quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

Entre nomes e descrições: Frege, Russell e o atual rei da França


 
por Paulo Ayres

A notória divisão que Gottlob Frege faz entre sentido (Sinn) e referência (Bedeutung), a mesma que lhe permite manter um elo com o senso realista, é justamente o que representa um certo incômodo para a tradição extensionista da filosofia da linguagem que se segue a partir dele, visto que a abordagem nominalista se intensifica no decorrer da "filosofia analítica". Bertrand Russell é, nesse sentido, o mais destacado interlocutor da geração que surge imediatamente da obra fregeana no início do século XX. A lacuna, por assim dizer, que salta aos olhos é como a esquematização do autor alemão simplesmente oferece a abstenção de valor de verdade para determinadas sentenças.

A dependência do valor semântico (enquanto valor de verdade) da referência consegue explicar as proposições que se referem a crenças, devido ao conceito fregeano de "objeto" ser mais extenso que o físico. Contudo, o princípio da composicionalidade parece comprometido, pois nem sempre substituir dois nomes sinônimos garante o valor de verdade do todo — as sentenças de crença explicitam isso. Com efeito, a solução está na propriedade que Frege denomina "sentido". Esse "ingrediente do significado" (MILLER, p. 37) é mais imediato e acessível que a referência do objeto particular.

É através do sentido que Frege resolve a questão dos nomes portadores, como o mitológico "Ulisses". Tal dualidade permite o filósofo conceber expressões que tenham sentido, mas não têm valor semântico, isto é, que o usa sintaticamente numa expressão coerente em suas partes constituintes e com nome próprio. Diz algo com sentido, mas sem referência (valor semântico). A tese que Frege tira daí é a de que sentenças que se referem enquanto objetos sem referencial (sem valor semântico) não se deve avaliar semanticamente como verdadeiro ou falso. O peso colocado sobre a referência, na proposta fregeana, cobra o preço da análise que suspende sentenças.

E mesmo que o conceito de "sentido" em Frege reivindique a objetividade para além das representações, não evita a imprecisão por considerar como nomes próprios todos os conceitos além dos predicados. Essa é justamente a porta de entrada para Russell aprofundar a logicização linguística ao reduzir a questão semântica às descrições definidas. Em suma, questionar o próprio conceito de "nome próprio", base da obra fregeana, passa a ser o seu movimento de ruptura — movimento esse de intensificação do formalismo.

Diferente de Frege, Russell considera o nome próprio como uma indicação empírico-direta com um objeto nomeado: "isso é... aquilo é", como se apontássemos para a singularidade ao dizer esses nomes. Nomes próprios, assim sendo, são "secos", "diretos", e não portadores de sentido. Aliás, a dualidade realista sentido-referência estava na mira da navalha nominalista que Russell empunhava sem dó.

A questão dos nomes sem portadores é, para Russell, uma questão de descrições definidas vazias. E até mesmo os nomes naturais seriam camuflagens para essa abordagem, isto é, "descrições definidas disfarçadas". As sentenças que predicam realidade/irrealidade (existência afirmada/negada) de um nome próprio, por exemplo — algo que o agnosticismo de Frege postulou como sem sentido —, o agnosticismo de Russell vê apenas uma descrição (definida ou indefinida) sendo mencionada e, portanto, até ela passível de ser significante. Algo em sintonia com a linguagem ordinária, onde frequentemente falamos que "tal coisa existe" ou "não existe".

Russell concorda com a diferenciação analítica de Frege, quando esse diz que numa preposição como "Scott é Scott" e "Scott é o autor de Waverley" são distintas, ou seja, uma tautologia (A = A) e uma predicação (A = B), contudo, desconsidera a unidade de sentido como nomeação em sinônimos. O objeto linguístico, nessa perspectiva, se move integralmente como descrições. Aspecto negativo das navalhadas: mais descontinuidade, mais fragmentação, ou se quiser, mais análise voltada para si mesmo (e a analítica consiste justamente em despedaçar o conhecimento). O aspecto positivo da mesma abordagem e meta russelliana, conseguida com sacrifícios: Se tudo é descrição passível de ser formulada em lógica simbólica adequada, todos as proposições podem ser afirmadas/negadas, emitindo valores de verdade.

Como se pode dizer que a expressão "o atual rei da França é careca" é falsa sem recorrer à ontologia (a bruxa generalizada como "metafísica" pelos racionalistas formais)? O descritivismo de Russell, ao fazer de todas as sentenças descrições, almeja isso. Sendo uma descrição sem objeto, é uma sentença falsa. Independente do empenho epistemológico de Russell e do senso ontológico-platônico de Frege, é curioso como a filosofia da linguagem, e a tradição analítica que se forma daí em diante, é como uma cirurgia desnecessária e ultra-tecnológica para realizar algo bem simplório, chegando às raias do risível certas vezes. Enquanto isso, na vida cotidiana, com a sua linguagem ordinária, muitos estão carecas de saber da falsidade do "atual rei da França".

= = =
Referências:

FREGE, G. "Sobre o sentido e a referência". Trad. Sérgio R. N. Miranda (UFOP). In: Fundamento, v.1, n. 3, maio/ago., 2011, p. 21-44.
MILLER, A. Filosofia da linguagem. Trad. Evandro Luis Gomes, Christian Marcel de Amorin, Perret Gentil Dit Maillard. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2010.
RUSSELL, B. Introdução à filosofia matemática. Trad. Maria Luiza Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
= = =

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Inglaterra e Brasil: duas rotas do social-liberalismo em duas notas


por Ricardo Antunes
ensaio em PDF/2013

I. A rota original

No início de 1997, quando o Tony Blair saiu-se vitorioso das eleições no Reino Unido, vários segmentos de esquerda, em várias partes do mundo, viram nesse evento o fim da nefasta era do neoliberalismo inglês. Parecia que a era Thatcher tinha finalmente sido derrotada, quase 20 anos depois. Dotado no passado de uma força relativa, o Labour Party (Partido Trabalhista) agora denominado New Labour, voltava ao poder.

Diferentemente de muitas experiências internacionais, na Inglaterra havia sido o TUC (Trades Union Congress, a central sindical Britânica) que dera origem ao Partido Trabalhista e que, desde então, se constituía no pilar básico de sustentação do trabalhismo. Mediados pela vinculação sindical, parte significativa da classe trabalhadora inglesa garantia seus votos ao trabalhismo, conferindo base sindical a ação política do Partido. E foi deste modo que o Partido Trabalhista esteve muitas vezes no comando do país, especialmente depois do pós-II Guerra, até a ascensão de Thatcher em 1979.

Com a ascensão do conservadorismo de Thatcher, uma nova agenda transformou substancialmente o Reino Unido, destruindo a trajetória anterior. A conversão do sindicalismo em inimigo central do neoliberalismo trouxe consequências diretas no relacionamento entre o Estado e classe trabalhadora.

Dirigentes sindicais foram excluídos das discussões da agenda estatal e retirados dos diversos órgãos econômicos que contavam com participação sindical. Foi com base nesse projeto que o neoliberalismo britânico vigorou até a vitória eleitoral do Partido Trabalhista[1]. O destroçamento social e sua política, viram eclodir, particularmente em fins de 1980, uma onda de explosões sociais que atingiu em cheio o conservadorismo thatcherista, do que foram exemplo as greves operárias e a revolta contra o poll tax (imposto que taxava especialmente os trabalhadores e os mais pobres).

Talvez se possa inclusive dizer que a importante vitória eleitoral do New Labour, no início de 1997, se deveu menos em função das propostas políticas de Tony Blair do que ao brutal desgaste do thatcherismo. Quando as eleições ocorreram no início de 1997, as classes dominantes britânicas já haviam concluído as mutações no interior do Partido Trabalhista. Um enorme processo de “modernização” operava-se no seu interior, levando-o a abandonar completamente seu passado trabalhista-reformista, para se converter em uma espécie de Partido Democrático inglês, apoiado especialmente pelos novos extratos da burguesia.

Era preciso buscar, no interior da “esquerda”, as condições de continuidade da política vigente na fase do neoliberalismo. Era preciso acenar com mudanças superficiais para que o essencial da pragmática do neoliberalismo fosse preservado.

Tanto no desenho da sua economia política, quanto nas mais distintas esferas da sua ação político-institucional, na sua política externa, nos valores e no ideário que propugna, o governo Blair e a sua terceira via podem ser compreendidos em alguns de seus significados básicos. Alguns anos antes mesmo de sua vitória eleitoral, já desde 1994, desenvolveu-se dentro do Partido Trabalhista uma “nova” postura que busca um caminho alternativo, tanto em relação à social-democracia clássica, quanto ao neoliberalismo thatcheriano. Quando Tony Blair iniciou o processo de conversão do Labour Party em New Labour, pretendia-se não só um maior distanciamento diante do conteúdo trabalhista anterior, mas também limitar ao máximo os vínculos com os sindicatos, além de eliminar qualquer vestígio anterior que pudesse lembrar sua designação “socialista” que, ao menos como referência formal, permaneceu até 1994 nos estatutos do Partido Trabalhista.

O debate levado à frente por Tony Blair, em torno da eliminação da cláusula 4 da Constituição partidária (que defendia a propriedade comum dos meios de produção), resultou na criação de um substitutivo que expressa limpidamente as mutações que estavam ocorrendo no interior do Labour Party. Em substituição à cláusula que se referia à propriedade coletiva, foi introduzida a defesa do empreendimento do mercado e rigor da competição, selando, no interior do programa do New Labour (NL), a vitória da economia de livre mercado diante da fórmula anterior.

A retórica socialista e a prática trabalhista e reformista anteriores encontraram seu substitutivo na defesa da economia de mercado, mesclando liberalismo com traços da “moderna” social-democracia. Começava então a se desenhar o que foi denominado por Tony Blair, respaldado em seu suporte intelectual mais sólido, dado por Anthony Giddens e David Miliband, como “terceira via”.

Em seu sentido mais profundo, a “terceira via” do NL teve como objetivo dar continuidade ao projeto de “modernização” do Reino Unido, redesenhando a alternativa inglesa dentro da nova configuração do capitalismo contemporâneo. Nessa sua nova fase, o NL aprofundou sistematicamente a legislação que flexibilizou e desregulamentou o mercado de trabalho iniciado por Thatcher.

A flexibilização e precarização do trabalho, as privatizações, a abertura comercial etc., deveriam, entretanto, ser contrabalançadas com ações como o reconhecimento dos sindicatos no interior das empresas, o estabelecimentos de níveis mínimos de salário, assinatura da Carta Social da União Europeia, entre outras medidas defendidas pelo primeiro-ministro britânico no início de seu mandato, para que seu governo não fosse pura e simplesmente entendido como uma continuidade integral em relação ao período dos conservadores. Era preciso dar-lhe um verniz social-liberal.

No essencial, entretanto, a “terceira via” configurou-se como uma continuidade da fase thatcherista uma vez que, dado o enorme desgaste que o neoliberalismo acumulou ao longo de quase 20 anos, acabou sendo fragorosamente derrotado eleitoralmente por Tony Blair[2].

O partido que emergiu vitorioso no processo eleitoral de 1997, despojado de seus vínculos com o seu passado reformista-trabalhista, converteu-se, então, no New Labour pós-Thatcher, “moderno”, defensor vigoroso da “economia de mercado”, da flexibilização do trabalho, das desregulamentações, da “economia globalizada e moderna”, enfim, em tudo aquilo que foi fundamentalmente estruturado durante a fase clássica do neoliberalismo.

Sua “defesa” do welfare state, por exemplo, converteu-se no desmonte de muitos aspectos da social-democracia e do trabalhismo inglês. Tony Blair, quando propugnava “modernizar” o welfare state, de fato o desconstruía, erodindo os direitos do trabalho, da previdência e da saúde públicas, definidos por Blair como “herança arcaica”.

Seu principal ideólogo, Giddens (1999), apresentou a seguinte analítica:

A “terceira via” oferece um cenário bastante diverso dessas duas alternativas [social-democracia e neoliberalismo]. Algumas das críticas formuladas pela nova direita ao Welfare State são válidas. As instituições de bem-estar social são muitas vezes alienantes e burocráticas; benefícios previdenciários criam direitos adquiridos e podem acarretar consequências perversas, subvertendo o que originalmente tinham como alvo. O Welfare State precisa de uma reforma radical, não para reduzi-lo, mas para fazer com que responda às circunstâncias nas quais vivemos hoje.

E acrescentava: politicamente, “a terceira via representa um movimento de modernização do centro. Embora aceite o valor socialista básico da justiça social, ela rejeita a política de classe, buscando uma base de apoio que perpasse as classes da sociedade”.

Economicamente, a terceira via propugna a defesa de uma “nova economia mista”, que deve pautar-se pelo “equilíbrio entre a regulamentação e a desregulamentação e entre o aspecto econômico e o não-econômico na vida da sociedade”. Ela deve “preservar a competição econômica quando ela é ameaçada pelo monopólio”. Deve também “controlar os monopólios naturais” e “criar e sustentar as bases institucionais dos mercados” (GIDDENS, 1999).

Ou conforme a formulação de Tony Blair:

A terceira via é a rota para a renovação e o êxito para a moderna social- democracia. Não se trata simplesmente de um compromisso entre a esquerda e a direita. Trata-se de recuperar os valores essenciais do centro e da centro- esquerda e aplicá-los a um mundo de mudanças sociais e econômicas fundamentais, e de fazê-las livres de ideologias antiquadas. (...) Na economia, nossa abordagem não elege nem o laissez-faire nem a interferência estatal. O papel do governo é promover a estabilidade macroeconômica, desenvolver políticas impositivas e de bem-estar, (...) equipar as pessoas para o trabalho melhorando a educação e a infra-estrutura, e promover a atividade empresarial, particularmente as indústrias do futuro, baseadas no conhecimento. Nos orgulhamos de contar com o apoio tanto dos empresários, como dos sindicatos (BLAIR apud ANTUNES, 1998, p.99).

