quarta-feira, 23 de maio de 2018

O pensamento fetichizado e a realidade



por György Lukács

O que há, então, de novo na filosofia do período imperialista? No seu conjunto, essa filosofia é o reflexo, no plano do pensamento, do imperialismo mesmo, isto é, do estágio supremo do capitalismo, que é também o mais rico em contradições. As contradições próprias à sociedade  capitalista, que determinam a evolução, a forma e o conteúdo da filosofia burguesa, aparecem no imperialismo sob uma forma objetiva levada ao extremo. É, entretanto, de interesse vital para a burguesia não reconhecer esse caráter fundamentalmente contraditório de seu pensamento. Dito de outra forma, quanto mais essas contradições são profundas e irreconciliáveis, tanto mais nítida é a ruptura — a causa mesma da crise da filosofia — entre o pensamento filosófico burguês e a evolução da realidade social. Mas o problema não consiste somente em uma contradição entre o pensamento burguês e a realidade social do imperialismo, pois acrescenta-se ainda uma outra contradição: a que subsiste entre a evolução efetiva e a superfície diretamente perceptível dessa realidade social. É essa contradição que explica que certos pensadores, que são, no entanto, de boa fé, nos deem uma representação completamente falseada da realidade social, simplesmente porque limitam ao exame dessa superfície diretamente perceptível.

Essa contradição constitui naturalmente um problemas constante para o pensamento burguês. Na sociedade capitalista, o fetichismo é inerente a todas as manifestações ideológicas. Isto quer dizer, sumariamente, que as relações humanas, que se mantêm na maior parte das casos, por intermédio de objetos, aparecem, para esses observadores enganados pela miragem superficial da realidade social, como coisas; as relações entre os seres humanos aparecem, portanto, sob o aspecto de uma coisa, de um fetiche. É o elemento fundamental da produção capitalista, a mercadoria que fornece o exemplo mais claro dessa alienação. Tanto quanto por sua produção como por sua circulação, a mercadoria é, com efeito, o agente mediador de relações humanas concretas (capitalista-operário, vendedor-comprador etc.), e é necessário o funcionamento de condições sociais e econômicas — isto é, de relações humanas — muito concretas e muito precisas para que o produto do trabalho do homem se torne mercadoria. Ora, a sociedade capitalista mascara essas relações humanas e as torna indecifráveis; dissimula cada vez mais o fato de que o caráter de mercadoria do produto do trabalho humano é apenas a expressão de certas relações entre os homens. Assim, as qualidades de mercadoria do produto (seu preço, por exemplo) dele se destacam e se tornam qualidade objetivas, como o gosto da maçã ou a cor da rosa. O mesmo processo de alienação ocorre no caso do dinheiro, no do capital e no de todas as categorias da economia capitalista: as relações humanas tomam o aspecto de coisas, de qualidade objetivas dos objetos. Quanto mais uma dessas categorias está distanciada da produção material efetiva, mais o fetiche está vazio, desprovido de todo o conteúdo humano. É evidente que, para o pensamento burguês, seu efeito de fetiche é apenas o mais profundo. Eis como a evolução do capitalismo no estágio imperialista não faz senão intensificar o fetichismo geral, pois, do fato da dominação do capital financeiro, os fenômenos a partir dos quais seria possível desvendar a reificação de todas as relações humanas, tornam-se cada vez menos acessíveis à reflexão média das pessoas.

Do ponto de vista da filosofia importa notar que esta intensificação do fetichismo exerce um efeito antidialético sobre o pensamento. Cada vez mais, a sociedade se apresenta ao pensamento burguês como um amontoado de coisas mortas e de relações entre objetos, em lugar de nele se refletir como é, ou seja, como a reprodução ininterrupta e incessantemente cambiante de relações humanas. O clima mental assim criado é muito desfavorável para o pensamento dialético. O parasitismo próprio ao estágio imperialista só intensifica essa evolução. A maior parte dos intelectuais encontra-se, com efeito, muito afastada do processo de trabalho efetivo que determina a estrutura verdadeira e as leis de evolução da sociedade; estão tão profundamente ajustados na esfera das manifestações secundárias da produção social — que consideram aliás como fundamentais — que a descoberta das relações humanas mascaradas pela alienação, torna-se para eles coisa impossível.

Em definitivo, é tão grande o abismo entre a realidade e o pensamento, que só reflete suas manifestações superficiais, que toda transformação na evolução social se apresenta para o pensamento sob o aspecto de uma ruptura inesperada e apenas pode provocar uma série contínua de crises. É evidente que, se falamos de uma crise constante da filosofia no estágio do imperialismo, é necessário distinguir várias etapas dessa crise. Até 1914, a crise da filosofia é de natureza latente; tornar-se-á evidente apenas depois de 1918.

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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979, p. 27-30.
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terça-feira, 22 de maio de 2018

A democracia como valor operário e popular: resposta a Carlos Nelson Coutinho

 
por Adelmo Genro Filho
ensaio em PDF/1979
 
Carlos Nelson Coutinho pensa grande. Esse discípulo de Lukács tem divulgado como ninguém, entre os estudiosos brasileiros, o mestre húngaro do marxismo contemporâneo. Mas não se trata apenas de um propagandista, o que já seria mérito, pois sua criativa intervenção intelectual[1] tem feito avançar nosso pensamento filosófico, nosso debate filosófico e estético. Seu combate às tendências estruturalistas e neopositivistas que vicejam nas cátedras universitárias, tanto na Europa como no Brasil, em alguns momentos tornou-o quase um solitário. E o reconhecimento da persistência na solidão das teses é o tributo mínimo que lhe devemos. Assim é o Carlos Nelson Coutinho, um pensador com “R” (de razão dialética) maiúsculo. Por tudo isso e pela merecida acolhida que teve seu artigo “A democracia como valor universal”, publicado pela Civilização Brasileira[2], aquele trabalho brilhante por seu estilo merece a forma mais elevada de respeito: a crítica.

Nosso objetivo aqui é exatamente levantar algumas questões que nos parecem problemáticas do ponto de vista política e por isso filosófico no artigo de Coutinho. Aliás, um objetivo que talvez possa parecer pretensioso para quem, buscando interferir na política, não pode considerar-se propriamente um “estudioso” na filosofia, mas apenas um curioso. Entretanto, se os mestres, em qualquer campo do saber, não são intocáveis, em política eles não existem. Daí a importância do debate constante entre os filósofos que se pretendem filiados a uma perspectiva política revolucionária e os militantes políticos que se pretendem filiados a uma revolucionária perspectiva filosófica. O que deve ser buscado é uma síntese em movimento que nada tem a ver com a alquimia, mas que possui a incrível propriedade de transformar as diversas práticas em eficácia política e a filosofia no seu horizonte adequado, e porque não dizê-lo, um horizonte humanista e revolucionário.

