sábado, 28 de abril de 2018

A redundância formalista do conceito "biopsicossocial"



por Paulo Ayres

Dizer que o ser humano é ser "biopsicossocial" se tornou um dos termos científicos da moda. O procedimento é claro e revela o fundo ideológico: tratar os componentes do ser humano de maneira formalista, metafísica, como se fossem SOMAS de elementos distintos. Até parece que existe um ser social, a terceira esfera ontológica, que não tenha em si o ser orgânico (ser biológico) e este, por sua vez, contenha o ser inorgânico. O Aufhebung que dá origem ao ser humano significa justamente a síntese dialética/salto ontológico que conserva e eleva.

Outro ponto: é perceptível aquela confusão liberal que considera o social como sinônimo de gregário, coletivo - como se uma matilha de lobos também fosse "social". E, complementando isso, muitos consideram, equivocadamente, haver um fictício "ser psíquico" descolado do ser social.

G. Lukács observa que até mesmo o neoiluminista Nicolai Hartmann, um dos maiores filósofos do século XX com a sua abordagem ontológica, comete esse deslize:

A concepção de que o ser psíquico do ser humano compõe uma esfera de ser tão autônoma quanto a do ser orgânico ou a do ser social brota diretamente da postura de não tomar conhecimento da origem. [...] Hartmann parte exatamente dessa separação entre psíquico e social, dada na atualidade de modo aparentemente imediato e indubitável, e a hipostasia numa esfera própria de ser, sobre a qual a esfera do espírito deverá então se constituir (LUKÁCS, 2012, p. 159).

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Referência bibliográfica:

LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
04/04/2018
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O nascimento da sociologia: o positivismo domesticado

 
 
por Ranieri Carli

Vimos que o pensamento burguês decai do alto de um Hegel para seus vulgarizadores. Em meio a este trajeto descendente, Lukács encontrará o nascimento da sociologia:
 
Após o surgimento da economia marxista, seria impossível ignorar a luta de classes como fato fundamental do desenvolvimento social, sempre que as relações sociais fossem estudadas a partir da economia. Para fugir desta necessidade, surgiu a sociologia como ciência autônoma; quanto mais ela elaborou seu método, tão mais formalista se tornou, tanto mais substituiu, à investigação das reais conexões causais na vida social, análises formalistas e vazios raciocínios analógicos (1968a, p. 65).

Em A destruição da razão, Lukács diz que ao se criar “a sociologia como disciplina à parte, encerra-se nela o estudo dos problemas da sociedade prescindindo de sua base econômica; a suposta independência dos problemas sociais em face dos econômicos é, com efeito, o ponto de partida metodológico da sociologia” (1968, p. 471).

A avaliação lukacsiana é correta para a caracterização da gênese das ciências particulares, mas não de seu desenvolvimento ulterior. Nem sempre a sociologia esteve do lado da reação, haja vista a influência que posteriormente Marx exerceu sobre um grande número de sociólogos. Na Ontologia do ser social, Lukács não descarta as possibilidades contidas nas pesquisas das ciências sociais — que se recorde a sua admiração pelos trabalhos de um sociólogo como Wright Mills. Naquele texto, o filósofo húngaro escreve que “a divisão social do trabalho faz nascer, em termos sempre mais diferenciados, ciências diversas para poder dominar o específico do ser social, do mesmo modo que é possível dominar o intercâmbio orgânico com a natureza por meio das ciências naturais” (LUKÁCS, 1981, p. 543). No entanto, nada disso obscurece a correção de sua tese acerca do nascimento da sociologia: a autonomia concedida às ciências da sociedade é uma reação conservadora ao aparecimento do novo sujeito revolucionário e de sua ideologia, a teoria social marxiana.

As ciências sociais nascem da crise de 1848 ancoradas em um “positivismo domesticado”, conforme Netto[1]. É preciso que se afirme que nem sempre o positivismo foi de espécie domesticada. No século XVIII, “o positivismo foi militante e revolucionário. Então, o apelo aos fatos importava num ataque direto às concepções religiosas e metafísicas que constituíam o suporte ideológico do ancien régime” (MARCUSE, 1978, p. 310).

Com a obra de Condorcet, o positivismo detém cores revolucionárias; Condorcet parte de noções positivistas para efetuar uma crítica revolucionária a seu presente histórico. O filósofo iluminista recorre ao método naturalista para explicar as relações humanas com uma intenção muito específica: conceder cientificidade ao tratamento dos fenômenos sociais, livrando-o da interferência dos “interesses e paixões”, aos quais atribui um sentido de classe da maneira explicada por Löwy:
 
Este ideal de ciência neutra, tão imune aos “interesses e paixões” quanto a física ou a matemática, estará no coração da problemática positivista durante dois séculos. Mas, há ainda em Condorcet uma significação utópico-crítica: seu objetivo confesso é o de emancipar o conhecimento social dos “interesses e paixões” das classes dominantes. O cientificismo positivista é aqui um instrumento de luta contra o obscurantismo clerical, as doutrinas teológicas, os argumento de autoridade, os axiomas a priori da Igreja, os dogmas imutáveis da doutrina social e política feudal (2003, p. 20).

Pelo exposto por Löwy, fica claro que o recurso ao cientificismo positivista em Condorcet não é uma justificação da ordem, como será a partir da geração de Comte e Spencer; ao contrário, é um instrumento de luta.

O tom revolucionário do positivismo do enciclopedista patenteia-se com uma análise de sua obra Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Por exemplo, logo depois de dizer que, no que concerne ao passado histórico, a filosofia não faz nada além do que agrupá-lo em “quadras de seu progresso”, Condorcet acresce que resta ainda um quadro a ser feito: “aquele de nossas esperanças, dos progressos que estão reservados às gerações futuras e que a constância das leis da natureza parece lhes assegurar” (CONDORCET, 1988, p. 86). Vê-se a recorrência à idéia da lei natural a reger a evolução humana; porém, Condorcet não se abstém de crer na racionalidade da vida social, na razão iluminista — não é de se estranhar, aliás, que o filósofo se propusesse a expor “os erros gerais que mais ou menos retardaram ou suspenderam a marcha da razão” (idem, p. 87).

O Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano é constituído de nove estágios que descreveriam a história da humanidade até o tempo de Condorcet; fecha-se o texto com um décimo e último quadro que diz respeito às “gerações futuras” — como está dito no parágrafo acima —, sendo este um resultado da superação do estado de coisas da nona etapa (que perfaz a história de Descartes até a instauração da república francesa).

Este quadro que remete ao futuro é possível de ser descrito porque, segundo Condorcet, se podem predizer os fenômenos dos quais se conhecem as leis[2]. E, tendo como base o conhecimento daquilo que nomeou “leis naturais do progresso humano”, Condorcet desenha o quadro futuro de nossa evolução em três amplos aspectos: teríamos “a destruição da desigualdade entre as nações; os progressos da igualdade em um mesmo povo; enfim, o aperfeiçoamento real do homem” (1988, p. 266). Nesta derradeira fase, “a estupidez e a miséria não serão mais que acidentes” (CONDORCET, idem. p. 266).

Não há como exagerar o aspecto revolucionário do texto deste partidário da revolução francesa. A obra de Condorcet faz com que se evite a fácil e errônea oposição entre o racionalismo e o positivismo. Típico iluminista, Condorcet conferia ao esclarecimento, às “luzes”, um papel de suma importância na emancipação do homem e, por isso, a luta contra as mistificações do catolicismo é a mais constante no decorrer do Esboço; o quadro futuro que delineia é produzido por indivíduos esclarecidos, cientes dos fundamentos da natureza humana. Assim, positivismo e racionalismo coincidem na obra desse importante filósofo, a despeito de sua confiança utópica na razão burguesa.

Um tema recorrente nas obras dos iluministas aparece também em Condorcet, a saber, o ensino público. Não se espere uma atitude aristocrática de um iluminista quanto à difusão dos saberes: Condorcet não pretendia guardar para si as “verdades” da razão; as luzes deveriam ser generalizadas para todos os segmentos sociais. Em 1791, publicou as Cinco memórias sobre a instrução pública. No primeiro e principal capítulo, Condorcet intervém no debate a favor da igualdade de educação para todas as classes. O desequilíbrio entre as camadas sociais no que diz respeito à cultura é considerado por ele “uma das maiores fontes da tirania”. Diz o filósofo, a instrução pública igualitária fará com que os talentos e as luzes sejam patrimônio comum de todos os homens (cf. CONDORCET, 1994, p. 15). O monopólio do conhecimento é nocivo ao bem público: “as luzes não podem ser concentradas nem em uma casta hereditária, nem em uma corporação exclusiva. Não se devem existir mais as doutrinas secretas ou sagradas que põem um intervalo imenso entre duas porções de um mesmo povo” (idem: 16).

O cientificismo positivista está presente neste debate. Segundo Condorcet, a lei da natureza fez dos homens todos iguais; o que os separou em diversas classes foi a educação desigual. A instrução igualitária conduziria a uma igualdade de gostos, habilidades, sentimentos e ideias. Registra-se o fato de que, de acordo com as ideias de Condorcet, a paz entre as classes se dará mediante a comunhão de uma moral universal; mesmo que seja feita a distinção entre classes dominantes e subalternas, nas Cinco memórias sobre a instrução pública não há referências a propósito de algo como a distribuição planificada do excedente produzido. Resolve-se o problema com a universalização dos valores de uma moral baseada nas luzes da razão.

Apenas a generalização do conhecimento poderá corrigir o fato de que “um número extremamente pequeno de indivíduos recebe em sua infância uma instrução que lhes permite desenvolver todas as faculdades naturais” (CONDORCET, 1994, p.21). Com a instrução fundada nas “verdades eternas das luzes”, todas as crianças estarão imunizadas contra o erro e o preconceito (cf. CONDORCET, idem ,p. 73).

Condorcet propõe-se uma intervenção prática no debate público sobre a direção do conhecimento. Entre as cátedras destinadas à educação das crianças, consta a “aritmética política” (cf. CONDORCET, 1994, p. 89). É a preocupação característica dos iluministas com a formação de quadros dirigentes para a administração do bem público. Em uma postura similar a dos filósofos revolucionários que vimos na Alemanha (Fichte, Schiller, Hegel), Condorcet não se engana com uma pretensa “neutralidade” perante as contradições sociais. Eis em termos gerais a sua contribuição para a edificação da nova sociedade:
 
Uma constituição verdadeiramente livre, em que todas as classes da sociedade desfrutam os mesmos direitos, não pode subsistir se a ignorância de uma parte dos cidadãos não lhes permite conhecer a natureza e os seus limites, se os obriga a pronunciar-se sobre o que eles não sabem, a escolher quando não podem julgar; uma tal constituição se destruirá ela-mesma depois de algumas tormentas e se degenerará em uma dessas formas de governo que não conseguem conservar a paz em meio ao povo ignorante e corrompido (CONDORCET, 1994, p. 32).

Era o objetivo do empenho de Condorcet a generalização da razão burguesa, das luzes, do conhecimento. O “único soberano dos povos livres”, isto é, a “verdade”, faria com que os homens espalhassem por todo o mundo a sua “bondade e irresistível força”. “Assim, esta revolução não é a de um governo, senão a das opiniões e das vontades; não é o trono de um déspota que ela subverte, mas do erro e da servidão voluntários” (Condorcet, 1994, p. 194).