E, no plano de sua política externa, sua ação oscilou entre a completa subserviência e a adesão ativa à política externa imperialista dos Estados Unidos, de que foi exemplo a ação britânica na Guerra de Kossovo ou na Guerra contra o Iraque.

A sua postura antissindical e contrária aos trabalhadores foi emblemática e está estampada na derrota da Greve dos Doqueiros de Liverpool (que ocorreu entre 1995/1998); na aceitação do essencial do desmonte da era Thatcher; na destruição continuada dos direitos do trabalho (e em alguns casos a intensificação, como a restrição dos direitos sociais das mães solteiras e dos deficientes físicos, que provocou uma onda enorme de protestos contra Tony Blair), assim como na política de ampliação das privatizações, sem falar na adesão servil e indigente – acima referida – de Tony Blair ao imperialismo político-militar dos EUA. Tudo isso evidencia que a “terceira via” foi, no fundamental, uma forma de preservação do essencial do neoliberalismo em sua política econômica, em seu desenho ideopolítico e em sua pragmática, com um verniz social-democrático cada vez mais descorado. Foi o que restou da social-democracia na fase mais destrutiva do capitalismo, que tenta mascarar alguns elementos do neoliberalismo, preservando sua engenharia econômica básica e sua ideologia regressiva. Por isso é que a “terceira via” tem sido uma via alternativa que o capitalismo vem gestando para manter o fundamental o que o neoliberalismo clássico construiu e que quer de todo modo preservar.

II. A rota surpreendente

Lula sagrou-se vitorioso nas eleições presidenciais em 2002, depois de três tentativas anteriores. Essa vitória ocorreu, entretanto, em um contexto internacional e nacional bastante diferente daquele dos anos 1980, quando o Brasil presenciou um importante ciclo de lutas sociais. Tratava-se, então, de uma processualidade contraditória: a vitória da “esquerda” no Brasil ocorrera quando ela estava mais fragilizada, menos respaldada e menos ancorada em seus polos centrais que lhe davam capilaridade (classe operária industrial, assalariados médios e trabalhadores rurais) e quando o transformismo já havia metamorfoseado e convertido o Partido dos Trabalhadores (PT) em um Partido da Ordem (ver ANTUNES, 2004, 2006 e 2001).

Ao contrário da potência das lutas sociais do trabalho dos anos 1980, o cenário era de completa mutação e a eleição de Lula em 2002 acabou sendo uma vitória política tardia. Nem o PT, nem o Brasil, eram os mesmos. O país havia se desertificado pelas medidas neoliberais da era FHC, e o PT já não era mais um partido de classe, oscilando entre a resistência ao neoliberalismo e a aceitação da política da moderação e da adequação à ordem. E que cada vez mais se aproximava de uma política de alianças muito ampla, com vários setores de centro e mesmo de direita, configurando-se em um partido defensor de um programa cada vez mais policlassista.

Um exemplo é bastante esclarecedor: no final do governo FHC, em 2002, houve um acordo de “intenções” com o FMI, que exigia dos candidatos à presidência concordância com os termos do referido acordo. O PT de Lula publicou então um documento denominado Carta aos brasileiros, no qual evidenciava sua política de subordinação ao FMI e aos setores financeiros internacionais.

Quando o governo Lula se iniciou, em 2003, suas primeiras medidas sinalizavam um projeto pautado mais pela continuidade ao neoliberalismo do que pela sua ruptura, ainda que sob a variante do social-liberalismo. Sua política econômica preservava a hegemonia dos capitais financeiros, reiterando as determinações do FMI. Mais ainda, ao preservar a estrutura fundiária concentrada, dar incentivo aos fundos privados de pensão e determinar a cobrança de impostos aos trabalhadores aposentados, o governo Lula não alterava nenhum traço essencial da formação social brasileira. Isso significou uma ruptura com parcelas importantes do sindicalismo dos trabalhadores públicos, que passaram a fazer forte oposição, especialmente no primeiro mandato do ex-presidente.

A política de liberação dos transgênicos – atendendo às pressões de grandes transnacionais –, a política monetarista de superávit primário para garantir a remuneração dos capitais financeiros e a não realização da reforma agrária, além do esquema de corrupção que ficou conhecido como “Mensalão”, demonstravam que o primeiro governo Lula dava clara continuidade aos fundamentos da política neoliberal.

Como esse governo se sustentava num leque de forças políticas, tendo em sua base de apoio desde setores de esquerda até núcleos da direita tradicional brasileira, as alterações que ocorreram no início do segundo mandato permitiram que reconquistasse o apoio majoritário da população brasileira, entre todas as classes sociais, conformando-se em um governo policlassista dos mais bem-sucedidos, que recusava qualquer política de relativo benefício à classe trabalhadora.

Essa primeira alteração significativa foi a resposta à crise do “Mensalão” como ficou conhecida a política de corrupção que quase levou o primeiro governo ao impeachment. Era fundamental que o segundo governo Lula ampliasse sua base de sustentação, desgastada perante a classe trabalhadora organizada que havia se decepcionado politicamente com as medidas do primeiro governo Lula.

Foi então que se deu, no início já do segundo mandato, uma alteração importante: Lula, depois da falência do programa social Fome Zero, ampliou o programa Bolsa-Família, uma política social focalizada e assistencialista, de grande amplitude que atingiu mais de 12 milhões de famílias pobres, com renda salarial baixa e que por isso recebiam um complemento.

Tal medida – assumida como exemplo pelo Banco Mundial – ampliou significativamente a base social de apoio a Lula em seu segundo mandado. Atingia não a classe trabalhadora organizada (sua base de origem), mas os setores mais pauperizados da população brasileira, que tanto dependem das políticas do Estado para sobreviver. Comparado aos governos anteriores, especialmente ao de FHC, essa política assistencialista de Lula assumiu uma proporção quantitativa muitas vezes maior, o que compensou o apoio que Lula e o PT perderam em vários setores organizados da classe trabalhadora – ainda que o tenham recuperado posteriormente, ao menos em parte.

Por outro lado, se o salário mínimo brasileiro ainda é aviltante – Dilma foi taxativa em manter a proposta de R$ 545, o que demonstra que sua política de combate à fome é puro assistencialismo e incapaz de tocar no lucro do grande capital, do qual o governo Lula foi servo exemplar –, é preciso reconhecer que, em comparação ao governo anterior de FHC, tal política assistencialista trouxe poucos, mas efetivos ganhos reais. O máximo que se poderá dizer do governo Lula é que ele foi “melhor” do que o de FHC. Não pode, então, haver maior exemplo da derrota que significou para a esquerda que não se vergou.

Desse modo, seu governo fechou as duas pontas da tragédia social no Brasil: remunerou de forma exemplar as diversas frações do capital (especialmente o financeiro, mas também o industrial e aquele vinculado ao agronegócio) e, no extremo oposto da pirâmide social, onde encontramos os setores mais “desorganizados” e “empobrecidos” da população brasileira – que dependem do estado para sobreviver – implementou uma política social assistencialista, além de pequena valorização do salário mínimo. É decisivo acrescentar, contudo, que tais medidas não confrontaram nenhum dos pilares estruturantes da desigual sociedade brasileira, onde a riqueza também continuou se ampliando significativamente.

Assim, é mister enfatizar que o governo Lula tanto minimizou os níveis de indigência social como aumentou o grande capital, abrindo o País ao capital forâneo e, triste papel de nosso semibonaparte, transnacionalizou setores importantes da burguesia brasileira.

A grande popularidade que o governo Lula encontrou ao findar o seu governo – tendo mais de 80% de aceitação nas pesquisas de opinião pública – e que foi suficiente para garantir a vitória de sua candidata, a ex-ministra Dilma Roussef, à presidência do Brasil, decorre, então, do fato de que, por um lado, seu programa social desenvolveu uma variante de assistencialismo com uma amplitude muito superior àquelas que haviam sido implementadas anteriormente pelos governos conservadores oriundos estritamente das classes dominantes.

Por outro, o fez garantindo altos lucros, comparáveis aos maiores da história recente do Brasil, para os grandes capitais financeiros (bancos e fundos de pensão), bem como para os capitais produtivos (siderurgia, metais pesados, agroindústria, commodities, etc.).

É importante acrescentar ainda outro ponto vital, que marcou particularmente o segundo mandato: quando a crise mundial atingiu fortemente os países capitalistas centrais, em 2008, o governo tomou medidas claras no sentido de incentivar, por intermédio do Estado, a retomada do crescimento econômico por meio da redução de impostos em setores fundamentais da economia, como o automobilístico, o eletrodoméstico e a construção civil. Incorporadores de força de trabalho expandiram fortemente o mercado interno, compensando assim a retração do externo que, no contexto da crise, diminuiu a compra das commodities produzidas no Brasil.

Se isso já não bastasse, seu governo contou ainda com o apoio de forte parcela da burocracia sindical, que se atrelou ao Estado por depender diretamente de verbas públicas. A Central Única dos Trabalhadores (CUT) e a Força Sindical, inimigas no passado, convivem bem em diversos ministérios do governo Lula.

Recentemente, o governo Lula aprovou uma medida que acentuou o controle estatal sobre os sindicatos ao determinar que as centrais sindicais passariam a receber o Imposto Sindical, criado na Ditadura Vargas, no final dos anos 1930. Ao mesmo tempo em que as centrais foram legalizadas (o que é positivo), passaram a ter direito de recolher o Imposto Sindical. Isso significa que, no limite, podem viver com recursos desse imposto e de outras verbas públicas, praticamente sem a necessidade de realizar a cotização autônoma entre seus associados. Sem mencionar o fato de que, durante o governo Lula, centenas de ex- sindicalistas receberam altos salários e comissões para participar do conselho de empresas estatais e ex-estatais, além de inúmeros cargos em ministérios e comissões criadas pelo governo.

No que concerne à liderança política, Lula a exercitou de forma exemplar ao manter relação “direta” com as massas, exercendo seus fortes traços arbitrais, e frequentemente messiânicos. Em uma quadra histórica em que as frações dominantes não puderam garantir a sucessão presidencial nem em 2002 nem em 2006, Lula tornou-se expressão de um governo excepcionalmente favorável às classes dominantes, uma vez que fala para os pobres, vivencia as benesses do poder e garante a boa vida dos grandes capitais, encarnando uma espécie de semibonaparte, recatado, cordial e célere diante da hegemonia financeira e hábil no manuseio de sua base social. Sua nova forma de ser provocou uma consciência invertida de seu passado e deslumbramento em relação ao presente.

Como consequência desse transformismo, seu governo demonstrou enorme competência em dividir os trabalhadores privados dos trabalhadores públicos. O mais importante partido de classe das últimas décadas, que tantas esperanças criou no Brasil e no mundo, exauriu-se como partido de esquerda transformador da ordem para se qualificar em gestor potente dos grandes interesses dominantes no País. Converteu-se em um partido que sonha, enfim, em “humanizar o capitalismo”, combinando uma política de parcerias com o grande capital – aí está seu traço privatizante, que procura esconder de todo modo – e de incentivo amplo à transnacionalização dúplice do Brasil (de fora para dentro e vice-versa), ao mesmo tempo em que se utiliza da força do Estado para incentivar seu desenvolvimento e expansão, e minorar, por meio de políticas sociais, o pauperismo existente.

O governo Lula – que poderia ter efetivamente iniciado o desmonte do neoliberalismo no Brasil – acabou tornando-se dele, inicialmente prisioneiro e, depois, lépido agente, ainda que sob a forma do social-liberalismo, incapaz de principiar a desestruturação dos pilares da dominação burguesa no Brasil.

= = =
Notas
[1] Ver particularmente o capítulo V do livro Os sentidos do trabalho, op. cit., onde desenvolvemos detidamente as ideias apresentadas neste artigo.
[2] Outro traço onde Blair procurou expressar descontinuidade em relação à política de Thatcher aflorou ao tomar algumas decisões políticas, como o reconhecimento do Parlamento na Escócia (e também na Irlanda e País de Gales), mas que não se constituem como um entrave para a continuidade do projeto do capital britânico, reorganizado durante a fase neoliberal.
= = =
Referências
ACKERS, P.; SMITH, Chris; SMITH, P. (Org.). The new workplace and trade unionism: critical perspectives on work and organization. Routledge, Londres, 1996.
ANTUNES, R. (Org.). Neoliberalismo, trabalho e sindicatos: reestruturação produtiva no Brasil e na Inglaterra. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 1998.
______. A desertificação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula. Campinas: Autores Associados, 2004.
______. Uma esquerda fora do lugar. Campinas: Autores Associados, 2006.
______. “O Brasil da Era Lula”. In: Margem Esquerda, 16. São Paulo: Boitempo, 2011.
CALLINICOS, A.; HARMAN, C. The changing working class. Londres: Bookmarks, 1989. DOCKERS Charter: n. 21. In: LIVERPOOL Dockers Shop Stewards' Committee. Liverpool, nov. 1997.
GIBSON, D. (1997). The Sacked Liverpool Dockers Fight for Reinstatement. Liverpool, 26 nov. 1997.
GIDDENS, A. The Third Way: The Reneval of Social Democracy. Londres: Polity Press, 1998.
______. “A terceira via em cinco dimensões”. Folha de S. Paulo, São Paulo, Mais!, 21 fev. 1999, p. 5.
GRAY, A. New Labour: New Labour Discipline. Capital & Class, Londres, n. 65, verão 1998.
KELLY, J. “Union Militancy and Social Partnership”. In: ACKERS, P. et al. The New Workplace and Trade Unionism, Londres, Routledge, 1996.P. 77-82.
McILROY, J. The Enduring Aliance?: Trade Unions and the Making of New Labour 1994-1997, Manchester: International Centre for Labour Studies, 1997.
______. Trade Unions in Retreat: Britain Since 1979. Manchester: International Centre for Labour Studies, 1996.
______. Trade Unions in Britain Today. Manchester: Manchester University Press, 1995.
= = =
Resumo: O objetivo deste texto é analisar dois caminhos alternativos ao neoliberalismo praticado por partidos claramente conservadores. Discute as experiências do New Labour na Inglaterra, com a vitória de Tony Blair, em 1997 e do Partido dos Trabalhadores, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, procurando indicar seus elementos de continuidade e descontinuidade em relação aos seus respectivos governos anteriores.