A resposta à Coutinho poderia ser semelhante àquela dada por Althusser a John Lewis[3], isto é, uma “rigorosa” contestação lógica aos fundamentos do humanismo marxista, mas absolutamente estéril se não aceitarmos os pressupostos “positivos” (não ontológicos) dogmaticamente estabelecidos por Althusser. No caso presente a situação é diversa, na medida em que aceitamos precisamente os pressupostos da análise de Coutinho, quais sejam, uma ontologia humanista e uma ética revolucionária sobre a plataforma teórica do marxismo. Em nome desses pressupostos, que pretendemos refutar o enfoque deste artigo, cujo equívoco tem sua síntese mais perfeita no próprio título: “A democracia como valor universal”.

Por onde começar? Pelo título, talvez, propondo através dele outra tese: “A democracia como valor operário e popular”. Não parece apropriado, pois embora o autor mesmo elimine toda e qualquer possibilidade de que as opiniões ali expressas sejam tomadas como colocações “táticas”, seja no todo ou em partes, por enquanto tudo não passa do compromisso com uma “expressão” tipicamente liberal. Ainda não existe qualquer compromisso de conteúdo.

Comecemos, então, pela parte final, quando Coutinho procura implicar sua análise com a sociedade brasileira, com as tarefas estratégicas da classe operária e das camadas populares em geral. A consequência é desastrosa, pois sua proposta política fica reduzida a mero raciocínio formal, tão combatido por ele próprio quando se trata de filosofia. Vejamos suas palavras:

Em primeiro lugar, lógica e cronologicamente trata-se de conquistar e depois consolidar um regime de liberdades fundamentais, para o que se torna necessária uma unidade com todas as forças interessadas nessa conquista e na permanência das 'regras do jogo' a serem implantadas por uma assembleia Constituinte dotada de legitimidade. E, em segundo, trata-se de construir as alianças necessárias para aprofundar a democracia no sentido de uma democracia organizada de massas, com crescente participação popular; e a busca da unidade, nesse nível, terá como meta a conquista do consenso necessário para empreender medidas de caráter antimonopolista e anti-imperialista e, numa etapa posterior, para a construção em nosso País de uma sociedade socialista fundada na democracia política.[4]

Nenhum vestígio de dialética. Em primeiro lugar, todo o povo vai lutar pela democracia formal burguesa, na qual teremos então “regras do jogo” estáveis (graças a Deus?) e segundo Coutinho também já definiu como necessário regras implantadas por uma Assembleia Constituinte. Depois, “em segundo”, a sociedade já devidamente estabilizada (?), trata-se apenas de “aprofundar a democracia”. De que maneira aprofundá-la? Ora, muito simples, construindo as alianças necessárias! Como fazê-lo? Também é simples, pois nesse momento vamos levantar um programa antimonopolista e anti-imperialista.

Há uma pergunta, no entanto, que abala o simplismo político dessa proposta: Quais forças sociais interessadas na conquista e na permanência das “regras do jogo” da democracia liberal-burguesa? Absolutamente nenhuma. A burguesia no Brasil já fez sua revolução. O bloco hegemônico aposta na abertura com uma jogada de recuo tático, aliás, uma “abertura” a seu modo. Os setores burgueses não hegemônicos que estariam jogando numa democratização um pouco mais rápida e um pouco mais ampla, de fato estão negociando sua participação no bloco do poder, pois a própria realidade lhes indica a inviabilidade histórica de um desenvolvimento capitalista autônomo no quadro das relações econômicas internacionais. Os trabalhadores e as demais classes populares igualmente não estão interessados na permanência das “regras do jogo” da democracia formal. Estas, são apenas aspectos das reivindicações potencializadas objetivamente pela estrutura econômica existente. Portanto, sequer as classes trabalhadoras apostam na permanência da democracia formal, e sim no seu aprofundamento imediato na sua negação formal, pela superação de seu conteúdo. Noutras palavras, nenhuma força social atualmente no Brasil tem interesse numa estabilidade democrático-liberal como dimensão estratégica, exceto alguns setores das classes médias e da intelectualidade. Mas estes, como se sabe, não possuem independência política nem possibilidade de hegemonia.

Portanto, as palavras-de-ordem democrático-liberais não representam um “momento” da luta política em nosso País, nem uma etapa a ser cumprida. Mas não podem ser classificadas apenas de “táticas” ou “instrumentais” por motivos diferentes daqueles indicados por Coutinho, que assume uma postura ético-metafísica ao opor “democracia” (para ele um valor universal) e “tática política” (um mero instrumento para alcançar um fim que lhe é absolutamente exterior). Na verdade, as reivindicações liberais são mais do que “meramente táticas", não porque sejam qualquer valor universal ou eterno, mas sim porque aspectos da estratégia. E esta indica efetivamente uma plataforma para a transformação qualitativa, por isso combina um programa intermediário de liberdades formais e também de participação direta, já nitidamente antiburguesa. Por isso, contrariamente ao que pensa Coutinho, a verdadeira estratégia de luta pelo socialismo é, desde agora, uma unidade popular forjada sobre um programa não só de “liberdades fundamentais” como também já antimonopolista, anti-imperialista e socializante por suas formas radicalmente democráticas de participação dos trabalhadores no poder. Então, temos que a democracia formal não é apenas uma tática, na medida que não é um meio, isto é, uma coisa para ser instrumentalizada visando a enganar alguns ou a todos. Não é tampouco um valor permanente, porque o marxismo propõe um novo conteúdo democrático, uma ruptura essencial em sua qualidade. E também a democracia burguesa não é um problema estratégico, ela compõe uma estratégia popular mais ampla e radical.