A época heroica da consolidação da sociedade burguesa permitia que Condorcet nutrisse a esperança otimista-utópica com relação aos desenvolvimentos futuros.

Nesse sentido, ao término do Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano está escrito que, apesar de todas as adversidades trazidas pela batalha a favor da razão, é “a contemplação deste quadro que [o seu autor] recebe o prêmio por seus esforços em benefício do progresso da razão, pela defesa da liberdade” (CONDORCET, 1988, p.296).

Ao lado de Condorcet, Saint-Simon figura entre os positivistas revolucionários; no início de sua atividade literária e política, era um ideólogo característico do Terceiro Estado e, assim como seu contemporâneo, lutava contra as “classes ociosas” a favor dos “trabalhadores” (que, para o Saint-Simon de então, abrangiam tanto o operário quanto o burguês).

A crítica que Saint-Simon endereça à aristocracia baseava-se nos princípios positivistas já vistos em Condorcet: a “classe ociosa” significa um entrave para o avanço do conhecimento humano; “os príncipes, os oficiais superiores da Coroa, os bispos, os marechais, os prefeitos e os proprietários ociosos não contribuem diretamente para o progresso das ciências, das artes e dos ofícios” (SAINT-SIMON, 2002, p. 60). As camadas aristocráticas obstam o progresso revolucionário dos saberes positivos; por isso, fazem vigorar apenas “teorias conjunturais” em detrimento do verdadeiro conhecimento humano. Para que fossem desfeitos estes equívocos, era imperativo que os métodos das “ciências da observação” entrassem no âmbito da discussão política: “até aqui, o método das ciências da observação não foi introduzido nas questões políticas; cada um trouxe a elas seu modo de ver as coisas, de raciocinar, de julgar, e daqui provém que não tenha havido nem precisão nas resoluções, nem generalidade nos resultados” (SAINT-SIMON, 1975, p. 60). Reina a arbitrariedade na política uma vez que a ciência positiva ainda não é de uso dos soberanos. Mas, o socialista utópico informa que “chegou o tempo que deve cessar esta infância da ciência, e certamente é desejável que cesse: já que das obscuridades da política nascem os transtornos da ordem social” (idem, p. 61).

Também do mesmo modo efetuado por Condorcet, Saint-Simon traçava etapas de desenvolvimento do espírito humano tendo como certo que “a marcha do espírito humano é una e inalterável e não varia segundo os tempos ou os lugares” (1975, p. 121). Saint-Simon vislumbra uma época das sociedades pós-revolucionárias em que, destituídas do poder as aristocracias, “a calma renasce depois de tanta agitação, as trocas desejadas no princípio pela parte sã do povo operam-se sem infortúnio, e a nação vê por fim esta ordem social a qual havia esperado chegar, sem convulsões e sem revoltas” (SANT-SIMON, idem, p. 124). É um ideal de sociedade a se alcançar. Essa ainda não era a época de Saint-Simon; o revolucionário depositava todas suas forças para que tal estado de coisas passasse a vigorar na Europa, com a generalização das benesses da revolução burguesa: “a idade de ouro do gênero humano não está atrás de nós, está adiante, está na perfeição da ordem social; nossos pais não a viram; nossos filhos chegaram a ela um dia: a nós corresponde preparar-lhes o caminho” (idem, p. 163). 

Bastante claro nestas menções é a conjugação entre teoria e prática deste positivismo revolucionário; não se pretendia uma teoria purificada das intervenções políticas, da “arte”, como diria o “domesticado” Durkheim. A noção de cientificidade do positivismo iluminista não apartava em esferas excludentes a teoria e a práxis. Diversamente dos seus herdeiros do pós-1848, Condorcet e Saint-Simon eram autênticos revolucionários.

Quando escreveu Para a reorganização da sociedade europeia, em 1814, SaintSimon ainda investia sua crença na burguesia contra os poderes aristocráticos; naquela obra, por exemplo, a monarquia parlamentar da Inglaterra é eleita como “a melhor constituição possível” (SAINT-SIMON, 1975, p. 71); com o desenvolvimento das contradições do capital, porém, Saint-Simon assume o ponto de vista do proletariado. O utópico francês percebe aos poucos que a burguesia estava longe de instaurar o “reino da razão” e que, pelo contrário, substituía a dominação política aristocrática por outra forma de dominação; a seus olhos, o Terceiro Estado cindia-se em classes antagônicas. Essa transição faz com que Saint-Simon produza um dos primeiros documentos que atestam em gérmen a formação dos trabalhadores em classe para-si. É o Novo cristianismo, de 1825. Como o título indica, a obra está carregada de uma religiosidade utópica. Entretanto, é nela que Marx reconhece a mudança: “não se deve esquecer que, só na última obra, o Nouveau Christianisme, Saint Simon surge diretamente como porta-voz da classe trabalhadora e declara que a emancipação dela é o objetivo final de seus esforços” (1981, p. 693; grifos originais).

Nesse livro bem considerado por Marx, ao anunciar a sua doutrina, Saint-Simon noticia que a nova religião estará atrelada às classes subalternas, que o novo cristianismo “dirigirá todas as instituições, qualquer que seja sua natureza, ao acréscimo do bem-estar da classe mais pobre” (SAINT-SIMON, 1981, p. 12). As instituições da nova piedade religiosa terão como fim o bem-estar das classes trabalhadoras. Esta é a sua finalidade: todos os esforços das instituições da igreja estarão reservados à promoção da saúde econômica e moral das camadas pobres.

A evangelização guiada pelos novos preceitos cristãos terá uma missão muito específica:
A sociedade deve ser organizada segundo o princípio da moral cristã; todas as classes devem concorrer, com todo seu poder, para o melhoramento moral e material da classe mais numerosa; todas as instituições sociais devem concorrer, o mais enérgica e diretamente possível, para esta grande meta religiosa (SAINT-SIMON, idem, p. 68).
A “grande meta religiosa” é organizar toda a sociedade em benefício dos trabalhadores, “a classe mais numerosa”.