Palavras-chave: social-liberalismo; neoliberalismo; trabalhismo.

Abstract: The aim of this paper is to analyze two alternative paths to neoliberalism practiced by parties clearly conservative. Examines the experiences of New Labour in Britain, with the victory of Tony Blair in 1997 and the Partido dos Trabalhadores (Workers Party), with the election of Luiz Inácio Lula da Silva, in 2002, seeking to indicate its elements of continuity and discontinuity in relation to their respective previous governments.

Keywords: social liberalism, neoliberalism, labourism.
= = =
ANTUNES, R. “Inglaterra e Brasil: duas rotas do social-liberalismo em duas notas”. In: Currículo sem Fronteiras, v. 13, n. 2, p. 204-212, mai/ago, 2013.
= = =

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

ARTE REALISTA| Telepatia


Sinopse: Um vídeo sobre isso mesmo que você está pensando agora. (Porta dos Fundos)
= = =
Telepatia (farsa, BRA, 2018), de Rodrigo Magal.
= = =

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Adoecimento psíquico na pós-graduação: a universidade burguesa e o imperativo da luta



por Marcela Pereira Rosa

“Não aguento mais a depressão. Socorro”. Escreveu com corretivo branco nas portas do banheiro feminino a mulher que não aguenta mais a depressão e marcou suas dores nas cores cinzas da universidade, pedindo socorro. Em outro prédio da mesma universidade, outros escritos gritam: “Eu me sinto burra demais aqui”.

A questão do adoecimento psíquico na pós-graduação vem sendo tema corrente de discussões no espaço universitário. As notícias de suicídio no ambiente acadêmico trouxeram à tona relatos sobre a difícil realidade vivenciada pelos pesquisadores brasileiros no interior das instituições de ensino superior. Os dados sobre o estado de saúde mental de pós-graduandos, embora ainda insuficientes, já apontam para um cenário alarmante. Em uma pesquisa[1] realizada com estudantes de pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB), 90% dos participantes afirmaram sofrer de ansiedade. Outros sintomas frequentes foram desânimo (72%), irritabilidade (63%) e isolamento social (39%). Recentemente uma matéria[2] publicada pelo El País sob o título “O doutorado é prejudicial à saúde”, apontava que na Bélgica, em um estudo realizado com 3.659 doutorandos, 41% dos participantes se sentiam sob pressão constante, 30% deprimidos ou infelizes e 16% sentiam-se inúteis. Nos Estados Unidos, 39% dos doutorandos sofrem de depressão moderada ou severa, em comparação com 6% da população geral.

Como vemos, não é por acaso que o adoecimento psíquico tem entrado em pauta quando o assunto é a pós-graduação. O cotidiano na pós é hoje, mais do que nunca, marcado pelo crescente produtivismo acadêmico. O incentivo à produção massificada coloca o conhecimento sob a ordem dos critérios quantitativos e relega a qualidade das pesquisas a um segundo plano – quando não a anula por completo –, configurando um profundo esvaziamento do caráter crítico dos estudos. A pressão por produção e publicação é regra; a meritocracia impera e acirra a competição entre os pares. É preciso citar também a precarização das condições de trabalho dos pesquisadores, que incluem o baixo valor das bolsas, cortes de financiamento, falta de material e equipamentos e a insuficiência ou mesmo a inexistência de políticas de permanência estudantil, como acesso à moradia, alimentação de qualidade e transporte gratuito, apenas para citar alguns aspectos. Na condição de pós-graduando o pesquisador não é visto formalmente como um trabalhador e não dispõe de direitos trabalhistas básicos. Há uma profunda cobrança em relação aquilo que se deve cumprir sem nenhuma contrapartida, como remuneração justa e reajuste anual do valor das bolsas – vale lembrar que o último reajuste ocorreu no ano de 2013. É preciso citar, ainda, os casos não raros de assédio, que marcam as relações assimétricas entre orientadores e orientandos.

Como se todos esses fatores não bastassem para tornar o trabalho na pós-graduação bastante difícil, muitas vezes é preciso enfrentá-los sozinho. A trajetória acadêmica é, via de regra, um percurso bastante solitário. Consequência da ordem meritocrática e individualista, a produção científica é compreendida como tarefa estritamente individual: se a cada um cabe o mérito do êxito, a cada um cabem os percalços do caminho. A falta de espaços de trocas e construções coletivas contribui para reafirmar essa lógica.

A verdade é que o meio acadêmico na pós-graduação tem se tornado nocivo. A competitividade e a pressão a que os pesquisadores estão submetidos são fatores comuns no dia-a-dia da universidade. Desse contexto também faz parte a vaidade intelectual. A coisa toda funciona como se algumas poucas pessoas encarnassem em si mesmas a genialidade e a intelectualidade. São os brilhantes acadêmicos que têm sempre algo a dizer, mesmo que a grande massa de reles mortais sequer compreenda o que está sendo dito. Não são incomuns aí os relatos de pós-graduandos que se sentem inferiores por acharem que não têm o mesmo domínio teórico que supostamente teriam seus seletos colegas e que alimentam por isso um profundo sentimento de culpa. “Eu me sinto burra demais aqui”.

Competição, meritocracia, individualismo, produtivismo e precarização das condições de trabalho não são, no entanto, “privilégios” do meio acadêmico. Ao contrário, a sociabilidade capitalista faz deles importantes pilares na sustentação e manutenção de seu funcionamento. A universidade reproduz e sustenta essa lógica, determinada desde fora. Em outras palavras, todos esses elementos, que fazem do meio acadêmico fonte de adoecimento, encontram suas raízes, não apenas dentro, mas também fora dos muros da universidade. Por isso, é preciso colocar a questão da saúde mental e do adoecimento psíquico na pós-graduação nos marcos da sociabilidade capitalista. O atual cenário de adoecimento na pós-graduação é ininteligível sem o reconhecimento de sua profunda inserção nas determinações socioeconômicas do capital.

Ao discutirmos o adoecimento psíquico, é preciso ter em vista que o psiquismo humano e tudo o que a ele se relaciona, tem suas raízes nas condições objetivas e deve, portanto, ser compreendido como produto e processo social, determinado histórica e culturalmente. Isso significa que o adoecimento não pode ser visto a partir de uma chave de compreensão estritamente biológica, mas deve ser situado no bojo dos processos históricos e culturais que são, em última instância, determinados pela maneira como a humanidade produz e reproduz sua existência – o modo de produção.

Os autores soviéticos da Psicologia Histórico-Cultural, já no início do século XX, apontavam para uma relação de dependência entre a constituição do psiquismo e o modo de vida (compreendido aqui de maneira ampla, enquanto sociabilidade): os seres humanos são criados pela sociedade na qual vivem. A esse respeito, vale sempre enfatizar: afirmar que há determinantes objetivos que fundam o desenvolvimento do psiquismo não significa dizer que há uma relação mecânica entre os aspectos materiais e os subjetivos. A subjetividade não é uma reprodução mecânica da vida material. A influência da base material sobre a superestrutura psíquica consiste em um processo complexo, mediado por um grande número de fatores objetivos e subjetivos.

O fato é que, em uma sociedade dividida em classes, precisamos reconhecer que a personalidade e a subjetividade têm também um caráter de classe. Aqui cabe retomarmos as colocações do autor soviético Lev Vygotski, que é categórico a esse respeito: “A psicologia (…)só pode ter uma conclusão direta: confirmar o caráter de classe, a natureza de classe e as distinções de classe como responsáveis pela formação dos tipos humanos. As várias contradições internas, as quais se encontram nos diferentes sistemas sociais, encontram sua expressão acabada tanto no tipo de personalidade quanto na estrutura do psiquismo humano de um período histórico determinado”[3]. Assim como é preciso compreender o desenvolvimento psíquico a partir da sociedade que o determina, é preciso compreender que há aspectos objetivos que determinam nosso estado de saúde mental. Por isso, falar em processos de sofrimento e adoecimento implica retirá-los do âmbito das explicações naturalizantes e individualistas e do campo restrito da concepção biomédica que predominam nos dias de hoje.

Marx já nos dizia que, no capitalismo, é o trabalhador que existe em função da saúde do processo de produção, e não o processo de produção em função da saúde do trabalhador. Se partimos da compreensão de que o fazer pesquisa é um trabalho e o pós-graduando é, portanto, um trabalhador, discutir a saúde na pós-graduação nos leva aos determinantes dos processos de produção no meio acadêmico. O que, afinal, determina a realização de pesquisas e a produção de ciência e tecnologia nas instituições brasileiras de ensino superior?

Mészáros[4][5] já apontava que é preciso ter em vista que a ciência nunca pôde estabelecer seus próprios objetivos de produção. Ao contrário, ao longo de todo o seu desenvolvimento ela foi obrigada a servir à expansão do valor de troca dentro do quadro de um sistema de produção orientado para o mercado. Nessa lógica, a tecnologia capitalista é estruturada com a finalidade única da reprodução ampliada do capital a qualquer custo social. Assim, temos que os interesses capitalistas determinam a produção do conhecimento científico no interior das universidades. Ciência e tecnologia não são neutras e não podem ser compreendidas independentemente das relações de produção. Basta notar, por exemplo, que os processos de industrialização nos países de capitalismo dependente, como é o caso do Brasil, foram diretamente definidos a partir de fora pelos países que estão no centro do capitalismo, assim como ocorre com o que é produzido em termos de ciência e tecnologia em nosso país até os dias atuais.

Em uma ampla discussão sobre o tema, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes)[6] lembra que é preciso ter em vista que a dinâmica de produção de ciência e tecnologia está diretamente determinada pela divisão internacional do trabalho. O lugar que os países da América Latina e África desempenharam e ainda vêm desempenhando nesse cenário, a saber, o de produtores de mercadorias primárias a serem exportadas para os países centrais, acarretou em um baixo nível de desenvolvimento tecnológico, já que a produção desse tipo de produto requer grande quantidade de força de trabalho e pouca tecnologia. Assim é que a dependência técnico-científica é um dos esteios da dependência econômica dos países periféricos em relação aos países centrais. A produção industrial no Brasil, por exemplo, baseou-se na montagem de produtos e não em sua concepção e criação, atividades que implicam desenvolvimento de um complexo de ciência e tecnologia interno e autônomo. Daí concluímos que o lugar que o Brasil ocupa no contexto da economia mundial tem influência direta sobre a produção de ciência e tecnologia e a realização das pesquisas na pós-graduação. É impossível pensar o trabalho na pesquisa apartado dos fatores socioeconômicos que o determinam.

É nesse contexto que a ofensiva neoliberal tem avançado sobre nossas universidades e precarizado ainda mais as condições de trabalho nesse âmbito. Há um projeto de desmonte das universidades públicas que vem sendo implementado a passos largos, através de um conjunto de iniciativas que incluem desde a Emenda Constitucional 95, passando pela reforma trabalhista e, mais recentemente, a lei da terceirização irrestrita. Todas essas medidas contribuem, cada uma a sua maneira, com o sucateamento da universidade pública e afetam diretamente as condições de produção de pesquisa. A falta de professores e orientadores, os cortes de bolsas de pesquisa, a fragilização de políticas de permanência estudantil e a precarização da estrutura necessária são uma realidade no cotidiano da pós-graduação. Soma-se ao cenário a dificuldade que muitos profissionais após concluírem a pós-graduação vêm enfrentando para se inserir no mercado de trabalho.

A despeito de toda essa falta de infraestrutura, é preciso produzir, cada vez mais e cada vez em menos tempo. A lógica produtivista há tempos adentrou a academia brasileira e acelerou profunda e demasiadamente nosso ritmo de trabalho e de vida, nossa experiência do tempo, o que exerce impacto direto sobre nossas subjetividades e nossa saúde mental. Os critérios de avaliação da Capes mantêm e aprofundam essa lógica. Para ficarmos apenas com um dos tantos exemplos possíveis, basta lembrar que nesse sistema a publicação de artigos conta mais pontos do que a publicação de livros. Aqui as palavras de ordem são “produzir” e “publicar”. A passos largos elas caminham juntas.

Esse é o cenário pintado pelos interesses capitalistas na universidade pública e é sobre essas condições que o trabalho de pesquisa na pós-graduação é desenvolvido. Por tudo isso, pensar a produção do adoecimento psíquico na pós-graduação implica pensar as próprias condições de produção de ciência nas instituições de ensino superior nos marcos da sociedade capitalista. E é precisamente por não ser possível desvincular tais questões, que o enfrentamento às condições que produzem o adoecimento não pode ser apartado da luta contra o capitalismo, contra os determinantes últimos que o produzem.

