus (Londres, 1955), p. 62.
[2] Ibidem, p. 108.
[3] Ibidem, p. 180.
[4] Ibidem, p. 162.
[5] Ibidem, p. 150.
[6] Ibidem, p. 186.
[7] Ibidem, p. 188.
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LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 74-79.
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