Com o bem-estar dos trabalhadores, os antagonismos de classe estariam resolvidos. Os homens estariam em condições morais e econômicas para se tratar enquanto “irmãos”. Sendo todos filhos de Cristo, não haveria porque a desigualdade moral e material entre os homens. O novo cristianismo “deduzirá as instituições temporais, assim como as instituições espirituais, do princípio todos homens devem tratar-se como irmãos em suas relações recíprocas” (Saint-Simon, 1981, p. 12). Sem as distinções classistas, o mundo tornase uma irmandade.

A sociedade sem classes esboçada por Saint-Simon em Novo Cristianismo é revestida por um invólucro de piedade religiosa: os homens doutrinados por este novo evangelho serão todos irmãos; é dever dos novos fiéis o tratamento recíproco como irmãos.

É indicativo o fato de que se exponha nos moldes de uma religião este documento que concerne aos primeiros momentos de consciência do trabalhador acerca de seus próprios interesses. Apenas no período que culmina em 1848 estarão postas as condições históricas para que a ideologia do operariado perca o seu caráter utópico e eleva-se à ciência com Marx e Engels.

Isso não quer dizer que o papel de Saint-Simon seja diminuto. Engels era um veraz entusiasta de suas grandes aquisições racionalistas:
 
O conceber a Revolução Francesa como uma luta de classes entre a nobreza, a burguesia e os desprotegidos, era um descobrimento verdadeiramente genial para o ano de 1802. Em 1816, Saint-Simon declara que a política é a ciência da produção e prediz a total absorção da política pela economia. E aqui não se faz mais do que apontar a consciência de que a situação econômica é a base das instituições políticas, proclama-se já, claramente, a futura transformação do governo político sobre os homens numa gestão administrativa sobre as coisas e no governo direto sobre os processos de produção que não é nem mais nem menos do que a idéia da abolição do Estado que tanto ruído levanta hoje (ENGELS, 1979, p. 225, 226).

As ideias do socialista utópico acerca da política irão fecundar a teoria marxiana; Marx foi convencido por Saint-Simon de que o Estado era uma objetivação do ser social especificamente cindido em classes; tanto para Marx quanto para Saint-Simon, o Estado significa a dominação do homem sobre o homem. Em uma sociedade sem os antagonismos classistas, será substituída a dominação estritamente política pela dominação sobre os eventos da vida sócio-econômica, a “gestão administrativa sobre as coisas” de que fala Engels. Desse modo, a influência de Saint-Simon foi de suma importância para que Marx elaborasse a sua teoria negativa do Estado.

A geração desses autores fazia confluir positivismo e revolução. Ainda que utópica, a filosofia de Condorcet e Saint-Simon projetava um novo tipo de sociabilidade para além de seu presente histórico. Nesse sentido, o positivismo não é nada domesticado. Quem irá domesticá-lo será a geração posterior, em especial Comte e, um pouco depois, Spencer. Se, historicamente, Condorcet e Saint-Simon estavam aptos a falar em revolução, o mesmo não pode ser dito para o pensamento burguês na época de Comte e Spencer. E, por intermédio destes autores, nascerá a sociologia, uma espécie de física a estudar os fenômenos do reino social. A concepção da sociologia deu-se com a dissolução do socialismo utópico francês (em Comte) e a escola ricardiana de economia na Inglaterra (em Spencer), precisamente no contexto histórico em que surgia para a política mundial a classe trabalhadora.

Lukács está com a razão quando diz que, nestes primeiros passos da sociologia, há uma preocupação em manter um caráter universal na explicação da sociedade; mas, como bons positivistas, o fundamento desta universalidade não está na economia e sim nas ciências naturais (cf. LUKÁCS, 1968, p. 471). Aqui, em verdade, as ciências da natureza são alçadas a paradigma da explicação sociológica de um modo distante daquele que se vê nos socialistas utópicos. Lukács explica como: “a fundamentação científico-natural, sobretudo biológica, não tarda em transformar-se, consoante com a trajetória geral político-econômica da burguesia, em uma ideologia e uma metodologia inimigas do progresso e, em muitos aspectos, francamente reacionário” (idem, p. 472).

A cientificidade naturalista deixa de ser instrumento de luta contra um dado estado de coisas para se tornar uma metodologia “inimiga do progresso” e, às vezes, “reacionária”.

Sob este prisma, o percurso traçado por Comte é modelar. Atentem para as datas. Em 1826, com o  Curso de filosofia positiva, Comte propunha-se a descrever as leis do progresso humano em seus três estágios, o teológico, o metafísico e o científico; portanto, levam-se em consideração alguns aspectos de mudança societária. No ano chave de 1848, as contradições de classe brotam a olhos nus e, em seu Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, Comte já denomina a sua filosofia de “doutrina regeneradora” em face da “grande crise do Ocidente”. Até que, em 1852, o sociólogo ambiciona compor um Catecismo positivista para harmonizar as lutas de classe (as “hostilidades mútuas”, como diz a sua introdução). Vê-se como a física social de Comte caminha para a franca reação na medida em que ganham vulto os antagonismos da sociedade burguesa.

Este movimento significa a passagem do racionalismo, que presume a crítica do real, para um racionalismo puramente formal, que implica a aceitação acrítica do dado, mistificando-o de múltiplas maneiras (tomando a imediaticidade empírica como o autêntico objeto da ciência, parcelando a vida social em compartimentos diferenciados, negando à crítica um papel científico, etc.).