Na tentativa de enfrentar o adoecimento vivenciado na pós-graduação, alguns programas, institutos ou mesmo universidades começaram a implementar grupos de apoio, acolhimento ou atendimento psicológico. Em muitos casos as iniciativas são tomadas pelos próprios pós-graduandos, que contratam um profissional para prestar atendimentos em grupo. Tais iniciativas nos dizem de uma demanda real e da necessária construção de estratégias de enfrentamento à questão do adoecimento. Esse enfrentamento, no entanto, não pode ficar restrito ao trabalho psicoterapêutico individual ou mesmo em pequenos grupos. Se não houver clareza quanto à necessidade de uma mudança estrutural e se esse trabalho não estiver atrelado a esse projeto de mudança, seus resultados serão sempre muito limitados, visto que não buscam transformar os reais aspectos que produzem o adoecimento. O trabalho psicoterapêutico é profundamente importante, mas para que não caia em uma lógica individualista de enfrentamento, precisa estar atrelado a um profundo questionamento das bases sociais do próprio adoecimento psíquico e do fortalecimento de estratégias coletivas de enfrentamento às condições que impõem esse adoecimento.

A árdua tarefa de desvincular a universidade das determinações capitalistas destrutivas e das condições que produzem o adoecimento em seu interior, nos coloca frente à necessidade de estabelecer novos princípios e orientações na sociedade como um todo, de modo que o trabalho realizado na universidade possa florescer a serviço dos objetivos da emancipação humana. O enfrentamento ao adoecimento na pós-graduação é, essencialmente, o enfrentamento anticapitalista. É o imperativo da necessidade da luta, a luta por uma universidade popular, que rompa com os interesses capitalistas e coloque-se a serviço das reais necessidade da classe trabalhadora. É a luta por um projeto de sociedade que coloque a baixo a estrutura burguesa da universidade, que destrua a lógica meritocrática, individualista, competitiva e produtivista que vigora dentro e fora dos muros da academia.

= = =
Notas:
[1] http://www.anpg.org.br/wp-content/uploads/2018/04/Resumo-question%C3%A1rio-2.0.pdf
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/15/ciencia/1521113964_993420.html
[3]VIGOTSKY, L. (1930) A transformação socialista do homem. Disponível em: http://www.gaeppe.unir.br/uploads/57575757/A%20Transformacao%20Socialista%20do%20Homem%20-%20Lev%20Vigotski.pdf
[4] MÉSZÁROS, I. (2004). O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial.
[5] MÉSZÁROS, I. (2002). Para além do capital. São Paulo: Boitempo Editorial.
[6] Cadernos ANDES. (2018). Neoliberalismo e Políticas de C&T no Brasil: um balanço crítico (1995-2016). Brasília, n.28. Disponível em: http://portal.andes.org.br/imprensa/documentos/imp-doc-186083876.pdf

= = =

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Classes fundamentais e classes de transição


Resumo: O presente estudo tem como finalidade investigar os fundamentos históricos das classes sociais e as linhas gerais de sua atual configuração na sociedade burguesa. Para isso, recorre-se à última grande obra do filósofo húngaro G. Lukács, que desenvolve a ontologia marxiana do ser social explicitando as categorias mais universais do processo de humanização e desumanização. A ontologia dialética de Marx, que supera as antinomias do método metafísico, possibilita entender a relação de pares como essência-fenômeno e captar, de maneira mais precisa, os aspectos da universalidade, particularidade e singularidade das categorias. Deste modo, as classes sociais e suas atividades se mostram em suas identidades históricas revelando o que está em continuidade e o que está em descontinuidade. E, nesse sentido, o desenvolvimento da sociedade de classes indica uma dinâmica histórica distinta para as classes fundamentais e para as classes de transição.
Palavras-chave: Lukács, classes sociais, sociedade capitalista, ontologia dialética, trabalho, trabalho abstrato

Abstract: This study aims to investigate the historical foundations of social classes and the general trends of their current configuration in bourgeois society. For this, it is used the Hungarian philosopher G. Lukács’s last great study, in which he develops the Marxian ontology of the social being, explaining the most universal categories of the process of humanization and dehumanization. Marx's dialectical ontology, which overcomes the antinomies of the metaphysical method, makes it possible to understand the relation of pairs as essence-phenomena, and to grasp, more precisely, the aspects of the universality, particularity, and uniqueness of categories. In this way, social classes and their activities are shown in their historical identities revealing what is continuity and what is in discontinuity. And, in this sense, the development of class society indicates a distinct historical dynamic for the fundamental classes and for the transition classes.

Keywords: Lukács, social classes, capitalist society, dialectical ontology, work, labour.
= = =
arquivo em PDF
= = =
AYRES, Paulo. Classes fundamentais e classes de transição: Lukács e os fundamentos histórico-ontológicos das classes sociais. Universidade Estadual de Maringá (UEM). Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Filosofia. Programa de Pós-graduação em Filosofia (Dissertação de Mestrado). Maringá, 2018.
= = =

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Sobre o social-liberalismo, a Old Left

A velha esquerda e a razão

O novo irracionalismo se considera crítico e denuncia um status quo visto como hostil à vida. A partir de uma certa leitura de Foucault, Deleuze e Lyotard, e sob a influência de um neonietzscheanismo que vê relações de poder em toda parte, ele considera a razão o principal agente da repressão, e não o órgão da liberdade, como afirmava a velha esquerda. 


Sérgio Paulo Rouanet, As razões do iluminismo
São Paulo: Companhia de Letras, 1987, p. 11-12.

O liberalismo rousseauniano

A obra de Rousseau, que pode ser considerada como representante da ala esquerda da pequena burguesia francesa na época da Ilustração, demonstra nitidamente o caráter progressista e ao mesmo tempo ambíguo do pensamento burguês. Rousseau criticou duramente o feudalismo e o despotismo, defendeu a democracia liberal e a igualdade jurídica entre os homens. "O Rousseau revoltado e anarquizante das primeiras obras volta-se totalmente para o mito da sociedade primitiva, perfeita e feliz. Sabe-se, por exemplo, que, no Discurso sobre as ciências e as artes (1750), ele foi a ponto de denunciar as desvantagens das ciências e das técnicas, das artes e do progresso em geral." Depois, afasta-se da ideia de uma comunidade de bens e transforma-se num reformista, propondo um novo "estado de sociedade" capaz de reencontrar a felicidade perdida. No Contrato social, Rousseau é um republicano que defende uma sociedade de artesãos e pequenos camponeses. Nesse período, ele já afirma que o "contrato social" é um recurso analítico e que o "estado selvagem" é uma suposição abstrata, não obstante continue raciocinando nos termos desse contrato. "Suponho aos homens — diz Rousseau — terem chegado a um ponto em que os obstáculos que atentam à sua conservação no estado natural excedem, pela sua resistência, as forças que cada indivíduo pode empregar para manter-se nesse estado. Então este estado primitivo não pode subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse seu modo de ser". O pensamento burguês partia dessa abstração, seja considerando essa situação verossímil ou apenas como ponto de partida teórico-analítico. De qualquer modo, a sociedade era percebida como uma soma de indivíduos, e estes como depositários de uma essência humana plenamente determinada. Rousseau não foi o primeiro, mas sua evolução sintetiza o impasse do pensamento burguês e de seus possíveis desdobramentos.
Adelmo Genro Filho, "Ecologismo e marxismo: dois pesos e duas medidas".
In: Marxismo, filosofia profana. Porto Alegre: Tchê, 1986, pp. 49-80.

A categoria da gradualidade no hegelianismo

Em polêmica contra Hegel, que salienta a necessidade de que a mudança político-constituicional ocorra de modo lento e gradual, Marx observa que "a categoria da transição gradual, em primeiro lugar, é historicamente falsa e, em segundo, não explica nada". O jovem Marx, portanto, não tem dúvidas sobre o fato de que Hegel se coloca em posições gradualistas e reformistas, mas esse é apenas um aspecto do problema; o outro consiste no fato de que a crítica a tais posições é conduzida com argumentações e categorias que não apenas pressupõem a lição de Hegel, mas que parecem ser literalmente extraídas do seu texto. Na Enciclopédia podemos ler: "A mudança gradual é o último refúgio superficial para poder atribuir tranquilidade e duração às coisas" (par. 258 Z). Se a Filosofia do direito é dominada, pelo menos no momento em que expõe um concreto programa político para a Alemanha, pela categoria da gradualidade, provocando com isso o protesto e a crítica de Marx, a Lógica é dominada pela categoria de salto qualitativo e, portanto, suscita, a tal propósito, o consenso e o entusiasmo de Lenin.

É claro: estamos na presença de dois planos diversos, que Engels procurou identificar e distinguir como "método" e "sistema". Como tivemos oportunidade de ver no primeiro capítulo do presente trabalho, a duplicidade de planos é de algum modo percebida também pelos críticos reacionários. Naturalmente, tal distinção não identifica dois planos nitidamente separados, mas ela mesmo tem caráter metodológico. Podemos dizer que o "método" reflete a experiência histórica da Revolução Francesa e das grandes perturbações da época, e reflete ainda as exigências profundas da luta teórica contra a ideologia da reação e da conservação; o "sistema" remete a escolhas políticas imediatas. Pode-se dar um exemplo. A celebração da categoria da gradualidade, antes de se tornar uma palavra de ordem do moderantismo liberal, é uma palavra de ordem dos ambientes conservadores e reacionários; na Prússia, os porta-vozes dos Junker se contrapõem em nome da "sábia gradualidade" às reformas, consideradas arrojadas, que desmantelam o edifício feudal prussiano depois da derrota de Jena.

Domenico Losurdo, Hegel, Marx e a tradição liberal: liberdade, igualdade, estado.
Trad. C. A. F. Nicola Dastoli.
São Paulo: Editora Unesp, 1998, p. 196-197.

A comunicativa conciliação de classes em Habermas

A importância de J. Habermas para o debate teórico nos últimos anos do século XX~não deve ser subestimada. Por duas razões fundamentais. A primeira porque, ao se manter no campo do racionalismo em um momento em que a maré montante do pós-modernismo se fez sentir com mais força, Habermas se credenciou para uma sobrevida que se estenderá para muito além da crise das formas mais bárbaras que a ideologia conservadora assumiu nas últimas décadas. A derrocada do pós-modernismo que hoje assistimos certamente deixará intacta a influência de seu pensamento.

A segunda porque a Teoria do agir comunicativo é o primeiro constructo filosófico, depois de Marx, capaz de fornecer uma concepção articulada de toda a reprodução da sociabilidade contemporânea. E capaz de o fazer — e daqui deriva seu enorme potencial ideológico do ponto de vista o mais conservador — a partir de uma categoria, o mundo da vida, que se propõe como substituta do trabalho enquanto fundante do mundo dos homens. Ao elaborar a Teoria do agir comunicativo, Habermas se converteu no autêntico filósofo da burguesia nesta época de crise, pois forneceu as bases para uma concepção de mundo em tudo compatível com o mercado e com as relações político-democráticas do capitalismo desenvolvido.

Sérgio Lessa, Mundo dos homens: trabalho e ser social.
São Paulo, Boitempo, 2002, p. 205.

= = =

sábado, 8 de setembro de 2018

ARTE REALISTA| Despirocar


Despirocar
Alexandre Kumpinski / Ian Ramil

Faz tempo eu tô com azia, durmo mal, tenho alergia
Quando acordo, nem bom dia, e a ducha fria ainda me dói
Em atraso permanente, escolho a roupa, escovo os dentes
Abro a porta da frente e a luz do dia me corrói

Então eu me pergunto, quando sobra algum segundo
Em que eu reflito sobre o mundo, se funciona e coisa e tal
Concluo que tá preta a situação, pra lá de azeda
O leite que 'inda sai da teta nem sequer é integral

Desesperado eu penso em gargalhar
Mas decido respeitar a minha dor
Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez, de vez
Talvez, de vez

No bus eu subo afoito, engolindo algum biscoito
Acotovelo logo uns oito, eu tô cansado e vô sentar
Depois do chacoalhaço, tô no trampo e um palhaço
Mesmo me vendo um bagaço, já começa a me ordenhar

Digito, atendo o fone, meio dia eu sinto fome
Me levanto sem meu nome e vou pra fila do buffet
Depois de dois cigarros, acomodo o meu pigarro
Me reponho de bom grado e termino o afazer

Desesperado eu penso em gargalhar
Mas decido respeitar a minha dor
Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez, de vez
Talvez, de vez

Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez seja melhor
Despirocar de vez
Talvez, talvez


Cansado eu chego em casa, o Willian Bonner me afaga
Me contando alguma fábula de algo que ocorreu
Requento qualquer rango, cambaleio até o meu canto
'Inda nem fechei o tampo e o meu corpo adormeceu
Desesperado eu penso em gargalhar
Mas decido respeitar a minha dor

Talvez seja melhor despirocar
De vez, talvez, de vez
De vez, talvez

= = =
Antes que tu conte outra (BRA, 2013) - Apanhador Só.
= = =

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

O silêncio agnóstico de Wittgenstein


por György Lukács

Em nossas considerações até aqui, o problema da ontologia ficou deliberadamente limitado à estrutura interna da ciência, a sua manifesta relação gnosiológica com a realidade, ao significado gnosiológico dos problemas ontológicos na apreensão de fatos concretos etc. Mas é claro que com isso o papel das interrogações e das respostas ontológicas na vida humana não está ainda suficientemente esboçado. Pois, como veremos na segunda parte, ao tratar do trabalho, a correta relação do homem com a realidade existente em si, que transcende a consciência, de fato é o problema central da vida cotidiana, da práxis cotidiana. Pode-se mesmo afirmar, legitimamente, que a atitude científica da humanidade tem sua origem geneticamente vinculada a essa necessidade elementar. Porém, mesmo com essa gênese a questão nem de longe está esgotada. Em sua essência mais íntima, todo o âmbito da atividade do ser humano é determinado pela realidade existente em si, ou seja, pelo seu espelhamento na consciência predominante em cada época: essas concepções atuam sobre os diversos conteúdos e formas da práxis humana. Esse complexo só pode receber um tratamento adequado e aprofundado no âmbito das ciências sociais concretas, nas análises concretas da práxis humana, incluída a ética. Por isso, aqui é possível apenas fornecer um esboço indicativo, sumário, dos fatos mais fundamentais. Apesar disso, tal esboço é indispensável porque o predomínio mundial do neopositivismo, que emerge de maneira gradual, justamente por sua postura de neutra recusa a toda ontologia tornou-se um fator decisivo na formação das modernas concepções de mundo, tanto no sentido da teoria pura como no da práxis a ela intimamente vinculada, na acepção mais ampla da palavra práxis. Já conhecemos a atitude universalmente dominante dos neopositivistas: trata-se do benevolente desprezo do manager, enfim completamente adulto e amadurecido, pelas ilusões infantis-românticas daqueles que, não encontrando realização e satisfação no perfeito funcionamento de um mundo inteiramente manipulado, perseguem sonhos originados nos estágios primitivos, há muito ultrapassados, do desenvolvimento da humanidade.