A abordagem simplista de Coutinho torna-se, na prática, reformista. Prestemos mais atenção aos rumos das lutas operárias, às discussões que começam a se ampliar entre os trabalhadores organizados, e veremos que elas já estão apontando questões mais avançadas que as liberdades formais, embora não socialistas. A unidade em torno de um programa “democrático-popular” (que já contém elementos antiburgueses pelo conteúdo da participação que propõe) não é uma questão posterior, mas um problema presente. Por outro lado, a unidade popular com setores que propõem apenas as liberdades formais, sejam burgueses ou pequeno-burgueses, esta realmente é tática. E não podemos abrir mão desse conceito, assim compreendido, sob pena de desmobilizarmos os trabalhadores por antecipação, de reduzirmos sua luta aos aspectos burgueses dessa mesma luta. Tal redução significa acreditar numa etapa puramente democrático-burguesa, em cuja plataforma estável serão colocadas propostas mais consequentes e eminentemente populares. Mas esse é um trágico equívoco. A hegemonia popular e operária precisa ser construída desde agora, e isso só é possível a partir de um programa diferenciado de discurseira liberal. Pois os aspectos liberais desse programa somente poderão ser conquistados de forma efetiva no contexto de outras conquistas maiores, ou seja, de um programa capaz de mobilizar e organizar os trabalhos a partir de seus interesses radicais.[5]

O reformismo, entre os marxistas, via de regra não é uma postura consciente, é um espaço que fica entre a análise e a realidade. Coutinho instaura esse espaço em seu artigo quando não capta a complexidade das potências que contém a sociedade brasileira. Mas a origem do erro é produto de um tipo de marxismo muito conhecido na Europa, especialmente no seu horror à categoria “revolução” quando se trata de política. O artigo de Lucio Lombardo Radice, “Um socialismo a ser inventado”[6], é uma boa síntese desse Marx reinventado. O autor aponta corretamente as novas formas que assume o Estado nos países de capitalismo maduro, seu enraizamento da sociedade civil, e a hegemonia burguesa nesse Estado como nova forma de dominação. Tal fenômeno, em nosso entender, recoloca para as classes trabalhadoras como novidades a importância que assume a luta pela hegemonia ideológica e cultural. Mas não substitui o conceito de revolução como ruptura necessária desse processo. Há uma tendência na análise de Carlos Nelson Coutinho em Radice é uma posição absolutamente explícita de substituir o conceito leninista de revolução pelo conceito de luta pela hegemonia enquanto processo contínuo.

Há um ensaio de Oskar Lange[7], no qual ele demonstra que a “Lei da pauperização relativa da classe operária” só adquire sentido se compreendida como forma de manifestação da “Lei da pauperização absoluta”. Embora esta última não se realize como “fenômeno” nos países de capitalismo avançado (ela vigora mas não ocorre), subsiste como potência, a indicar sua essência racional. A lei da pauperização absoluta é uma tendência que define a legalidade interna da exploração capitalista, mas imbricada com outras leis econômicas e com a luta de classes do proletariado não tem concorrência positiva.

Assim, a teoria leninista do Estado como “comitê executivo da burguesia” e da revolução como ruptura forjada por um contrapoder que destrói o aparelho estatal é, ainda, o cerne racional do marxismo revolucionário. O Estado, agora, possui novas formas de gerir a sociedade, pois com o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa e de suas instituições culturais e ideológicas, ele acrescentou formas de consenso à dominação. Mas sem dúvida alguma, é o comitê executivo da burguesia, pois é nisso que está cravada a raiz de sua racionalidade enquanto Estado de classe. Para Coutinho, no entanto, essa tese é uma metáfora entendida de forma muito literal:

A concepção segundo a qual a velha máquina estatal deve ser destruída para que se possa implantar a nova sociedade uma metáfora que é muitas vezes entendida em sentido demasiadamente literal quer indicar precisamente que a democracia política no socialismo pressupõe a criação (e/ou a mudança de função) de novos institutos políticos que não existem, ou existem apenas embrionariamente, na democracia liberal clássica.[8]

A burocracia soviética, que é a realização de uma possibilidade trágica do socialismo, cujo combate político deve ocorrer em nome do próprio marxismo revolucionário, tem confundido intelectuais sinceros. É o próprio Lukács quem chama nossa atenção para tais enganos:

Hoje, estamos diante de duas grandes tarefas. Em primeiro lugar, mostrar ao mundo o que é o marxismo comparado com o stalinismo. Por outro lado, a direita ocidental se esforça por provar que Stalin não fez senão desenvolver até suas últimas consequências as ideias de Lenin. Nosso dever, portanto, é mostrar a continuidade entre Marx, Engels e Lenin, provando que os três empregaram o mesmo método, ao passo que Stalin em muitos pontos importantes deste método e de sua aplicação rompeu com o marxismo (por exemplo, adotou em face dos sindicatos a mesma atitude que Trotski).[9]

A revolução burguesa já ocorreu no Brasil de forma completa, paralela mesmo ao processo de internacionalização da economia. Não podemos, portanto, limitar as tarefas da luta operária pelos critérios do liberalismo emedebista: Estado de Direito, eleições livres, liberdades sindicais e Assembleia Constituinte. É necessário, hoje, aquilo que dizia Lênin em 1905: “destacar as palavras-de-ordem democráticas de vanguarda para diferenciá-las das palavras-de-ordem de traição (...) indicar diretamente e sem rodeios as tarefas imediatas da luta verdadeiramente revolucionária do proletariado e dos camponeses, diferentes dos ardis liberais dos latifundiários e donos de fábrica”.[10] Vale lembrar que na Rússia de 1905 havia uma revolução burguesa ainda por ser feita.

Vejamos agora outra afirmação de Coutinho:

Pois se há por sua vez algo de universal nas reflexões teóricas e na prática política do que é hoje chamado de eurocomunismo, essa algo é precisamente o modo novo um modo dialeticamente novo, não de uma novidade metafisicamente concebida como ruptura absoluta de conceber essa relação entre socialismo e democracia.[11]

Não se pode acusá-lo aqui de falta de clareza. O modo novo de conceber a relação entre socialismo e democracia deixou de ser leninista ou marxista. Ao invés de privilegiar a ruptura da democracia burguesa em relação ao socialismo em função da mudança radical de seu conteúdo Coutinho privilegia a continuidade. Além disso, essa “nova” maneira de conceber a relação legítima a “democracia” enquanto democracia burguesa, e o socialismo fica sendo apenas um determinado tipo de organização econômica. Sem pôr nem tirar, é a conhecida tese da social-democracia: capitalismo e socialismo são estruturas econômicas, enquanto que democracia e ditadura são sistemas políticos. Trata-se simplesmente de unir o útil (socialismo econômico) ao agradável (democracia política, entendida na sua especificidade burguesa).

Depois de tudo isso, a síntese filosófica que propõe Coutinho torna-se um mero exercício acadêmico: “Podemos concluir esse rápido esboço afirmando que a relação da democracia socialista com a democracia liberal é uma relação de superação dialética (Aufhebung): a primeira elimina, conserva e eleva a nível superior as conquistas da segunda”[12]. A obviedade genérica aqui expressa já está irremediavelmente comprometida.