Quando Durkheim inicia a sua intervenção intelectual o movimento proletário já havia produzido o “assalto ao céu” na Paris de 1871; o capital está em sua fase monopolista e a reificação da cotidianidade burguesa avança a passos largos. Por isso, em Durkheim a sociologia não fala mais em antagonismos. Notem que mesmo o Comte da última fase supunha a divisão classista da sociedade, uma vez que pretendia a catequização dos trabalhadores; é evidente, ao supor uma classe trabalhadora a ser catequizada, supõe-se necessariamente a existência de classes sociais. Mas Durkheim exclui a idéia de luta de classes das doutrinas positivistas e o “reino social” passa a ser considerado solidariamente homogêneo a partir de uma moral constituída por uma coletividade coesa.

A ordem passa a ser, de fato, uma necessidade metodológica. Para a apreensão do fato social, tomam-se as relações sociais como algo imutável, fixo. Afinal, não se observa o que está em movimento.

Lembrem-se de que Marx não precisou mais do que uma nota de página em O capital para dar conta do positivismo posterior a Comte; é oportuno que esta crítica refirase precisamente ao caráter imutável atribuído às relações: “August Comte e sua escola poderiam ter demonstrado a eterna necessidade dos senhores feudais do mesmo modo que o fizeram em relação aos senhores do capital” (2002, p. 386). A partir das palavras de Marx pode-se inferir a arbitrariedade contida nas teorias da sociologia positivista: a sociedade burguesa é transformada em “a sociedade” assim como poderia ser feito com qualquer outra forma societária.

Com a invocação do método das ciências da natureza, Durkheim consegue explicar o porquê do aparecimento extemporâneo da sociologia entre as ciências: “a ciência só aparece quando o espírito, abstraindo toda a preocupação prática, aborda as coisas com o único fim de ter representações delas” (DURKHEIM, 1975, p. 104). Para que se tenha o comportamento científico “é preciso ter chegado à noção de leis”. E o sociólogo conclui: “ora, sabe-se com que lentidão a noção de lei natural se constituiu e se propagou progressivamente às diferentes esferas da natureza”. Com lentidão, a ideia de lei natural aportava na sociologia com a obra da escola positivista “e foi isto que fez com que a sociologia só pudesse aparecer num momento tardio da evolução científica” (DURKHEIM, idem, p. 105).

Entretanto, não é apenas a noção de lei natural que faltava aos estudiosos da sociedade; estava ausente ainda o reconhecimento do reino social enquanto um dos reinos da natureza: 
 
Há séculos que o espírito está habituado a conceber um tal abismo entre o mundo físico e aquilo que se chama o mundo humano que, durante muito tempo, se recusaria a admitir que os princípios, mesmos fundamentais, de um fossem também os do outro. Daí a tendência geral em colocar os homens e as sociedades fora da natureza, a fazer das ciências da vida humana, quer individual quer social, ciências à parte, sem semelhanças com as ciências físicas, mesmo as mais avançadas... Para triunfar desse obstáculo, seria preciso perder o preconceito dualista; e o único meio para isso consistia em adquirir um sentimento vivo da unidade do saber humano (DURKHEIM, 1975, p. 105).

O “preconceito dualista” seria daqueles que viam o ser social com uma legalidade distinta do ser natural. Durkheim “supera” tal dualidade fazendo concordar com Menger que, à mesma época, dizia: “todas as coisas são regidas pela lei da causa e do efeito” (MENGER, 1983, p. 243).

Nesse mesmo sentido, na tentativa de equiparar os métodos naturais com os sociais, uma alternativa é posta por Durkheim: “deve-se então escolher: ou bem as coisas sociais são incompatíveis com a ciência, ou bem elas são governadas pela mesma lei que as outras partes do universo” (1966, p. 38).

Podemos inferir qual é a escolha do sociólogo:
 
Como este princípio, segundo o qual todos os fenômenos do universo estão diretamente vinculados uns aos outros, já foi posto à prova em demais domínios da natureza e não foi jamais apresentado como falso, é fortemente verossímil que seja válido também para as sociedades humanas, as quais fazem parte da natureza (Durkheim, 1966, p. 38).

Se assim não for, Durkheim adverte que a ciência poderá se tornar uma espécie de “arte”, isto é, uma doutrina normativa feita para a ação. “A arte, em efeito, consiste em agir; é então arrastada pela urgência... A verdadeira ciência não sofre tanto da precipitação” (1966, p. 32). A arte pretende a correção; a sociologia, o entendimento descritivo. Esta é a oposição entre dever ser e ser que marca com ferro e fogo o nascimento da sociologia (e que inexiste para a geração de Condorcet e Saint-Simon). Pois, no mais fiel cânone da decadência ideológica da burguesia, Durkheim estabelece que o método científico difere-se da arte por “aplicar-se a um certo objeto em vista de conhecê-lo sem nenhuma preocupação utilitária” (idem, p. 34).

Advogando a favor da “ciência”, Durkheim acusa as teorias que se ligam ao socialismo. O marxismo não é ciência, já que não se atém ao ser. “O socialismo ocupa-se menos com o que é ou foi do que com o que deve ser” (DURKHEIM, 1993, p. 36). O socialismo nasceria da paixão, dos preconceitos, da vontade de ingerência na prática e não da observação desprovida de preocupações utilitárias; pretende a fundação de uma nova ordem social, o que não seria tarefa da ciência: “o socialismo não é uma ciência, uma sociologia em miniatura, é um grito de dor e, por vezes de cólera, lançado pelos homens que mais vivamente sentem nosso mal-estar coletivo” (idem, p. 37).