Todo conhecedor do desenvolvimento da filosofia moderna sabe, porém, que desse modo a análise realizada não abrangeu a totalidade do pensamento burguês socialmente significativo. Em paralelo com a marcha triunfal do positivismo aparecem continuamente filosofias que, embora posicionadas, do ponto de vista gnosiológico, em terreno totalmente ou bastante semelhante, consideram que se devem discutir os problemas “históricos” e “tradicionais” da filosofia e encontrar soluções para eles em conformidade com a nova época. Do ponto de vista da atitude social, isso significa que esses pensadores reconhecem o irresistível avanço da manipulação no capitalismo contemporâneo como inelutável, como “destino”, mas procuram ostentar uma resistência espiritual às suas consequências ideológicas espontâneas, imediatas. A grande influência desses pensadores mostra que exprimiram e exprimem uma necessidade social efetivamente existente. Também nesse particular não podemos ter a intenção de discutira fundo, in extenso, esse movimento de protesto. Remetemos somente a Nietzsche, na segunda metade do século passado, e a Bergson, na virada do século. Que a teoria do conhecimento de Nietzsche estava muito próxima do positivismo, já o havia reconhecido Vaihinger, certamente uma competente testemunha, posto que ele – ao tempo da redação da Filosofia do como se – foi um dos primeiros a tentar reinterpretar Kant em conformidade com um positivismo coerente. Nesse contexto, considerava, junto com Forberg e Lange, Nietzsche como um companheiro de jornada, e com toda razão não o perturbava o fato de Nietzsche ter construído sobre sua teoria do conhecimento positivista uma metafísica (sem aspas) romanticamente aventureira, que de certa maneira tinha sua parte crucial no “eterno retorno”. A relação íntima da teoria do conhecimento bergsoniana com o pragmatismo é por demais conhecida para que seja necessário analisá-la mais de perto. E a lista de tais figuras intermediárias poderia ser estendida à vontade.

Porém, aqui nos interessa mais o presente do que a sua pré-história. Sobre o polo “rebelde”, da moda, oposto à autossuficiência do neopositivismo, ao conformismo neopositivista diante da generalização da manipulação, justamente agora em pleno florescimento, sobre o existencialismo, enfim, falaremos em breve. Entretanto, parece-nos instrutivo, por exemplo, constatar não somente a profunda influência de Carnap e Heidegger, como extremos opostos, sobre o pensamento moderno, mas, sobretudo, o fato de serem os extremos de correntes que socialmente provêm da mesma origem, razão pela qual têm muito em comum em seus fundamentos teóricos e se completam em tal polaridade. Por isso, parece-nos necessário, antes de passar ao exame do existencialismo, aludir brevemente a um neopositivista que esteve de acordo com os neopositivistas em todas as questões gnosiológicas fundamentais do neopositivismo, que muito contribuiu para fundamentar e aperfeiçoar suas aspirações e influiu essencialmente no desenvolvimento da doutrina, mas que, por permanecer filósofo, e não simplesmente um manager da vida intelectual, vivenciou como problemas os tradicionais problemas da filosofia, e mesmo se – conforme a boa ortodoxia neopositivista – os tenha expulsado do reino da filosofia científica, sentiu-os como autênticos problemas, como um conflito interior: pensamos em Wittgenstein.

Não é preciso mostrar detalhadamente que as concepções de seu Tractatus (consideraremos aqui apenas essa, que é a mais famosa e influente obra de Wittgenstein) estão muito próximas das concepções da escola neopositivista. Também repudia toda problemática ontológica como metafísica, como absurda. Ele afirma:
A maioria das proposições e questões escritas sobre temas filosóficos não é falsa, mas um contrassenso. Por isso, não podemos de modo algum responder a questões dessa espécie, mas apenas estabelecer seu caráter de contrassenso. A maioria das questões e proposições dos filósofos decorre de não entendermos a lógica de nossa linguagem. [...] E não é de admirar que os problemas mais profundos de fato não sejam problemas.[1]
O conteúdo dessa formulação está plenamente de acordo com a doutrina geral do neopositivismo, tem meramente outra entonação. Não somente evoca a sensação de que os problemas desterrados da filosofia científica permanecem, a despeito de tais decretos,como problemas humanos autênticos, mas deixa entrever igualmente um estranho dilema na postura interior em relação ao mundo sem ontologia, sem realidade, da perspectiva neopositivista. Wittgenstein refuta também o nexo causal como superstição[2]. Por essa razão, considera coerentemente um mito, no sentido dos velhos mitos, uma moderna visão de mundo fundada sobre as ciências naturais, na medida em que pretenda ser visão de mundo.
Toda moderna visão de mundo baseia-se na ilusão de que as chamadas leis naturais sejam as explicações dos fenômenos naturais. Portanto, ficam diante das leis naturais como diante de algo inatingível, como os antigos diante de Deus e do Destino. E uns e outros estão certos e estão errados. Os antigos certamente são mais claros, na medida em que reconhecem um fechamento evidente, ao passo que no novo sistema deve parecer que está tudo explicado.[3]
Porém, é notável e interessante que em Wittgenstein o rigoroso logicismo incline-se às vezes para uma ontologia irracionalista. Assim, ele contesta – em total conformidade com a rigorosa semântica neopositivista – que a marca das proposições lógicas seja a generalidade e explica essa sua tese afirmando que uma proposição não generalizada pode ser tão tautológica, isto é, uma proposição da lógica, quanto uma proposição generalizada. Nesse contexto, porém, esta notável sentença é introduzida: “Ser geral quer dizer apenas: valer casualmente para todas as coisas”[4]. O que significa, aqui, “casualmente”? Ainda que a expressão fosse interpretada num sentido puramente semântico, conduziria de todo modo a consequências irracionalistas, posto que, também em Wittgenstein, o logicismo matemático tem a função de produzir, entre as proposições singulares, sequências homogêneas da redutibilidade de uma à outra, por conseguinte, de criar – pelo menos no plano da manipulação das proposições – séries de deduções logicamente conexas que excluem toda casualidade. A validade casual da generalidade para os objetos dos quais ela é a generalização transformaria num absurdo todas essas conexões, porque a pura casualidade não é redutível nem traduzível. Mas como dificilmente se poderia esperar de um lógico extremamente talentoso como Wittgenstein uma inconsequência metodológica dessa espécie, parece-nos que essa frase deve ser atribuída a uma involuntária derrapagem de Wittgenstein no ontológico, ao ser surpreendido pelo brilho intenso de uma profunda discrepância ontológica entre sua própria lógica matemática e a realidade subitamente tornada consciente.

Naturalmente trata-se de um episódio isolado, mas curiosamente não é o único. De fato, a observação franca e sincera sobre o solipsismo tem um caráter semelhante.Wittgenstein diz:
O que o solipsismo pensa é inteiramente correto, só que não pode ser dito, mas se mostra. – Que o mundo é meu mundo mostra-se no fato de que os limites da linguagem (da linguagem que só eu compreendo) significam os limites do meu mundo. – O mundo e a vida são um. – Eu sou meu mundo. (O microcosmo.) [...] O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo.[5]
Trata-se de muito mais do que a mera revelação de segredos escolares à la Heine. Mais uma vez, é uma súbita compreensão da realidade, o abismo da realidade repentinamente se escancara diante do neopositivista, e novamente ele renega, de maneira irracionalista,o sagrado dogma da neutralidade da esfera da manipulação no que se refere à subjetividade e à objetividade. Nesse caso, a oposição entre a impossibilidade de dizer – o neopositivista pode dizer tudo que é logicamente correto – e a mera possibilidade de mostrar, essencialmente irracionalista, denuncia uma atitude diante da realidade, em última análise, análoga à revelada em nosso exemplo anterior.

A conclusão do tratado traz uma espécie de síntese desse sentimento em relação à vida. Wittgenstein exprime-se ali com cativante franqueza:
Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham sido respondidas, os problemas de nossa vida não terão sido sequer tocados. Nesse caso, é claro que não restará mais nenhuma questão, e essa é precisamente a resposta. Percebe-se a solução do problema da vida no desaparecimento desse problema. (Não é por essa razão que as pessoas, para as quais, após longas dúvidas, o sentido da vida se tornou claro, não puderam dizer em que consiste esse sentido?) Há, entretanto, o inefável, ele se mostra, é o místico.[6] 
E é importante que esse raciocínio tenha sido precedido pelo aforisma: “O místico não é como o mundo é, mas que ele é”. Sob esse aspecto, e não do ponto de vista de um positivismo consistente, que o Tractatus conclui com máxima coerência: “Do que não se pode falar, deve-se silenciar”[7]. No entanto, quando a resposta de um filósofo ao que são os problemas da vida consiste na prescrição do silêncio, que outro significado pode haver nisso senão a confissão da falência dessa própria filosofia? Falência naturalmente não do ponto de vista do puro neopositivismo, que floresce, prospera e está conformado e feliz nessa situação, mas do ponto de vista da filosofia tal como sempre foi entendida pela humanidade desde seu despertar para a consciência e para a autoconsciência. Wittgenstein se refugia das consequências de sua própria filosofia no irracionalismo, só que é demasiado inteligente e filosoficamente lúcido para querer fazer desse abalo ontológico uma filosofia irracionalista própria. Ele se mantém fiel à sua causa, ao neopositivismo, e, diante do abismo, diante do beco sem saída de seu próprio pensamento, recolhe-se a um silêncio orgulhoso e recatado. Nesse silêncio, entretanto, ressoa um profundo não conformismo: do ponto de vista da vida, dos genuínos problemas da vida, a universalidade da manipulação é declarada nula, anti-humana e degradante para o pensamento humano autêntico. O comportamento de Wittgenstein é – naturalmente, sob o aspecto puramente intelectual – contraditório até a insustentabilidade. Justamente por isso, no entanto, expressa – por assim dizer, com um gesto filosófico – algo extremamente importante e contraditório para a presente situação social: o pensamento (e, sobretudo, o sentimento) daqueles que não vislumbram saída da manipulação geral da vida pelo capitalismo atual, mas que são capazes de contrapor-lhe apenas um protesto antecipadamente impotente – o silêncio de Wittgenstein.

= = =
Notas:
[1] Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus (Londres, 1955), p. 62.
[2] Ibidem, p. 108.
[3] Ibidem, p. 180.
[4] Ibidem, p. 162.
[5] Ibidem, p. 150.
[6] Ibidem, p. 186.
[7] Ibidem, p. 188.
= = =
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 74-79.
= = =

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Método dialético e método positivista

 
por José Chasin
texto em Word/1988

Algumas características do que chamei de tronco das tendências positivistas no campo gnosiológico do pensamento filosófico e da ciência do homem ou da ciência social.

Se há um tronco positivista, um conjunto de posições, não apenas as posições ligadas a Augusto Comte, há, por outro lado, um tronco dialético. São dois troncos e o tronco positivista tinha gnosiologicamente, epistemologicamente, como filosofia da ciência.

Do ponto de vista dialético não é possível pura e simplesmente adotar a subdivisão teoria do conhecimento, epistemologia, filosofia da ciência que já é por si o produto da perspectiva positivista. Do ponto de vista dialético, sem dúvida existe uma problemática do conhecimento e existe uma problemática da ciência. As coisas são extremamente interligadas. De modo que ao falar em epistemologia ou em gnosiologia eu estou remetendo sempre, simultaneamente, a uma teorética do conhecimento e a uma teorética da episteme. Mas, de modo inverso ao positivismo, estou remetendo a uma teoria da ciência, a uma teoria do conhecimento que não nasce a partir de uma reflexão pura e simples da observação do procedimento científico no campo rigorosamente laboratorial, entre aspas.

Enquanto todas as correntes pensam a gnosiologia e a epistemologia a partir das formas superiores da elaboração do espírito, isto é, tomam como ponto de partida resultados da autonomização da inteligência, do espírito, tomam um momento elevado do produto histórico da elaboração científica. O que eu quero dizer: quando um Kant, quando um Descartes, quando todos os pensadores da história da filosofia tomam a questão do conhecimento para tratar, quando convertem o fenômeno do conhecimento num objeto específico para examinar a partir da elaboração já de nível elevado que a ciência tem atingido, da matemática, da física, passam a refletir sobre o problema do conhecimento como se ele se instaurasse no instante em que o especialista recuasse diante do objeto, no espaço do seu laboratório – o laboratório pode ser a biblioteca – e começasse a refletir sobre o que é o conhecimento a partir desse instante. Tudo funciona como se o conhecimento se instaurasse a partir desse momento, o momento do conhecer sistemático, rigoroso, intelectual, elaborado, etc.