Nas páginas anteriores ele nos dava uma indicação mais precisa de seu método: “O que Lenin tinha em vista, contra o formalismo oportunista de Kautsky, não era negar a validade do substantivo democracia, mas lembrar que no plano do conteúdo concreto ele aparece sempre adjetivado”.[13] Temos então, de maneira bastante original, um substantivo (democracia) que como tal existe antes e fora de sua existência concreta. E já existindo anteriormente como alguma essência metafísica, quando desce ao plano concreto deve apenas ser adjetivado. O que Coutinho chama de democracias adjetivadas, na verdade são “substantivos” diferentes. Eis o cerne da questão. É no bojo desse equívoco que está a democracia como “valor universal”, uma essência que se adjetiva e, portanto, não deixa lugar à ruptura como transformação efetivamente revolucionária.

As abordagens políticas e filosóficas, cujo método parte da relação entre “democracia” e “socialismo”, formam o esteio das construções teórico-oportunistas, que desembocam sempre no reformismo. Se na história da arte há um grande eixo realista que privilegia a categoria da continuidade, pela especificidade do fenômeno estético, em política essa não é uma postura revolucionária. O marxismo não precisa e não deve, em nome do repúdio ao stalinismo, tomar emprestado o espelho da democracia burguesa para mirar-se nele.

As formas de poder popular na democracia socialista estão ainda em processo, em debate, em formação e experimentação, mas nem por isso deve-se abraçar o parlamento burguês e demais instituições do capitalismo como valores universais. Tal procedimento, no mínimo, é filosoficamente prematuro politicamente tímido, embora ser uma ideia apaziguante e agradável para as camadas burocráticas e intelectuais comodamente instaladas no Estado. E não se trata de ter da democracia “uma visão estreita, instrumental, puramente tática” como condena acertadamente Carlos Nelson Coutinho mesmo porque não existe democracia em geral. Trata-se de dizer, sem meias palavras, que, para as camadas populares e suas vanguardas, a meta de um sistema democrático-liberal reivindicado por alguns setores burgueses interessa taticamente. Isso porque o socialismo e o governo democrático-popular representa a transição é uma ruptura fundamental, um aprofundamento que lhe confere outra qualidade.

Indicada a ruptura como essencial, a revolução como categoria imprescindível do marxismo, só então pode-se colocar a possibilidade de que o novo Estado mantenha certas formas da democracia burguesa. Mas que não serão definidos aprioristicamente por quaisquer “valores universais” ou permanentes e sim no processo revolucionário concreto, segundo as necessidades e a criatividade das massas. Há um valor que não é liberal nem burguês que pode ser indicado a priori como fundamento fundamento da democracia socialista, como antídoto ao burocratismo: a mobilização constante da classe operária e demais camadas populares no exercício direto do poder.

Em síntese: falar de “socialismo” com “democracia política” é uma postura teórico-metodológica por demais conhecida na história das lutas operárias, que não faz avançar um centímetro sequer as questões reais do exercício de poder no socialismo. Ao contrário, elide o problema da verdadeira e original democracia operária e popular por construir. Portanto, a perspectiva da análise marxista coloca exatamente o problema da “democracia como valor operário e popular” e não como “Valor Universal”.

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Notas
[0] Apesar deste artigo de Adelmo Genro Filho estar correto na sua crítica à socialdemocratização do Coutinho tardio, é preciso lembrar que o autor, por outro lado, se assume um adepto da filosofia protomarxista. O marxismo ocidental de Genro Filho, embora tenha a influência de Lukács, rejeita a ontologia dialética da natureza. Cf. o artigo O anti-engelsismo: um compromisso contra o materialismo (1980), de Caio Navarro de Toledo. (P. A., 22/07/2022).
[1] O livro de Carlos Nelson Coutinho O estruturalismo e a miséria da razão é uma contribuição fundamental nesse sentido.
[2] 
“A democracia como valor universal”, artigo publicado na revista Encontros com Civilização Brasileira, nº 9.
[3] Posições - 1, Edições Graal.
[4] p. 45-6.
[5] Interesses
“radicais” no sentido global das potencialidades de luta da classe operária brasileira na atual estrutura internacionalizada e dependente da sociedade.
[6]
“Um socialismo a ser inventado”, artigo publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira, nº 9.
[7] Não temos em mãos a edição onde foi publicado o referido ensaio.
[8] p. 37.
[9] Conversando com Lukács, Editora Paz e Terra, p. 192-3.
[10] Duas táticas, Lênin, Editora e Livraria Livramento, p. 39.
[11] p. 34.
[12] p. 40.
[13] p. 35.
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GENRO FILHO, A. “A democracia como valor operário e popular: resposta a Carlos Nelson Coutinho”. In: SILVEIRA, Ê. et. al. Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 195-202.
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terça-feira, 8 de maio de 2018

O revisionismo de Eduard Bernstein e a negação da dialética


Resumo: Nos fins do século XIX, Eduard Bernstein causou grande espanto e turbulência no interior da social-democracia alemã ao refutar publicamente as teses oficiais propugnadas pelos líderes do partido e, ao mesmo tempo, propor a revisão crítica do pensamento de Marx, desferindo sérios ataques ao que considerava seu elemento "nefasto": a dialética hegeliana. Ao defender a rejeição da filosofia [ciência] da história marxiana - considerada obstáculo ao conhecimento científico da realidade social - Bernstein rompe com a perspectiva revolucionária, aderindo a um reformismo evolucionista. Acreditando no potencial emancipador da democracia burguesa, que tornaria possível a tomada do poder por meios legais e pacíficos, Bernstein passa a sustentar a adoção de uma postura política conciliatória e a mitigação da luta de classes. O surgimento desta corrente revisionista deu início a um grande cisma no interior da social-democracia que veio a ser considerado como "a primeira crise do marxismo", introduzindo uma nova tendência de rechaço à concepção dialética da história e de abdicação de quaisquer pretensões revolucionárias. Estas ideias viriam a tornar-se hegemônicas no final do século XX, quando as teses que apregoam o "fim da história" são amplamente difundidas e festejadas. Diante deste novo refluxo das teorias e práticas revolucionárias, torna-se fundamental a análise minuciosa do fenômeno revisionista - o contexto em que surge, as razões de seu sucesso no âmbito da esquerda e as críticas que podem lhe ser opostas.