Essa distinção entre arte e ciência é essencial para Durkheim; na verdade, sendo um ideólogo da Terceira República, trata-se de um problema de primeiro plano[3]. No ensaio A sociologia em França no século XIX, Durkheim deixa implícita a sua postura. Para justificar a suposta desafetação exigida pela ciência sociológica, ele constata sem peias: “a verdade é que, a partir do momento em que a tempestade revolucionária passou, constituise, como que por encanto, a noção de ciência social” (DURKHEIM, 1975, p. 106). O “encanto” não é senão o apartamento das lutas de classe no plano teórico, igualado por Durkheim à ruptura com os preconceitos e com “qualquer preocupação utilitária”. E isto é o que Durkheim anuncia: para se chegar à descoberta das leis sociológicas, é “preciso praticar um método positivo, isto é, substituir os procedimentos sumários da dialética ideológica pela observação paciente dos fatos” (idem, p. 118).

Resta, acima de tudo, um verdadeiro tratado da decadência ideológica por parte de Durkheim ao preconizar aos seus seguidores a “observação paciente dos fatos”:
 
Podemos certamente concluir, não sem razão, que a vida que... se desenvolveu [em meados do século XIX] é muito agitada e não deixa de ter lamentáveis desperdícios de forças. Mas, enfim, é a vida. Que ela se discipline e se regularmente, que os ânimos assim despertos, em vez de se consumirem sem método, se agrupem e se organizem, que cada um meta mãos a uma tarefa definida, e é-nos permitido esperar que este movimento figurará na história das idéias em geral e da sociologia em particular (1975, p. 122).

Já estamos a léguas de Condorcet e Saint-Simon. Para nenhum destes autores a atividade revolucionária era um “lamentável desperdício de forças”. Com Durkheim o positivismo perde por completo o seu aspecto racionalista, crítico, para se transformar na domesticada aceitação do estado de coisas posto; para tanto, era necessária a disciplina metódica sem as agitações dos “ânimos mais despertos”.

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Notas:
[1] “A herança teórico-cultural emancipadora é incompatível, a partir de então [1848], com a perspectiva de classe da burguesia — eis aí o impasse que sinaliza a crise cultural que igualmente tem por marco o ano de 1848. A sua solução histórica deu-se em duas direções: de uma parte, com a teoria social de Marx, os componentes emancipatórios são criticamente reelaborados numa perspectiva de classe proletária (justamente a relação de continuidade e de ruptura que Marx mantém com suas ‘fontes’); de outra, com o pensamento da ordem dividido entre um inofensivo, ainda que aparentemente radical, anticapitalismo romântico (articulado especialmente numa constelação irracionalista) e um positivismo domesticado (prisioneiro de um racionalismo formal), em cujo berço nascem as ciências sociais” (Netto, 2004, p. 60).
[2] “O único fundamento do conhecimento nas ciências naturais é esta idéia que as leis gerais, conhecidas ou ignoradas, que regem os fenômenos do universo, são necessárias e constantes; e por que este princípio seria menos verdadeiro para o desenvolvimento das faculdades intelectuais e morais do homem do que em outras operações da natureza?” (CONDORCET, 1988, p. 265).
[3] Há um momento privilegiado em que o sociólogo expõe a sua condição de ideólogo da Terceira República em face do Segundo Império; assinalando que a última grande contribuição à sociologia foi produzida em 1942 por Comte, tendo a ciência social hibernado por um longo tempo para ser resgata por ele mesmo, Durkheim sugere: “como a maior parte desse tempo corresponde ao Segundo Império, poderíamos ser levados a crer que foi o despotismo imperial que levantou obstáculos ao progresso da ciência” (1975, p. 111).
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CARLI, R. György Lukács e as raízes históricas da sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 33-44.
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A crítica de Lênin ao agnosticismo na física moderna


por György Lukács

Foi necessário colocar todas essas questões para chegar ao problema da dialética. Vimos com que vigor Lênin sublinha a importância do materialismo; seria entretanto totalmente falso concluir daí que despreza a dialética. Ao contrário: é o primeiro pensador revolucionário, depois de Marx e Engels, que soube dar um novo impulso ao estudo da dialética. O problema do primado gnosiológico da matéria apresenta-se nele sob um aspecto novo. O materialismo ocupa, com efeito, um lugar central na evolução atual do pensamento, precisamente porque o método dialético não poderia agora afirmar-se de outro modo a não ser sobre a base da ideologia materialista. A crise do idealismo exclui definitivamente, com efeito, a possibilidade de ver surgir no nosso tempo — guardadas todas as proporções — um Proclo, um Nicolau de Cusa, um Vico ou um Hegel.

Mas a vida não para; as ciências naturais prosseguem sua evolução, e os problemas sociais estão agora carregados de uma força da qual depende o futuro da humanidade. Esses processos continuam seu curso, sejam ou não adeptos do método dialético os pensadores da nossa época. A própria vida, a evolução da sociedade e da natureza são de caráter dialético e quanto mais nosso conhecimento as penetrar, quanto mais nossa evolução objetiva prosseguir, mais esse caráter se desvenda a nós. É assim que a ciência e, antes de tudo, a filosofia, acabam por se encontrar em face de problemas que não poderiam ignorar e que tomam um caráter dialético cada vez mais acentuado. A ciência e, em primeiro lugar, a filosofia, são entretanto incapazes de fornecer a essas questões dialéticas respostas que o sejam igualmente. O problema autêntico, frequentemente decisivo para o homem, recebe uma solução falsa, desfigurada, enganadora. A questão real, cuja resposta implicaria possibilidades grandiosas de progresso, torna-se assim uma arma a serviço da reação.
 