A dialética, não. A dialética toma como ponto de partida um instante muito mais natural e historicamente efetivo. A dialética instaura sua gnosiologia a partir do instante em que ela descobre no homem efetivo, não no homem especialista, no homem filósofo, no homem intelectual, mas no homem comum, no homem na sua cotidianeidade, a partir desse homem que trabalha, e eu grifo a palavra trabalha, é que instaura a problemática gnosiológica. Sendo a ciência, a filosofia, enfim as formas superiores do espírito resultado dessa gênese na cotidianeidade, produto de um distanciamento, produto de uma autonomização do espírito em relação ao cotidiano, há uma independentização deste pensamento. Sobre isto voltaremos. Eu quis apenas caracterizar aqui a diferença de raiz entre uma gnosiologia de ordem marxista e uma gnosiologia de ordem não marxista. Enquanto uma parte do laboratório a outra parte da condição histórico-concreta do homem efetivo, não do homem especulativo.

Na atualidade existem dois grandes ramos de respostas no que tange à problemática do conhecimento. Há dois conjuntos de respostas. Mais simples ainda. Há um conjunto de respostas e estas podem ser classificadas em dois ramos. O ramo positivista e o ramo dialético. Retomo os traços do positivismo. Primeiro a concepção do sujeito. (Trecho sobre as implicações políticas da relação sujeito-objeto).
(Obs: Falta a parte de caracterização do positivismo. Não foi gravada. Mas, foi desenvolvida no dia anterior).
Caracterização do ramo dialético. “A dialética trata da coisa em si”. Com estas únicas palavras se faz a dialética de Marx ser não apenas diferente de todo o tronco positivista, mas ser o seu oposto. Se a dialética trata da coisa em si e o positivismo recusa, evita tratar da coisa em si, nós estamos com dois troncos diametralmente distintos.

Ao se dizer que a dialética trata da coisa em si está-se subentendendo primeiro a possibilidade de o entendimento alcançar a integridade e a integralidade dos objetos postos para o conhecimento. A posição do método dialético concebe um ser cognitivo que alcança a totalidade do objeto. Alcançar o todo essencial do objeto, conhecê-lo no seu núcleo mais íntimo é compreendido como uma possibilidade real do sujeito.

Desde logo, portanto, há uma afirmação ontológica da gnosiologia marxiana. Sujeito que pode conhecer a totalidade do objeto e agora nós temos que parar um pouco sobre este sujeito. Sim, este sujeito pode conhecer a totalidade do objeto, mais do que isto, ele deve conhecer a totalidade do objeto, ainda mais, conhecer é só conhecer quando a totalidade do objeto é compreendida. Só é objetivo o conhecimento da totalidade. O conhecimento só é concreto quando referido ao todo.

A concepção do sujeito já é distinta da concepção do sujeito do positivismo. De um lado, no positivismo, o sujeito é um sujeito de consciência limitada, no caso da dialética, o sujeito é ilimitado. E essa infinitude do sujeito não está remetida pura e simplesmente à individualidade. O sujeito do conhecimento não é entendido como a individualidade singular concreta. O sujeito do conhecimento não é apenas a consciência individual isolada. Mais do que isso. A consciência individual isolada é de fato a consciência real, mas ela expressa um sujeito coletivo de conhecimento, que é o real responsável pela constituição da perspectiva que permite o conhecimento. Em última análise, os indivíduos reais é que consubstanciam esse conhecimento, mas eles consubstanciam em termos e na medida em que eles realizam uma condição de possibilidade objetiva que os ultrapassa.

Aqui o sujeito do conhecimento é, à semelhança do sujeito da história, um sujeito coletivo. Quem é o sujeito da história? São os indivíduos isolados? Não. As classes sociais são os sujeitos coletivos da história. As classes sociais é que realizam a história. Os dirigentes ostensivos individuais, que detêm as alavancas do poder do Estado, são representantes de uma política, quer dizer, de um interesse global de categorias sociais. O sujeito cognitivo é a classe. É no interior do sujeito coletivo que as individualidades realizam a apreensão cognitiva objetiva concreta exata.

Aqui é preciso diferenciar a classe como aquela que cria uma perspectiva do conhecimento, é a sua condição em si, isto é, independentemente da sua consciência. A classe em si, no conhecimento, o contorno da classe, o espaço sócio/histórico que ela ocupa, pela sua raiz de produção e reprodução material, isto é, pela sua raiz econômica, ela tem uma dada perspectiva, ela tem um dado espaço, ela tem uma dada presença que demanda independentemente da sua consciência um desdobramento. Esse desdobramento a que ela alude, no plano do conhecimento é ou não aproveitado pelas individualidades que da perspectiva dela se põem. Assim, o grande pensador, o grande cientista, o grande intelectual objetiva, realiza uma possibilidade tracejada pela existência em si da classe, consubstanciando um conhecimento possível. Mas que a classe enquanto conjunto não delimitado concretamente não efetiva. Quer dizer, a classe é o verdadeiro sujeito cultural, consequentemente o verdadeiro sujeito cognitivo, mas quem realiza a cognição são as consciências individuais. Não é uma consciência coletiva.

O que é consciência coletiva? O que se pensa aqui talvez Lucien Goldmann tenha feito uma aproximação interessante, é falar numa intra-subjetividade. Não intersubjetividade, como era em Kant. A objetividade kantiana é a identidade das diferentes consciências individuais. Cada consciência individual confere com a consciência individual do outro. Se viver a mesma situação e se tiver as mesmas informações ele conclui a mesma coisa. Resultado, a intersubjetividade kantiana é uma identidade das diferentes subjetividades individuais. No caso dialético, não é esta intersubjetividade que é aludida. Hegel já tinha feito a crítica da intersubjetividade. Porque a intersubjetividade significaria, pura e simplesmente, da perspectiva hegeliana, que o objetivo é aquilo que é comum à subjetividade. Se o verde me parece vermelho e se a todos o verde parece vermelho, o verde passa a ser objetivamente vermelho. Isto mostra que a intersubjetividade consolida o equívoco. A objetividade não é um parecer de.

A objetividade é realmente uma subordinação da subjetividade. A objetividade implica a regência objetiva sobre a subjetividade. Como o conhecimento, no método dialético, subentende o objeto regendo a cognição, enfim o primado gnosiológico está no objeto não no sujeito, ainda que o sujeito não seja inativo. Em última análise, quem configura a subjetividade é o objeto. Em Kant, é a subjetividade que organiza a objetividade. No caso da dialética, é a objetividade que organiza a consciência. Em vários pontos, pensando ao inverso de Kant temos a dialética.

Este sujeito coletivo, dentro do qual atuam e realizam os seus objetivos os sujeitos individuais, estes sujeitos individuais o realizam na medida em que o fazem da perspectiva de certas classes. Aí então, a objetividade é entendida como uma possibilidade de classe. É entendida como uma possibilidade do sujeito coletivo. E não como uma escolha do sujeito individual. Isso é um ponto decisivo. A objetividade não é o resultado da construção de um discurso rigoroso, mas a objetividade é o resultado de uma condição objetiva de possibilidade social que permite então a geração do discurso rigoroso. Dito de outro modo, a objetividade não é alcançada por um discurso de rigor, mas o discurso de rigor é constituído, possibilitado por uma potencialidade de classe.

Fora da dialética, a objetividade, isto é, a captura do real pelo discurso científico é resultado do encaminhamento de um discurso rigorosamente conduzido. É o discurso que tem o segredo da captura da realidade.

A dialética não nega a necessidade de um discurso rigoroso. Ao contrário, acentua que ele é imprescindível, porém dá um passo mais profundo. O discurso rigoroso é gerado por uma condição de possibilidade objetiva que transcende esse discurso e que é posto pelas necessidades e possibilidades das categorias sociais. As formas do discurso rigoroso não são consequência de uma opção do cientista, que escolhe entre o instrumento adequado e o instrumento inadequado. A própria escolha do instrumento é uma condição de possibilidade que ultrapassa o indivíduo e é tornada possível pela categoria social à qual o investigador se liga. Não é a ideia de que o investigador tenha que nascer naquela categoria social, isto é, só o investigador proletário conhecerá a verdade, todo investigador burguês só conhecerá a falsidade. Se o investigador burguês se colocar da perspectiva da categoria social proletária, abre para si a possibilidade da objetividade. O investigador proletário que se perspectiva pelas condições de possibilidade da burguesia, constituirá uma ciência falsa. A maior parte dos investigadores da perspectiva proletária, não são proletários. Não houve, até hoje, nenhum grande dialeta proletário.

Naquele momento, que é um largo momento de alguns séculos, a burguesia tem necessidade da verdade. Ela precisa da verdade para constituir o seu mundo. Ser objetiva corresponde às suas necessidade sociais. Ela então efetiva uma cognição objetiva. A partir de meados do século passado, a burguesia entra numa outra fase, numa fase em que, consolidado o seu poder, estruturada em todos os níveis a sua dominação, o prosseguir da efetuação do conhecimento objetivo leva a abalar a sua posição de dominação. Do ponto de vista intelectual, a verdade passa a ser inimiga de classe. O seu conhecimento tem de passar a ser um conhecimento que veda a possibilidade da objetividade. Não é uma escolha dos indivíduos da burguesia, é uma determinação coletiva de classe. Ela tem que recusar até mesmo os princípios com os quais ela lidou e a partir dos quais ela articulou a sua compreensão efetiva de mundo. Agora a sua compreensão de mundo tem de ser no mínimo uma barragem ao entendimento.

A questão que nós estudamos do entendimento e da razão. O homem limitado, o homem ilimitado. Para o iluminismo, a razão era ilimitada. A razão humana tinha a possibilidade de organizar o mundo do homem e o mundo da sociedade sob a forma racional total. É a mesma burguesia que dirá, com Augusto Comte, já antes um pouco, que o entendimento, a razão é limitada, o espírito é encolhido, o mundo não é capturável no seu todo. Exatamente o oposto do que ela dizia um ou dois séculos antes. É o mesmo sujeito que, em momentos históricos distintos de sua evolução sintetiza o mundo intelectualmente, teoricamente de modos diferentes. Contraditórios, contrapostos, antagônicos.

Um elemento fundamental da prova que você quer é a própria prova histórica. A mesma classe que gera a verdade passa a gerar a falsidade. A verdade ou a falsidade correspondem a necessidades sociais. A verdade não é o luminoso universo maravilhoso dos nossos anseios de verdade pura, nem a falsidade é o mundo obscuro, demoníaco do desejo de obscuridade. Falso e verdadeiro correspondem a necessidades sociais em momento distintos do mesmo sujeito. Este sujeito coletivo gerará os produtores de teoria individuais que vão constituir a verdade ou que vão constituir a falsidade. Verdade e falsidade que serão vistas para esta classe como simples verdade. O falso é visto como verdade. Só uma outra classe, contraposta a essa, é que pode denunciar a falsidade da primeira. Não também porque seja uma classe que ame a verdade acima de tudo. Porque ela tem necessidade da verdade para derrubar a verdade falsa da outra. A luta entre verdadeiro e falso corresponde, no campo da compreensão, do conhecimento teórico, ao mesmo jogo e luta de interesses no sentido infraestrutural. Conhecer é credenciar-se ao poder. É por aí que fundamentalmente Marx colocava: socialismo é ciência. Não há socialismo sem ciência. Isto é, não há socialismo se conhecimento da própria classe que pode construir o socialismo e de todas as outras classes com as quais a classe revolucionária convive em harmonia contraditória. Ou melhor, em articulação contraditória. A falsidade socialmente necessária é ideologia. O pensamento falso, que é necessário à sobrevivência de certo tipo de sociedade, para a sobrevivência de certo tipo de classe social, é o pensamento falso, que precisa ser produzido e tornado dominante, é o pensamento ideológico.

Há mais de um sentido da palavra ideologia. Há mais de trinta. Mas isso (esse levantamento de sentidos) é baboseira acadêmica. Existem dois sentidos reais e importantes. Um, que é o mais usado, que o Marx usava, de falsa consciência. Ideologia é o pensamento falso, é a consciência falsa. É o pensamento que não corresponde à realidade concreta.

O outro sentido de ideologia, e esse foi instaurado por Lênin, ideologia significa sistema de ideias verdadeiro do proletariado. Quando Lênin dizia ideologia burguesa, ele pensava em termos iguais a Marx, de falsa consciência. Quando ele dizia ideologia do proletariado, ele queria dizer sistema de ideias científico do proletariado. No nascimento do termo ideologia, que foi no século XIX, ideologia pretendia ser, para o seu criador, que foi Destutt de Tracy, ciência das ideias. É um sentido que não pegou. É um sentido que foi derrubado rapidamente. Ele pretendia constituir uma disciplina para conduzir a reflexão de tal forma que o erro ficasse impossibilidade. Um estudo do sistema de causação dos erros para evitá-los. E para ela, inclusive, era uma ciência de origem zoológica.

Aproveitei a passagem da determinação social do pensamento para mostrar que essa verdade ou esta falsidade corresponde a determinações objetivas do ser social. O falso pode ser, em determinados momentos, tão importante para a sobrevivência de uma sociedade, de uma classe, quanto o verdadeiro. O verdadeiro não tem si a força de ser prevalecente. Por isso que a evolução da humanidade não é uma linha reta cultural. Por isso que a cultura não é um sistema cumulativo de conhecimentos. A ciência avança e recua.