Palavras-chave: marxismo, partidos políticos, revisionismo, social-democracia socialismo

Abstract: In the end of the nineteenth century, Eduard Bernstein caused great turbulence in the German social democracy when he publicly opposed to the official theses of the leaders of the Social Democratic Party and, at the same time, recommended a critical revision of Marx's thought, making serious attacks on what he considered its most hideous element: the Hegelian dialectics. While supporting the total rejection of the Marxian philosophy [science] of history - regarded as an obstacle to the scientific knowledge of the social reality - Bernstein breaks up with the revolutionary perspective, joining an evolutionary reformism. Relying in the emancipatory potential of the bourgeois democracy, that would make possible the achievement of power through legal and pacific means, Bernstein sustained a conciliatory political posture and the softening of the class struggle. The appearance of such revisionist tendency gave birth to a schism inside social democracy that was further known as "the first crisis of Marxism", as it excluded the dialectical conception of history and the revolutionary aim. These ideas became hegemonic at the end of the twentieth century, when theses proclaiming "the end of history" were widely spread. In face of the new reflux of the revolutionary praxis, the analysis of the revisionist phenomenon - the context in which it appears, the reason for its success and the critics opposed to it - becomes crucial.

Keywords: marxism, political parties, revisionism, social democracy, socialism
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arquivo em PDF
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ANDRADE, Joana El-Jaick. O revisionismo de Eduard Bernstein e a negação da dialética. Orientador: Ricardo Musse. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Sociologia, USP. São Paulo: 2006.
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domingo, 6 de maio de 2018

A contrarrevolução keynesiana

 
por Mike Beggs[1]

O que há no capitalismo que faz do keynesianismo um horizonte até mesmo para aqueles revolucionários potenciais que têm dificuldade com o que veem no passado?

Marx viveu tempo suficiente para se declarar “não marxista”. Keynes não teve tanta sorte. Os seus seguidores costumam fazer distinção entre “economia keynesiana” e “economia de Keynes”. De qualquer modo, daí em diante, a palavra transcendeu verdadeiramente o homem. Um nome não se torna um “ismo” apenas por causa do gênio. A sua obra tem que pegar e montar numa onda histórica; ora, muitas delas nunca foram apanhadas; porém, quando uma é pega começam logo a surgirem novas associações. O “keynesianismo” passou a se referir a gastos deficitários, regulação e estado de bem-estar social – três elementos que a Teoria geral menciona de passagem, se é que o faz.

Geoff Mann está bem ciente das distinções entre Keynes – o homem e a sua obra – e o “keynesianismo”. Mas seu livro sobre o keynesianismo, A longo prazo estaremos todos mortos, trata deliberadamente mais do “ismo” do que do homem. Para Mann, Keynes não é nem mesmo o criador do keynesianismo; ele teria sido inventado por Hegel – “se este último não foi o primeiro keynesiano, foi pelo menos a sua encarnação anterior mais próxima dele”. Assim, dedica vários capítulos sobre Hegel antes de pôr o foco no próprio Keynes. Para Mann, o keynesianismo é uma constante da modernidade; como Keynes se tornou simplesmente um de seus formuladores mais capazes, o conhecemos por meio de seu nome. Embora não seja por acaso que as grandes filosofias políticas da sociedade capitalista contenham muita Economia, o próprio Keynes aparece no livro como um filósofo político que se tornou um economista.

Segundo Mann, o keynesianismo é uma posição política que existe desde a Revolução Francesa. “Quando um indignado Robespierre perguntou à burguesa Convenção de 1792: ‘Cidadãos! Vocês querem uma revolução sem revolução?’ Os keynesianos de então eram aqueles que, na ocasião, disseram para si mesmos: sim, obviamente; isto soa muito bem.”.

O livro é dirigido aos socialistas, mas ao contrário do que muitos marxistas apreendem de Keynes, a meta não é expor o keynesianismo como contrarrevolucionário. O objetivo central é entender porque o capitalismo faz do keynesianismo um horizonte político até mesmo para revolucionários potenciais – inclusive o próprio Mann, ele mesmo admite – que têm dificuldade com o que veem no passado. Não se trata tanto de um bloqueio ideológico quanto de uma questão de estratégia.

Um filho rebelde do liberalismo

O keynesianismo, tal como o vê Mann, é distinto do liberalismo, sem deixar de ser um ramo da tradição liberal. Tal como o liberalismo, vê o capitalismo moderno como a forma mais alta de civilização. Se ainda não é uma utopia realizada, mantém o potencial para realizá-la, pois contém a tendência de aumentar continuamente a produtividade. A visão de Keynes sobre o futuro inclui a semana de trabalho de quinze horas (mencionada em Possibilidades econômicas para nossos netos) e a “eutanásia do rentista” (postulada na Teoria geral) – não por meio da guilhotina, mas por meio do sucesso da acumulação de capital. O capital se acumulará até o ponto em que deixará de ser escasso, quando então os ricos que o monopolizam deixarão também de obter dele qualquer retorno. A utopia keynesiana mantém as boas coisas do capitalismo – a “eficiência das decisões descentralizadas, assim como a responsabilidade individual” – sem as suas maldades, isto é, sem “o fracasso no provimento do pleno emprego, sem a distribuição arbitrária e desigual de riqueza e de renda”. O período em que certas pessoas obtêm renda simplesmente porque possuem riqueza é “uma fase transitória que desaparecerá quando todo o desenvolvimento já tiver acontecido”. A vinda da utopia “não ocorrerá de modo súbito, mas será alcançada apenas de maneira gradual, por meio de um prolongamento do que se tem visto recentemente na Grã-Bretanha, sem a necessidade de qualquer revolução”.

O keynesianismo, porém, afasta-se do liberalismo clássico ao não ver a sociedade liberal como natural ou autossustentável. Se permanece nos trilhos, ela se move no rumo da utopia, mas o capitalismo tende a descarrilar-se. Na Teoria geral, Keynes explora uma dimensão dessa característica – a tendência para o investimento cair abaixo do nível necessário para manter o pleno emprego. Contudo, esse é apenas um exemplo de uma temática mais ampla contida no trabalho de Keynes – e no keynesianismo de forma mais geral. A saúde do capitalismo depende de uma gestão política deliberada que vá muito além dos deveres noturnos de proteger a propriedade. Parte dela pode não ser muito invasiva – por exemplo, a administração pelo banco central da taxa de juros –, mas também pode exigir nada menos do que “uma socialização um tanto abrangente do investimento”. (Keynes era vago sobre o que ele quis dizer com isso; certamente não se tratava da tomada dos meios de produção; no mínimo, entretanto, acreditava que a quantidade de investimento em um determinado período deveria ser decidida pelos formuladores de políticas.)

O capitalismo precisa de ajuda para permanecer nos trilhos em que, de certo modo, já se encontra: ele não pode ser conduzido para qualquer lugar. O modo de gerenciamento que ele requer não depende da vontade dos gerentes; depende da estrutura da própria economia. Ele não precisa apenas de gerenciamento, mas de um gerenciamento especializado – e isso tem duas grandes implicações.