A grande subversão da física moderna, essa subversão cujo resultado concreto não se manifesta para nós senão há pouco, data, como se sabe, da primeira década do nosso século [XX]. Lênin logo reconheceu a importância dessa transformação do ponto de vista da filosofia, o que lhe permitiu fornecer imediatamente a resposta dialética ao problema igualmente dialético que essa transformação das ciências naturais tinha objetivamente colocado. Essa transformação manifestara-se, antes de mais nada, pela derrocada “brusca” de concepções consideradas inabaláveis há décadas e mesmo há séculos, sobre as qualidades e a estrutura da matéria. A dualidade clássica da matéria e da energia, da matéria e do movimento tornou-se “de repente” vacilante. A necessidade de noções físicas novas apresentava-se ao mesmo tempo motivada pela vontade de dar aos fenômenos que se acabava de descobrir, uma expressão adequada no plano do pensamento. Ora, a grande maioria dos físicos filósofos, como pensadores especializados em comentar a evolução das ciências naturais, recuava em desordem diante dessa questões, decididamente insolúveis, sem o recurso do método dialético. Essa fuga em pânico para o idealismo reacionário devia arrastar mesmo certos físicos que permaneceram no entanto materialistas nos seus trabalhos científicos.

A crise teórica das ciências da natureza apresentava-se de um lado sob o aspecto de uma crise de concepções estabelecidas e, de outro, — sobretudo no domínio especulativo — como crise do materialismo. A transformação da física significava, para alguns, o desaparecimento da matéria, e, portanto, a derrocada da ideologia materialista. Sabemos que essa crise da filosofia não deixou de causar estragos nos meios marxistas: mais ou menos em toda parte, na II Internacional, o materialismo perdia terreno, enquanto o revisionismo filosófico, o kantismo, a doutrina de Mach encontravam adeptos.

É ao longo dessa crise que Lênin soube aproveitar a fertilidade e a eficácia da ideologia materialista. Lênin via muito claramente que a subversão da física não tocava em nada as bases filosóficas do materialismo. Quando a física dá uma definição inteiramente nova da estrutura da matéria, é evidente que a filosofia materialista deve dela se aproveitar. Mas quaisquer que sejam as descobertas da física, qualquer que seja o conteúdo concreto das leis e das hipóteses que fundam, a única questão fundamental da teoria do conhecimento permanece inalterada. Eis o que diz Lênin a esse respeito:

O único ponto de vista justo, o do materialismo dialético, deve ser formulado assim: os elétrons, o éter e todo o resto existem ou não fora da consciência humana, enquanto realidade objetiva? É a essa questão que os cientistas devem responder sem hesitação e eles respondem sempre afirmativamente, da mesma forma que admitem a existência da natureza como anterior ao nascimento do homem e da matéria orgânica. A questão está assim decidida em favor do materialismo, pois, como já vimos, a noção de matéria nada mais significa, do ponto de vista da teoria do conhecimento, do que a realidade objetiva, cuja existência é independente da consciência humana e é refletida por esta.
 
No entanto, essa resposta justa e decisiva constitui para Lênin apenas um ponto de partida. Explicando a crise, analisa o idealismo reacionário ao qual dá origem e demonstra irrefutavelmente que as hipóteses novas que serão construídas sobre fenômenos novos não tocam em nada as bases da teoria do conhecimento materialista. Sublinha igualmente que crise da física é ao mesmo tempo a do antigo materialismo. Não é a matéria que desaparece, não é a categoria gnosiológica da matéria que muda, mas é o método teórico do materialismo mecanicista que desmorona por causa da incapacidade em apreender fenômenos novos de maneira adequada. As causa de sua falência são antes de mais nada a rigidez dogmática de suas categorias, a preponderância da doutrina mecanicista, a incompreensão do relativismo das teorias da ciência e, enfim, a ausência do método dialético. Lênin nos diz que
 
a física nova devia macular-se de idealismo, essencialmente porque os físicos ignoravam tudo da dialética. Combatiam o materialismo metafísico (na acepção engelsiana do termo e não dos positivistas, isto é, de Hume), e lutando contra seu caráter unilateral e mecanicista, terminaram por minar os fundamentos do materialismo. A negação da imutabilidade da estrutura e das qualidades até então conhecidas da matéria conduziu-os à negação da própria matéria, em outras palavras, à negação da realidade objetiva do mundo físico. A negação do caráter absoluto das leis fundamentais mais importantes levou-os a colocar em dúvida a existência de toda lei objetiva na natureza e declarar que as leis naturais eram simplesmente “convenções”, “necessidades lógicas” etc. Postulando o caráter aproximativo e relativo do conhecimento, foram levados a negar o objeto que existe independentemente do conhecimento, objeto que esse conhecimento reflete de uma maneira aproximativa e relativamente justa etc., etc.

Vemos portanto que é precisamente para defender o materialismo que Lênin dirige-se contra o materialismo antigo e que é ainda a defesa do materialismo que o leva a acentuar os problemas da dialética. Lênin ataca frontalmente esses problemas, colocando a questão da relatividade do conhecimento. O método dialético formula essa questão da maneira seguinte: como a relatividade do conhecimento — a das leis, teoremas etc. — pode constituir um elemento necessário, inelutável, do absoluto? Como ocorre que a relatividade do conhecimento não destrói a objetividade das leis e teoremas, assim como a objetividade e a permeabilidade ao conhecimento do mundo exterior?

Somente a dialética pode fornecer-nos a resposta a essa questão. Para todo pensamento mecanicista, metafísico ou atolado na lógica formal, a verdade não pode ser senão absoluta ou relativa. Não há transição: é preciso escolher entre os dois. O materialismo não-dialético não escapa também a essa alternativa. Ora, o relativismo e, com ele, o agnosticismo terminaram necessariamente por impor-se ao pensamento antidialético moderno porque a evolução das ciências e a evolução da própria vida impõe-nos a todo momento novas provas da relatividade dos fenômenos, assim como o conhecimento que temos deles.

A questão que Lênin põe, em presença da crise da física moderna e da falência do materialismo não-dialético, tem portanto um sentido bem mais profundo e mais geral que a ocasião que lhe serve de pretexto. Comentando a crise da física moderna, Lênin não se limita a fazer o processo do materialismo não-dialético, mas sublinha que o idealismo atual é incapaz de assimilar os fatos novos trazidos à luz pela evolução da ciência. Só a forma de sua falência é particular, porque resulta numa ideologia relativista, que aliás se afirmará ao longo da evolução do pensamento moderno. A título de exemplo, bastará evocar o papel da probabilidade no existencialismo francês.