Por isso que no início dessa exposição eu pude dizer que hoje estamos muito abaixo do que estávamos enquanto humanidade no começo do século. Como visão, como padrão, como consciência média mundial estamos hoje, com uma diferença de cem anos, num padrão inferior. O que não quer dizer que hoje não poderíamos estar num padrão muito superior. Mas, não estamos. É um zigue-zague. Que haja obras que estejam muito acima do padrão médio, é outra conversa. Mas, elas estão nas prateleiras. Eu dou um exemplo disso. Quanto se estuda de marxismo na academia, seja a nível de Brasil, seja a nível internacional? E irrecusavelmente o marxismo é, esteja ele certo, esteja ele atravessado por equívocos, a expressão mais alta de todo o pensamento ocidental. De Aristóteles aos nossos dias, a fórmula mais avançada de cognição é de Marx. Pode estar incompleta, pode estar cheia de equívocos, contudo não há nenhuma postura mais avançada, mais perfeitamente constituída para a captura da verdade. No entanto, ela não é uma ideologia dominante. No sentido de sistema de ideias. O que é dominante hoje é o neopositivismo e o existencialismo. Ambos, sistemas de ideias constituídos depois de Marx, como reação inclusive a Marx e que constituem parcelas de vedação do real. Portanto, involução, flexão para trás. Por mais sofisticado que apareça o texto e o texto aparece sob alta sofisticação técnica.

Recapitulando: sujeito concebido coletivamente, capaz de um entendimento total do objeto. Sem limites, portanto, e que captura o objeto na sua dimensão integral, portanto indicando e exigindo uma ontologia.

Com relação à empiricidade, reconhece a dialética que o ponto de partida de todo e qualquer conhecimento começa pela janela do fenômeno. Não há outra janela. É a experiência imediata que me traz ao espírito, ao entendimento, à razão, elementos iniciais de contato com o real.
E Hegel já compreendia isso e dizia: o empírico é verdadeiro enquanto empírico. Quer dizer, já para Hegel, mas com mais força ainda para Marx, não se recusa o empírico. Parte-se do empírico. Mas, desde logo, compreendendo que o empírico é parte. Não é todo. Mais ainda no Marx, que o empírico, aquilo que se manifesta de imediato, pode estar sob a forma do inverso da essência. Isto é, meu contato inicial do empírico me traduz uma situação dada, a nível fenomênico, e este nível fenomênico, que me é capturável na imediaticidade, pode ser o oposto de verdade. Isto quer dizer, o real pode aparecer sob forma mistificada. Não mistificada pela consciência do outro. Mistificada pela própria realidade objetiva.

Dou um exemplo a nível do social. Quanto um operário encosta a barriga no balcão do Departamento de Pessoal de uma fábrica qualquer para pedir emprego, ele está disposto a que? A vender a sua força de trabalho. E o sujeito que o atende no balcão, que representa o capital, está disposto a comprar a força de trabalho. Tendo o balcão por peça de referência. Tendo indivíduos de cada lado que estabelecem um diálogo muito preciso, um querendo vender uma coisa, o outro querendo comprar uma coisa. Qual é o suposto disso? Está suposta uma igualdade. Entre o que compra e o que vende. Um é livre para vender, o outro é livre para comprar. Tudo aparece ali como se fosse uma transação entre iguais. E o é a nível fenomênico. Mas, e a nível essencial, ontológico? Aquela igualdade esconde uma desigualdade de raiz e de essência. Esconde que o sujeito só vai lá vender porque é a única maneira de sobreviver. Portanto, a pseudoliberdade, a aparência fenomênica, tem uma subordinação de raiz, que ele não pode vencer a não ser pela morte. Ele está coagido a vender, mas a aparência é de livre venda. Ora, o fenômeno aparece objetivamente como mistificação. Não é a mistificação da palavra ou da consciência, é da própria realidade. A realidade é mistificada. É uma realidade que em linguagem hegeliana e mesmo marxista se pode dizer falsa. O empírico é falso. Olha como isso acaba com o positivismo de uma vez. Se o dado empírico é o ponto de partida e de chegada, se a partir do dado empírico eu faço ilações em termos de leis abstratas e genéricas, se toda a ciência é a constituição de universais abstratos a partir do fenomênico, num fenomênico falso o que eu tenho? Que a lei abstrata é a generalização da verdade falsa. E o positivismo comete esse engano sempre.

Então, eu tenho que partir do fenomênico. Não há alternativa. Mas, eu tenho que cotejar esse fenomênico com a interioridade ontológica do objeto real e aí então fazer a crítica do fenomênico. Eu tenho que desmistificar o fenomênico. Na maioria das vezes há uma contraposição entre fenômeno e essência. A essência é o oposto do fenômeno. A essência é o inverso daquilo que eu vejo na imediaticidade. Não é que eu não veja objetivamente. Eu vejo objetivamente. Mas, a objetividade em si vista é que é falsa. Eu não estou duvidando dos olhos, dos sentidos, como Descartes. Os órgãos dos sentidos me enganam. Não é isto. Descartes aí está enganado.

Os órgãos dos sentidos me enganam, às vezes, por uma ilusão de ótica. Eu vejo uma chaminé de longe e em vez de um cilindro eu vejo um retângulo. Mas, vejam que na prática, por conhecimento de essência, eu venço o empírico. Eu continuo dirigindo a 120, sabendo que lá embaixo a estrada não fecha. Se eu fosse me basear só na empiricidade, eu ia a cinco.O ontológico me corrigindo na prática as ilusões fenomênicas. A essência corrigindo, portanto, os órgãos dos sentidos. A razão corrigindo o meramente sensorial. Vejam que na prática o ontológico interfere, ao passo que o positivismo nega o ontológico, quando a própria evidência individual de cada um de nós recusa negar o ontológico. A própria experiência individual nos dá exemplos de que nós nos comportamos levando em consideração o ontológico, isto é, o em si das coisas. Depois vem um ramo do conhecimento e me diz que o em si é inalcançável.

É claro que essas formas rudimentares de tomar em consideração o ontológico – atravessar a rua, o navio, a chaminé – são formas elementares. O ontológico que se quer científico tem uma outra estatura, porém não uma outra natureza. Já na vida prática imediata o ontológico atravessa a nossa existência. Por outro lado, no entanto, não é o aspecto dominante. O aspecto dominante é um conhecimento meramente do bom senso. É um conhecimento do cotidiano, que é um conhecimento da superfície das coisas. Dou um exemplo. Nós todos lidamos com dinheiro. Na hora em que entramos num banco e descontamos um cheque, entramos no sistema complexíssimo das finanças, operamos com esse dinheiro cotidianamente. E todavia não sabemos o que é o dinheiro. E não importa, ontologicamente, o que é o dinheiro, o em si do dinheiro, como ele é de fato nos escapa por completo.

Há dois instantes reais de conhecimento. Há mais, mas quero, aqui, fixar dois.Um, que é o instante da imediaticidade, onde a gente se move a nível dos fenômenos, dos fenômenos mistificados. Esta mistificação, esta empiricidade, esta imediaticidade, no entanto, nós formamos algumas idéias a respeito disso e nos movemos. O plano do conceito, o plano da interioridade efetiva, ontológica, do objeto, já é outro campo. É o campo da ciência. Entre um e outro pode, às vezes, haver mesmo um abismo. Mas há, realmente, no sentido mais essencial, uma continuidade superadora.

Novamente recapitulando: o sujeito não é limitado e não limitado é também o conhecimento que se pode ter dos objetos. Ao contrário, o conhecimento é integral. O sujeito não é meramente o sujeito individual. Este é o expressador, o efetuador, mas não é ele que cria as condições de objetividade possível. Isto é a classe. A verdade é regida pelo objeto, não é regida pela consciência. Daí a necessidade de uma teoria do ser, da ontologia. Daí aquela colocação do Marx desde a juventude, de buscar a ideia no real. Onde eu posso buscar a ideia? Em dois lugares: ou no real, ou na consciência. O que não quer dizer que a consciência não seja um elemento do real. Mas, aqui, está-se distinguindo a interioridade e a exterioridade. A perspectiva da dialeticidade é buscar a ideia no real, o que não quer dizer que se despreze nem a ideia nem a consciência. Mas, a consciência tem a regência, o primado cognitivo do objeto. A objetivação é saber subordinar, ter a possibilidade social objetiva de subordinar a subjetividade à objetividade. Não à empiricidade, mas à ontologia deste objeto, partindo da empiricidade e esta empiricidade sendo desmistificada. Ora, a empiricidade desmistificada pela consciência, basta aí para mostrar a alta importância da consciência; é ela que é a desmistificadora. Ela desmistifica para superar o plano da empiricidade e alcançar o plano da concreticidade. Entre empírico e concreto, uma forte distinção.

A essência também é mutável. No caso da perspectiva dialética, não há uma contraposição radical entre fenômeno e essência. Há uma conjugação dialética. A essência também não é uma imutabilidade, não é uma mônada leibniziana, não é o uno parmenidiano, é um ser real que pode mudar. A própria essencialidade não é uma eternidade. Ao contrário, a eternidade da essência é a sua não eternidade. Donde, o homem não tem uma essência, mas tem uma condição. A essência é a verdade do em si. A essência não é um caroço. A essência atravessa no passado, no presente e no futuro, sob modos diversos da condição diversa, todos os fenômenos, todas as partes do fenômeno.

A ideia de essência, em Parmênides, com relação à dialética, não tem uma contraposição excludente. A potência, em Aristóteles, é uma possibilidade em aberto. É, ao meu ver, a visão medieval de Aristóteles, a calificação do tomismo, não de S. Tomás, mas do tomismo, é a calificação da essência, que em Aristóteles é, no entanto, um princípio móvel. Não é à toa, por exemplo, quando se vai constituir a ontologia do marxismo, que certos aspectos da ontologia de Aristóteles são retomados. Lukács faz isto. E Marx, mesmo, no Capital, referia com muito respeito Aristóteles.

O problema da empiricidade.

Essa empiricidade é ponto de partida. Eu tenho que lixar essa empiricidade, se ela estiver mistificada, eliminar essa mistificação, se ela não estiver mistificada, a partir dela chegar à essencialidade ontológica, isto é, ao concreto. O segredo fundamental do método dialético é exatamente estabelecer a concretude. É exatamente caminhar a partir da visão difusa e confusa, caótica, da completude da empiricidade, para a concretude, passando pela abstração. Parte-se da pletora empírica desordenada, ordena-se por abstrações e destas abstrações se volta à empiricidade, mas agora essa empiricidade não é mais a empiricidade, mas a concretude. O caminho é esse: a empiricidade caótica, a organização abstrata e a concreção a partir do abstrato. O empírico agora é integrado na totalidade do real. Ele passa a ser determinado pela multiplicidade de elementos que o compõem. Esse é o segredo da frase do Marx que “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações” .

Consequentemente, o empírico que chega ao concreto, a prova da teoria não é o empírico, mas é o concreto ontologicamente compreendido.

O empírico é a manifestação fenomênica tópica, ele remete às relações fenomênicas mais elementares e superficiais. E pode aparecer, na maioria das vezes aparece sob forma mistificada. Exemplo de empiricidade: toda descrição, no mais vasto rol possível, a respeito, por exemplo, de uma comunidade. Descrevo quantas casas, quantos aposentos existem em cada casa, a alimentação, a organização familiar, as doenças, as festas, os cultos, etc. Faço a enumeração exaustiva de todos os dados que sensibilizam os meus órgãos dos sentidos. Eu tenho uma visão empírica das coisas. O concreto é a descrição do quadro da comunidade, mas que chega ao sentido lógico, íntimo da comunidade. Não é apenas o empírico pensado. É o empírico elevado de nível, para além apenas das suas aparências. Não é apenas aquilo que aparece, mas aquilo que está subjacente e que causa o próprio empírico. O iceberg é um exemplo claro disto. O pedaço de gelo que está acima da água é a porção menor do ser que lá existe e o pedaço que está por cima depende do pedaço que está embaixo.Quanto maior for o pedaço que estiver embaixo d’água, tanto menor o de cima. Se eu fico só no pedaço de cima, me escapa a maior parte do real. Tudo isso são metáforas. O empírico não está fora do concreto, mas o concreto é muito mais amplo do que o empírico. O concreto é essa totalidade, essa integralidade, este em-si capturado pela lógica interna, íntima do objeto. Não uma lógica da minha cabeça conferida ao objeto, mas a lógica do objeto capturada, reproduzida pela consciência. Neste sentido, no meu modo de entender, o melhor modo de dizer o que é dialética é dizer que dialética é a lógica do real.

A retomada, através das reenumerações das características ontem apontadas. A primeira delas, a caracterização da consciência, do entendimento, da inteligência, enquanto interioridade humana capaz da captura da totalidade do objeto e a própria concepção desta consciência como consciência ilimitada. A concepção positivista da consciência é de uma consciência finita. A concepção da consciência na dialética é de uma consciência infinita. Era preciso explicar essa infinitude. Totalidade do objeto é capturável; fenômeno e essência não mais conhecem uma diferença abismal. Ao contrário, a relação entre as duas constitui um dos traços marcantes dessa metodologia.

O elemento empírico é o ponto de partida, mas o ponto de chegada é a individualidade concreta. Do empírico ao concreto estabelece-se uma imensa e rica gama de abstrações. Em contraposição à tendência positivista, que parte do empírico, portanto, da parcialidade do todo e estabelece meramente uma abstração, a pretensão dialética é partir do empírico, da parte, alcançar um nível classificatório através da abstração, através de um segundo movimento de manuseio das abstrações ir recompondo, em determinações cada vez menos abstratas e mais concretas, até chegar ao concreto efetivo. O caminho é completamente diferente. O que é ponto de chegada no positivismo, a abstração, na dialética é a cadeia de concatenações que se faz a partir das abstrações; é pura e simplesmente mediação. Em última instância, na dialética o objetivo não é a lei, mas a lógica da individualidade. Para isso é preciso conhecer a lógica da universalidade.