Primeiro, ele rompe com o compromisso do liberalismo clássico com o laissez-faire. O entusiasmo liberal com a escolha individual sempre foi, como afirma Mann, “restringido por uma série de qualificações ad hoc”; o keynesianismo, porém, vai além já que sustenta que a liberdade individual em geral depende de que não se torne absoluta. A política deve restringir algumas liberdades para defender a Liberdade. A livre iniciativa deixada a si mesma tende a gerar pobreza, desigualdade e desemprego. Se estes males saem do controle, há um risco real de que uma rebelião política produza algo muito pior do que a burocracia.

Em segundo lugar, há a tensão com a democracia. Os pluralistas liberais veem o sistema político democrático como uma forma de enfrentar e de gerenciar os conflitos sociais e as insatisfações que o capitalismo produz. Os interesses são canalizados para a política, ficando assim obrigados a entrar em compromissos, de tal modo que as dificuldades vão sendo assim resolvidas, uma a uma. Mas, para Keynes, não há motivos para acreditar que a representação política dos interesses possa realmente resolver os problemas subjacentes. Como os problemas econômicos são complexos e como as suas soluções são delicadas, eles exigem capacidades especializadas. Em consequência, mesmo os compromissos políticos bem balanceados podem se afastar da solução realmente exigida pelo problema em mãos. Os concorrentes – ou seja, os partidos e seus eleitores – muitas vezes entendem mal as causas das dificuldades. Keynes, diz Mann, “não era definitivamente um democrata, pois qualquer aproximação maior com a soberania popular era em sua opinião antitética aos interesses de longo prazo da civilização”.

Ele disse explicitamente que “os burgueses e os intelectuais, apesar das falhas eventuais, estão melhor qualificados na vida social; eles portam seguramente as sementes de todo avanço humano”. Em outras palavras, ele perfilava com os burgueses não por seu papel de capitalistas ou de rentistas, mas porque eram pessoas devidamente socializadas e cultas. A longo prazo, é possível ampliar a educação e os privilégios forma mais ampla, mas dar às massas agora o que pensam que querem põe em risco esse futuro.

Claramente, o keynesianismo definido dessa maneira não apenas se constitui num afastamento em relação ao liberalismo clássico, mas contribui também para um reposicionamento do liberalismo moderno. O centro político, atualmente, afasta-se das posições próximas ao liberalismo clássico – tais com a crença na estabilidade básica e na justiça do mercado – para abrigar uma gerência tecnocrática, infletida no sentido proposto por Keynes. Mann localiza as raízes desse espírito gerencial atual nas ideias macroeconômicas que se iniciaram com Keynes; nota especificamente que houve um recuo do “pleno emprego” para a “taxa natural de desemprego”: “exceto por meio de um acordo fascista ou autoritário, o capitalismo tem de ter desemprego. Deve permitir (nas palavras de Keynes) um empobrecimento consistente e consistente”.

Liberalismo ou barbarismo

Mann reserva o termo “keynesianismo” propriamente para uma postura de centro-esquerda, não socialista – um reformismo mais ou menos amplo. Mas o que pensa sobre o lado esquerdo do keynesianismo? Mann está bem à esquerda da atitude centrista do keynesiano:

(...) é um erro grave dos “progressistas” ou “radicais” tomar o medo das massas próprio das elites liberais ou capitalistas, como se ele fosse, de alguma forma, no fundo, medo de “nós” ou de “nossas ideias” (...) Contra tudo o que merece o nome de marxismo, os liberais acreditam que um uso científico de seu poder é capaz de lhes fornecer as ferramentas para mantê-lo para sempre. O corolário desta avaliação não é que, se falharem, o proletariado ou os 99 por cento ou a multidão irá se levantar (...). Mas sim que, se a sociedade civil burguesa cair, cairão também todos e tudo mais. Toda a ordem social a acompanhará nessa queda.

Em outras palavras, os keynesianos veem o socialismo como tolo e não como assustador. Eles não estão realmente preocupados com o seu sucesso, porque eles não pensam que ele possa funcionar. O que eles estão preocupados é com o “populismo”. Eis que este explora o descontentamento para minar a ordem existente, para bloquear a mudança racional. Ele não propõe soluções coerentes para os problemas que enfrenta; na melhor das hipóteses obstrui e quebra o ímpeto revolucionário.

O esquerdismo irrita os keynesianos – pelo menos quando este tem alguma popularidade – porque eles o veem como equivocado e desestabilizador. Keynes “não temia os radicais da classe trabalhadora por sua paixão igualitária pela justiça social. Na verdade, ele guardava de modo paternalista um bom lugar para eles. O que ele temia era a desordem social e a demagogia sempre gerada – cria – por tais políticas igualitaristas, assim como o reacionarismo involuntário em que sempre transforma – acreditava também – tal radicalismo”.

O engraçado é que, embora o esquerdismo repila os keynesianos, a repulsão não é mútua. O keynesianismo atrai os esquerdistas. O argumento de Mann examina aqui o longo caminho da crítica marxista usual do keynesianismo como sendo apenas uma sirene do reformismo ou um baluarte da contrarrevolução. O autonomista Antônio Negri, por exemplo, afirmou que “a classe trabalhadora britânica aparece nos escritos de [Keynes] em toda sua autonomia revolucionária”; e que Keynes, por isso mesmo, planejou um remédio para o “antagonismo inerente da classe trabalhadora” que era mais sutil e mais eficaz do que a repressão autoritária das “classes dominantes imaturas”.

Mann vê tolice nessa opinião: mesmo se houvesse tal “antagonismo inerente” no capitalismo do século XX, “uma revolução proletária com consciência de classe que lutasse pelo comunismo na Europa Ocidental ou na América do Norte seria uma das coisas mais improváveis de se realizar”. Além disso, “qualquer coisa que se aproxime do que o Negri entende por “comunismo” teria parecido à Keynes e à Hegel como o menor de vários males”.

Em outras palavras, à medida que o keynesianismo salvou o capitalismo, ele o fez da barbárie e não do socialismo. E muitos esquerdistas são atraídos pelo keynesianismo porque, no fundo, também acreditam nisso. A maioria perdeu a confiança de que existe um caminho político viável para o socialismo; enquanto isso as ameaças da direita, com matizes variados, seguem-se uma após outra. Apesar das tendências antidemocráticas do keynesianismo, os socialistas de hoje dificilmente também se veem articulando as visões das massas.