À questão assim posta por Lênin, Hegel tinha já dado uma resposta dialética, declarando que o relativo era um componente, mas somente uma componente, da dialética. Em relação à totalidade, não se chega à negação da verdade objetiva, mas à definição histórica e gnosiológica da aproximação da verdade. Eis como Lênin expõe esse princípio:

Para o materialismo moderno, isto é, para o marxismo, somente os limites da aproximação da verdade objetiva são historicamente determinados, enquanto que a existência dessa verdade mesma é absoluta, tanto quanto nosso progresso em direção a ela... O que é historicamente determinado é a data e as circunstâncias da conclusão de nosso conhecimento da essência das coisas... mas o fato de que toda descoberta de tal natureza é um progresso do “conhecimento absolutamente objetivo”, é ele mesmo absoluto. Em suma, toda ideologia é historicamente determinada, mas é absoluto que toda ideologia científica corresponde uma verdade objetiva, isto é, um elemento da natureza absoluta. Objetar-me sem dúvida que essa distinção entre verdade relativa e verdade absoluta é bem vaga. Responderei a essa objeção dizendo que minha distinção é suficientemente vaga para impedir a transformação da ciência em dogma no sentido pejorativo da palavra, isto é, em uma coisa morta, rígida, petrificada, mas que é ao mesmo tempo suficientemente nítida para traçar, nítida e irrevogavelmente, a fronteira entre o fideísmo e o agnosticismo de um lado, o idealismo filosófico e os sofismas dos discípulos de Kant e de Hume, de outro.

Somente o materialismo dialético pode chegar a essa concepção, flexível e intransigente ao mesmo tempo, da relatividade enquanto momento do absoluto. Sua fé no Weltgeist autorizava a Hegel uma convicção tão profunda na existência objetiva e na inteligibilidade do mundo exterior, que pode perfeitamente conceber a relatividade enquanto momento, sem cair no relativismo. Em Hegel, esse reconhecimento da natureza dialética da realidade roça mais uma vez, aliás, o limite da dialética materialista. O idealismo atual ao contrário, quando tenta ultrapassar o agnosticismo puro ou o solipsismo, só pode perder-se em mitos sem fundamento, frequentemente demagógicos, ou então elaborar pensamentos, ideais e experiências vividas que não pertencem a ninguém e que são tidas como “elementos comuns” ao mundo objetivo e ao mundo subjetivo. Para a filosofia moderna. a escolha está portanto limitada entre um mito confessado e o mito que procura esconder-se. Mas permanece fatalmente anticientífica e antiprogressista, porque, suas sínteses fundam-se apenas num único elemento.

O pensamento que se constrói sobre tais bases não poderia ser dialético. Se bem que idealista, o pensamento de Hegel era dialético, mesmo que seu Weltgeist abarcasse, ainda que sob um aspecto mitificado, o conjunto da natureza e da sociedade, como também a história desta. Além disso, a concepção hegeliana não era dogmática e rígida, mas sim a representação móvel do processo universal da vida, renovando-se sem cessar pela morte.

Uma tal concepção é impossível para o “terceiro caminho” do idealismo moderno. Não é por acaso que a revolução de 1848 marca o término da crise da filosofia hegeliana, à qual deveriam suceder diversas variantes do materialismo mecanicista e do idealismo subjetivo, muito diferentes entre si mas todas igualmente antidialéticas. Não é por acaso que essa época vive também o apogeu da influência de Schopenhauer, que qualificava a dialética de “delírio”. Enfim, não é por acaso que Kierkegaard, o adversário mais intransigente da dialética hegeliana, torna-se o pensador em moda nos anos que deveriam preceder o advento do fascismo. Essas poucas considerações bastam sem dúvida para indicar quão intransponível é o abismo entre o materialismo dialético e todas as outras correntes do pensamento no estágio do imperialismo. É aliás precisamente a consciência dessa contradição irreconciliável que explica o vigor decisivo da argumentação, nos escritos filosóficos de Lênin. Lênin via acertadamente, desde o início, o que se preparava; sabia que todas essas teorias distintas, redigidas numa linguagem completamente inacessível à média das pessoas, forjariam as armas filosóficas, políticas e sociais da reação mundial.

Lênin sabia, como grande pensador dialético, extrair o lado positivo deste conjunto de fatos negativos. Assim como as leis da dialética ensinam, a negação é a força motriz do progresso. É evidente que não falamos das teorias reacionárias e dos mitos, mas dos próprios fenômenos, que fundam estas visões do espírito. A negação fértil, força motriz do progresso, reside sempre nas questões e não nas respostas. Ora, no caso de que nos ocupamos, trata-se da crise física e da derrocada da antiga noção da matéria. Lênin combatia os comentadores idealistas desse fenômeno e estudava com interesse e compreensão o próprio fenômeno, tal como se manifestava na crise das ciências naturais. Também devia ele compreender que a derrocada das concepções do materialismo mecanicista marcava precisamente o momento do nascimento da concepção nova do materialismo dialético. “A física moderna, escreve, está em vias de dar à luz o materialismo dialético”. Citamos acima a crítica leninista das concepções de Plekhanov sobre a história da filosofia. Aqui, Lênin não se contenta em exercer uma crítica. Por sua própria ação prática, opôs sua concepção verdadeiramente marxista do progresso ideológico da humanidade à imagem desfigurada e grosseira que o materialismo mecanicista fez dele.

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LUKÁCS, G. Existencialismo ou marxismo? Tradução de José Carlos Bruni. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pp .219-228.
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