O que Mann chama de “aposta marxista” sempre envolveu lances muito altos, com chances cada vez mais distantes: os marxistas sabem, por um lado, que uma revolução teria de atravessar o abismo entre o mundo como está e o mundo como deveria estar, mas, por outro lado, sabem também que as revoluções podem facilmente falhar, tornarem-se corrompidas, sangrentas, capazes de deixar as coisas piores do que teriam sido. Caso os marxistas ainda acreditassem que a lógica da história estava do seu lado, então “a aposta radical – o salto mortal – estaria baseado na garantia de que, por mais que demorasse, a luta implacável acabaria por ser recompensada”. O prêmio viria, em outras palavras, no longo prazo. Mas, “por razões tanto materiais quanto ideológicas, tal garantia não está mais presente atualmente, podendo, inclusive, nunca mais vir a estar outra vez. Assim, quaisquer apostas radicais feitas em face do capitalismo, do liberalismo e de suas formas ocasionais fascistas e totalitárias, enfrentarão a possibilidade muito real de que foram feitas em vão (...) Ora, isto parece ter tornado o keynesianismo mais sensato do que nunca”.

Mann admite que, no início, procurou escrever uma denúncia tradicional do keynesianismo tomando-o como ópio reformista, mas acabou ao longo do trabalho descobrindo em si mesmo “um relutante, e até mesmo um reprimido, keynesiano”. No entanto, Keynes – ele sugere – pode ser invertido, como Marx inverteu Hegel. Há um “núcleo radical no coração do keynesianismo” que os socialistas poderiam extrair. O livro não deixa claro o que isso significa na prática – ele termina por meio de uma nota vaga, a qual indicaria que Mann estava em dúvida sobre se ele próprio não amadurado como um reformista covarde: “o marxista nele existente deve sugerir o que deve ‘escolher’. E, nas palavras de Lênin, apenas um covarde envergonhado escolherá Keynes.”.

Porém, o que a outra opção implica hoje em dia? A aposta marxista ainda está aberta? Mesmo estando dispostos a acolhê-la, onde exatamente seria colada a aposta? A pergunta parece sugerir que os socialistas poderiam recomeçar o 1917 assim que o desejassem, mas a escolha realista hoje consiste em decidir passar ou não os fins de semana tentando vender jornais em manifestações. Há muito tempo, a escolha dos socialistas tem sido pertencer a uma pequena seita impotente ou compartilhar a impotência dentro de um partido dominante que caminha para o centro.

Atualmente, não existe uma base óbvia para um movimento revolucionário de massa no qual seria possível apostar. Parece haver, no entanto, o início de um verdadeiro avivamento da socialdemocracia. Grande parte dos militantes da nova socialdemocracia é constituída por pessoas que se consideram mais à esquerda do que sugerem as posições assumidas por eles; no entanto, mesmo assim, seguem os seus instintos políticos acompanhando as vias abertas pelos surpreendentes Sanders e Corbyn. Alguns lamentam que o “socialismo” tenha sido assim rebaixado. Marx se queixou uma vez da responsabilidade dos trabalhadores alemães de fazerem uma revolução liberal porque a burguesia não estava à sua altura; ora, agora, parece ser tarefa dos socialistas fazer reaparecer a socialdemocracia[2].

O livro de Mann foi escrito muito cedo para que Sanders e Corbyn nele aparecessem, mas, mesmo assim, parece ter sido assaltado por uma premonição. Os programas de suas campanhas são keynesianos no sentido de Mann, mas a intuição dos radicais em suas fileiras é correta: ambos poderiam, potencialmente, trazer de volta uma situação em que a aposta marxista poderia ser feita de novo. Enquanto o keynesiano comum quer fortalecer o sistema, procura apenas uma política racional para estabilizá-lo, removendo assim os seus piores defeitos, o keynesiano radical aprendeu as lições do destino da socialdemocracia do século XX.

O pleno emprego acaba por ser um estado instável no capitalismo, pois ele reforça o poder econômico dos trabalhadores e alimenta as tendências inflacionistas que politizam a distribuição. Claro, qualquer programa de reforma que deixa o controle dos meios de produção em mãos privadas é vulnerável ao poder econômico e político do capital. Porém, é nesse ponto que a aposta marxista realmente vem ao caso, porque há agora uma escolha política real: impulsionar a expropriação do capital ou recuar.

A primeira escolha ainda seria uma grande aposta, ainda que com grande potencial de desastre e desilusão. Mas ainda assim parece ser a melhor opção. A de recuo, que pareceu politicamente mais seguro da última vez, produziu o seu próprio tipo de desastre.

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Notas:
[1] Mike Beggs é editor e conferencista na área de Economia Política da Universidade de Sydney. A resenha – aqui traduzida por Eleutério Prado – foi publicada na revista Jacobin em 12 de fevereiro de 2018.
[2] Nota do tradutor: Talvez Mann não tenha explicitado esse ponto porque, talvez, ele seja bastante óbvio. As demandas keynesianas por pleno-emprego, salários dignos, enfim, por estado bem-estar social, podem ser retomadas agora, não porém para manter o capitalismo, mas com o fim de superá-lo. Eis que o significado político dessas demandas mudou conforme mudou o momento histórico; eram viáveis no pós-II Guerra, no centro do sistema, porque a taxa de lucro média era bem alta; elas passaram a ter um conteúdo subversivo quando essa taxa caiu sensível na década dos anos 1970, sem se recuperar significativamente desde então.
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Trechos sobre a cientificidade

Os limites da antropologia: entre o naturalismo e o culturalismo

KOFLER: Quando o senhor fala de “ontologia”, não pensa realmente em “antropologia”?

LUKÁCS: Não, porque penso que certas constelações ontológicas existem totalmente independentes do fato de que exista o homem. Se, por exemplo, estudo diversos planetas do nosso sistema solar para verificar se neles existe vida orgânica, isso não tem, em geral, relação alguma com os homens. De fato,se a vida se desenvolveu num planeta, daí não se deduz necessariamente que a vida deva levar ao homem. Existe, aqui, um segundo salto que, por falta de material, não podemos analisar, se bem que eu esteja plenamente convencido a esse respeito de que, através de uma análise posterior, serão descobertas coisas muito complexas. Marx observou com muita justeza que o darwinismo é o ajuste de contas com a teleologia. Hoje me dia, na evolução dos seres vivos, já podemos ver que existem becos sem saída, e precisamente num estágio relativamente superior de desenvolvimento. A forma mais desenvolvida da chamada sociedade animal é encontrada entre insetos e não entre animais superiores. E, no insetos, precisamente a socialidade aparece como um limite para a evolução posterior. De fato, a divisão do trabalho, por exemplo, entre abelhas, é uma divisão do trabalho biológica, e a colmeia pode se renovar apenas biologicamente, mas não pode evoluir no sentido da substituição da subjugação ao poder soberano da rainha pela democracia. Repito aqui, intencionalmente, um velho absurdo. Com efeito, um desenvolvimento social posterior só é possível partindo da constelação que aparece exclusivamente com o homem, na qual a divisão do trabalho tem um caráter social e não um caráter biológico.

KOFLER: Exatamente, mas esses problemas não são diferentes na filosofia tradicional? O que se poderia aceitar neste ponto, aparece no campo humano-social como algo inteiramente diferente, isto é, como antropologia. Por exemplo, o conceito de teleologia: se fizermos desse conceito uma filosofia para um terreno no qual ela nos conduz a problemas aparentes e provoca soluções aparentes.

LUKÁCS: Hoje há, naturalmente, uma tendência muito forte para reduzir esta questão ao campo antropológico. Mas esta redução exclui todo o passado da natureza, exclui o fato de que certos fenômenos, mesmo nos homens, provêm unicamente das leis necessárias do mundo inorgânico. Uma vez, um homem cheio de espírito fez-me notar um fato interessante, isto é, que não existe um único ser vivo no qual os órgãos do movimento tenha número ímpar. Números ímpares apresentam-se em nós: temos um nariz e uma boca. Mas temos dois pés, e o senhor não poderá citar um único ser vivo que tenha três ou cinco pés; terá dois, quatro, oito, dez pés etc.. o que depende simplesmente das leis físicas do movimento, que são realizadas deste modo nos seres vivos. Posso chamar a isso de antropologia? Acho que talvez seja uma ampliação um tanto abusiva. Creio que a acentuação da antropologia derive de uma orientação que acho justa e progressista; ou seja, os homens chegaram a pôr em dúvida a chamada ciência psicológica. A psicologia isolou certos modos de expressão do homem e por isso não percebeu que todo modo de expressão do homem é o resultado de uma dupla causalidade: por um lado, é condicionado pela constituição fisiológica do homem e pela ação das forças fisiológicas; por outro lado, é condicionado pela reação aos acontecimentos sociais. Na psicologia prevalece uma expressão unitária. Se eu, por exemplo, digo que um perfume não me agrada, isso já não é mais um fato meramente fisiológico, porque o senhor sabe o quanto os perfumes dependem da moda, e sabe que o modo pelo qual os homens reagem aos perfumes é um fato social. Este talvez não seja um bom exemplo. Mas com ele desejo mostrar que não há uma só das chamadas reações psicológicas que não seja simultânea e inseparavelmente fisiológica e social. Não quero, com isso, negar que se tenha formado, com o tempo, uma ciência antropológica concentrada sobre ações recíprocas destas duas componentes. Mas é ilusão pensar que com isto se resolvam problemas essenciais do desenvolvimento social, porque o desenvolvimento social se realiza (se bem que esteja ligado aos homens) sobre a base de uma específica normatividade econômica. Tenho muita curiosidade em ver de que modo, para voltar a um exemplo anterior, poder-se ia deduzir antropologicamente o aumento da taxa de lucro.

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(LUKÁCS, G. Conversando com Lukács: entrevista a Léo Kofler, Wolfgang Abendroth e Hans Heinz Holz. Trad. Giseh Vianna. São Paulo Instituto Lukács, 2014, p. 91-93).
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A crítica neoiluminista ao cientificismo
 
A demonstração da estreita vinculação entre o conhecimento e os interesses de classe nos permite infirmar a tese da neutralidade da ciência, defendida pela perspectiva moderna. Permite, também, fazer a clara distinção entre neutralidade e objetividade. O conhecimento científico, porque se pretende verdadeiro, deve ser objetivo, uma vez que sua função é capturar a realidade como ela é em si mesma. Ser objetivo é capturar a lógica própria do objeto. Ser neutro é não tomar partido, isto é, não permitir que julgamentos de valor interfiram na produção do conhecimento. À primeira vista, poderia parecer, então, que portar-se de maneira não neutra impossibilitaria a apropriação do objeto na sua integralidade. Tomar partido implicaria uma visão parcial do objeto.

Por paradoxal que seja, é a postura de neutralidade que impede a apropriação integral do objeto. Na medida em que existe uma vinculação essencial entre conhecimento e perspectiva de classe, então, nenhum conhecimento pode ser produzido sem estar marcado, de alguma maneira, por essa vinculação. Independente da consciência e/ou da aceitação do pensador, os pressupostos e as categorias por ele utilizadas já implicam, em si mesmas, essa vinculação. O equívoco na afirmação da neutralidade científica está exatamente na rejeição da relação entre conhecimento e perspectiva de classe, na suposição de que o pensador é o sujeito único do conhecimento.

Esse equívoco também se manifesta na confusão entre objetividade e neutralidade, como se esses conceitos fossem sinônimos. Tentando superar a crença na neutralidade da ciência, o neoiluminismo, a exemplo de H. Japiassú, P. Demo e outros, rejeita essa crença na neutralidade da ciência como sendo um produto típico do cientificismo positivista. Argumentam os neoiluministas que, sendo a ciência um produto humano, ela jamais poderá deixar de ser perpassada por valores. Todo conhecimento é histórica e socialmente enraizado. Por isso mesmo, não pode existir neutralidade na ciência. Essa crítica neoiluminista, porém, permanece prisioneira da centralidade do sujeito, pois atribui a este a tarefa de superar os obstáculos postos pela intervenção de interesses sociais no processo de produção do conhecimento. Tratar-se-ia, em síntese, simplesmente, de evitar a ingenuidade elevando à consciência os interesses subjacentes ao conhecimento. Isto permitiria ao cientista compreender os condicionantes históricos e sociais do seu trabalho, o que seria suficiente para afastar qualquer veleidade de neutralidade científica. Mas, de que gênero são esses condicionantes históricos e sociais e quais os pressupostos para identificá-los, isto sempre fica a cargo do sujeito!

Na verdade, o neoiluminismo nada mais é do que a retomada, sob outras roupagens, das tentativas do historicismo alemão de superar a pretensa neutralidade da ciência afirmada pelo positivismo. Assim como o historicismo alemão, também o neoiluminismo se vê incapaz de fazer uma crítica acertada à problemática da neutralidade da ciência e de compreender corretamente a diferença entre neutralidade e objetividade. Isto porque ele permanece prisioneiro da perspectiva gnosiológica moderna, que vê no indivíduo o sujeito fundamental e único do conhecimento. Somente a perspectiva ontológica instaurada por Marx, ao constatar a íntima vinculação entre o conhecimento científico e as perspectivas de classe, permite equacionar de modo correto esta problemática.

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TONET, Ivo. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács, 2013, p. 109-110.
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