Ainda quanto ao sujeito, há uma dialética entre o sujeito individual e o sujeito coletivo. Enquanto o sujeito individual é suposto, é concebido como sujeito efetuador, o sujeito coletivo é a classe. (Os agrupamentos sociais não são apenas aqueles constituídos pelas classes. Há outros. O grupo de uma Igreja, o grupo de uma escola, etc. O grupo constitui o sujeito que cria o espaço de. Ex: O grupo de jogadores de futebol. Só é possível jogar futebol num grupo. A classe social é, nesse sentido, o sujeito cultural em potência). Isto se refere à determinação social do pensamento e da razão. A razão é então concebida como um produto histórico. E na medida em que é um produto histórico é um produto social. Isto é, as individualidades não nascem racionais. O ser humano não nasce racional. É a sociedade que faz com que esta possibilidade se converta em efetividade. Em ato real. A razão não é, neste sentido, um dom ou um dote da natureza, mas um produto da própria vida humana. Vale dizer, da própria vida social. Não existe humanidade fora da sociedade. O que confere humanidade ao homem é o fato de ele ser um fragmento, uma individualidade dentro do contexto social.

Tome-se a questão da fome e da sexualidade. A forma de satisfazer a fome e a forma de satisfazer a sexualidade, ambas como pulsões biológicas naturais, são totalmente reformuladas pela história. Nem a fome é uma fome natural. A fome que só se resolve junto a uma mesa, no uso de talheres, com alimentos preparados, cozidos, condimentados, etc. é obviamente uma fome distinta daquela que através do dilaceramento direto e imediato do animal que acaba de ser abatido pode fazer imaginar. Em última análise, a forma de produzir o homem produz as necessidades e as formas de satisfação do homem.

Enquanto o homem é homem, se o homem pode admitir já a denotação de homem, neste instante ele já não é inteiramente natural. Já há uma elaboração do próprio homem. O que não quer dizer que o homem perca por inteiro as suas características de ser natural que evoluiu. Na visão do marxismo, o metabolismo entre homem e natureza é permanente. Cada vez mais ele se distancia da natureza e cada vez mais ele se torna histórico, social, produto da sua própria história, da sua própria atividade. Mas, ele não tem condição, ao limite, de romper com a naturalidade. Sempre haverá um gancho na natureza. A nossa dimensão biológica tem que ser mantida. Ela pode ser transformada, mas deve ser mantida como dimensão biológica. Civilização é progressivo afastamento do natural. Contudo, não há um rompimento absoluto em nenhum momento, nem este rompimento é possível. Mas, há uma transfiguração absoluta. De modo que não há nada no homem que seja puramente natural. Esta história que hoje em dia corre de voltar ao natural, de ser natural, é estupidez de sub-homem.

Este naturalismo é a concepção da espiritualização do homem. O espírito do homem, é aí que eu quero chegar para poder reencadear com a razão, é produto da atividade social do homem. O homem não nasce com um espírito, mas forja um espírito. Esse espírito não é uma realidade metafísica, sobrenatural, mas é a elaboração mais alta possível. Não estou aqui ferindo a questão da transcendência, da religiosidade. O materialismo de Marx tem diante disto uma clara posição. Subentende que a espiritualidade da religiosidade é a forma corrompida, é a forma alienada do verdadeiro espírito do homem. A religião é, para Marx, o espírito de um mundo que joga fora o espírito. A religião é uma forma de reagarrar o espírito, mas é uma forma alienada.

Ora, esse espírito, essa espiritualização do homem, tem imbricado em si um conjunto de características e fatores, entre os quais aqui interessa uma, que é a mais importante delas, a mais decisiva, a mais alta: a razão. A razão não é um ponto de partida, é um ponto de chegada. Ou, melhor ainda, é um ponto de chegada ao qual nunca se chega. Porque a razão é uma possibilidade de efetivação que progressivamente se transforma, amplia, torna mais profunda, complexa e rica. A racionalidade é algo que cresce. Ao mesmo tempo é preciso notar que esse crescimento, esta evolução não é algo que se dá em linha reta. Há regressões na racionalidade. E não é preciso que regrida a racionalidade em todos os setores da vida, ao mesmo tempo, num momento dado. É possível regredir em certas atividades e progredir em outras. No momento atual, a racionalidade que diz respeito ao manuseio, à capacidade de manipulação dos fenômenos da natureza, é progressiva. A capacidade racional de entender a totalidade da dimensão humana, neste sentido social, este é um momento regressivo em termos de média dominante no mundo. A dialética é capaz de explicar precisamente como uma coisa pode ascender e outra descender simultaneamente. Coisa que era um enigma para toda a história do pensamento anterior, onde os historiadores se viam embaraçados com coisas desse tipo: avançou aqui, porém lá não, por quê?

Com todo esse discurso eu quis caracterizar de forma muito nítida a ideia de concepção de racionalidade que não é uma entidade natural. A razão da dialética não é uma razão natural, mas é uma razão histórica. É como tal que se desdobra, que evolui e involui, que se amplia e se reduz. Não há uma única razão humana. Aristóteles: o homem é um animal racional. Parece aqui embutida a ideia de uma razão padronizada, uniforme, que nem decresce nem evolui. Uma razão que tem configurações estabelecidas, configurações estas que não se alteram. Quando a perspectiva que aqui se traduz é precisamente o inverso. E as mutações têm momentos decisivos para ocorrerem. Ocorrem em consonância com a alteração das formas de organização da sociedade. Mais um elemento pelo qual a determinação social do pensamento se justifica.

Neste sentido, inclusive, como elemento entre aspas de prova, o que temos: que até a prova empírica disto existe. A análise mostra que as teorias, por exemplo, gnosiológicas, metodológicas, as formas da ciência, as ciências que aparecem e as ciências que desaparecem, as disciplinas que são consagradas num determinado momento e noutro somem, formas literárias, por exemplo, o romance. O romance não existiu eternamente. Formas de inteligência que são típicas de momentos históricos. Formas de consciência política, social, econômica, etc.

O que eu quero marcar, aqui, é a ideia de uma razão historicamente dada. Uma razão que não é uma faculdade meramente natural, consequentemente, é claro que não é uma mera subjetividade. Claro que a razão não existe fora do indivíduo, da inteligência, portanto ela é um elemento interior do homem. Mas, o que eu quero dizer que ela não é pura subjetividade é no seguinte sentido: ela não tem regras próprias, a sua lógica não é gerida por ela. A lógica da cabeça não é um produto da cabeça. É um instante abstrato da lógica da realidade que passou para a cabeça.

É o concreto pensado, mas aí, como forma lógica, um concreto pensado vazio de conteúdo. Retida apenas a logicidade de conteúdos agora não referidos. Então, um silogismo, que parece algo constituído puramente pela mente, é facilmente perceptível como o resultado de encadeamento de afirmações e negações que derivam de afirmações e negações trazidas diretamente de uma longa e milenar exercitação de atividade prática. Se eu tenho A igual a B, B igual a C, portanto, A igual a C, sob esta forma genérica e abstrata total, eu tenho passagens da vida absolutamente concreta e imediata que, abstraídas do seu conteúdo me dão esta forma. Esta forma não é o que gera a possibilidade de operação com elas, mas elas são o resultado de uma operação na realidade. Em última análise, é o resíduo purificado que fica na cabeça depois de milênios de exercício efetivo e real do homem. Que se fixa como um território homogêneo e que é utilizado para mexer nas coisas que antes não eram mexidas.

Todas as categorias do entendimento seriam abstrações de operações que a realidade prática estabeleceu.

Essa razão que se constitui historicamente tem agora que ser vista na relação entre conhecimento absoluto e conhecimento relativo e que está ligado ao que já foi aludido como infinitude e finitude da razão. A concepção da infinitude da razão significa para a dialética o seguinte: o homem é capaz de apreender o significado, conhecer portanto todas as coisas do mundo na sua máxima interioridade e profundidade. O homem individual, sua consciência real objetiva é uma consciência que pode se expandir. Está ligado isto à constituição histórica da razão. E esta infinitude da razão individual não significa que a nível de cada individualidade seja realizada efetivamente. Porque é que ela não é realizada efetivamente? Porque o conhecimento absoluto não depende pura e simplesmente da individualidade. Segundo, todo e qualquer conhecimento depende do estágio histórico em que os entes já tenham se explicitado. Eu não posso efetivamente conhecer o segredo do trabalho antes que o trabalho tenha chegado à sua forma mais completa e fundamental. Aristóteles, que aludiu à questão do trabalho e aludiu com muito rigor, esta noção de trabalho que ele tinha era uma noção limitada na medida em que a forma trabalho é uma forma limitada. Só quando se chega ao trabalho mais alto que a história já gerou, que é a forma do capitalismo, é que eu posso entender a totalidade ou a quase totalidade do trabalho. Que quer dizer então isso? Que a infinitude da consciência está delimitada pelas aquisições possíveis a cada momento histórico dado. Significa que a infinitude da consciência, em realidade, para cada instante histórico, é uma finitude, mas essa finitude não se fecha em si, é uma finitude aberta para a infinitude do gênero. Se eu tomo agora a noção já apresentada de sujeito coletivo, a infinitude é uma possibilidade do sujeito do conhecimento. Do sujeito coletivo do conhecimento, não simplesmente da singularidade. Ainda que esta singularidade, em Marx, seja concebida como cada indivíduo sendo o elemento que reproduz em si o seu gênero. Isto é, cada homem é, ao mesmo tempo, a totalidade da humanidade à qual pertence. Ele pode reproduzir em si; não quer dizer que ele reproduza sempre porque há o problema da alienação que o priva disso. Cada indivíduo traduz dentro de si o gênero, a totalidade da humanidade. Mas esta humanidade tem, como sujeito coletivo do conhecimento, também os seus limites historicamente postos. É a isto que se chama relação dialética entre conhecimento relativo e conhecimento absoluto. O relativo não é aqui sinônimo de relativismo. No sentido de que o sujeito A conhece A’, o sujeito B conhece B’, o sujeito C conhece C’ e são conhecimentos diferentes, cada um conhece um pedaço, cada um tem uma certa apreensão, mas não é o todo, consequentemente cada pedaço é relativo e eles se equivalem. Para a dialética está inteiramente excluído o relativismo. Ou a verdade está aqui ou está ali. Ela não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. A verdade é uma. Eu posso ter dez posições diferentes. Ou todas as dez estão erradas, ou uma das dez está certa. E não é preciso que a maioria acredite nesta única. Pode ser que seja a minoria. O fato de a maioria acreditar em alguma coisa não é nenhuma prova de que aquilo seja a verdade. Pode provar simplesmente que a maioria está alienada.

Essa relação relativo/absoluto tem esse caráter: o conhecimento, em cada momento histórico, é delimitado, mas ele abre para o conhecimento integral que é o absoluto. Absoluto não é imóvel, eterno, inamovível, perene. Absoluto é totalidade.

Esta última palavra me abre para um novo subcapítulo da exposição. A noção, o conceito fundamental no marxismo, no plano metodológico, da totalidade. O conceito de totalidade é absolutamente decisivo. Em última análise, o método dialético é a pretensão de reproduzir na cabeça a totalidade do objeto inquirido. E, do ponto de vista da dialética, só a totalidade contém e revela a verdade. Fora da totalidade não há verdade. Um exemplo: se eu pego minha orelha, corto fora e ponho em cima da mesa, essa orelha em cima da mesa já não é mais orelha. Porque ela se define como orelha enquanto está numa posição dentro do todo que lhe permite ser a especificidade do seu elemento peculiar. A orelha recortada e colocada na mesa, ela não ouve mais, ela perdeu a sua essência.

A totalidade é um todo, porém um todo ordenado. Mas, seu eu pego esse mesmo cão, antes de tê-lo retalhado, e o acompanho desde o seu nascimento até à sua morte, eu hei de notar claramente que de início ele é um cãozinho, que se desenvolve, muda permanentemente. Entre o cãozinho e o cão já velho que morre há uma só totalidade, mas eu tenho aspectos diferentes em cada momento. Como fica isso? Portanto, a totalidade é um todo ordenado em processo. O todo não é apenas um conjunto estável, ao contrário, dialeticamente pensando, não existe nada estável. O todo está em processo, o todo é, por excelência, esse conjunto de mutações. Assim, eu pergunto: aquela árvore, aquela árvore é uma totalidade? É apenas um instante da totalidade. A totalidade dessa árvore vai da semente à morte da árvore. Esse é apenas um instante empírico. Essa árvore, na imagem imediata dela é uma abstração porque é um pedaço. Eis um dos grandes erros da fenomenologia: tomar a experiência imediata fenomênica como todo o real.

De modo que a totalidade é um todo matrizado, é um todo ordenado em processo e o real tem momentos distintos de determinação. Nessa totalidade total eu posso perfeitamente distinguir totalidades momentâneas ou parciais. A totalidade desta árvore neste momento.

Eu falei de conceitos que. Se a totalidade é esse conjunto, o conhecimento é a reprodução deste conjunto. Com todas aquelas características ontológicas anteriormente anunciadas, a concepção de ciência, da dialética em Marx é ser capaz de reproduzir a totalidade na cabeça. Aquela ideia: o sujeito infinito; o objeto capturável na sua totalidade, historicamente determinada, na relação de essência e aparência, na relação de conhecimento relativo e absoluto.

Retomando por onde havíamos deixado o percurso do raciocínio. Que era precisamente a ideia de constelação. Que era para abrir um momento decisivo no método dialético que são as determinações recíprocas. A ideia de constelação conceitual ganha na dialética de Marx uma importância capital. A ponto de não ser possível a compreensão de um rol de conceitos como é feito noutras tendências. Aliás, muitos cursos de introdução iniciam com um longo capítulo sobre as noções e conceitos fundamentais de. Isso é absolutamente impossível em termos de dialética. Uma listagem de conceitos metodológicos, apresentados um a um, isoladamente, levaria a uma visão inteiramente paralisante da própria concepção.

Sempre a necessidade está, expondo no mínimo dois ou três conceitos ao mesmo tempo, o que não quer dizer que não se possa deter-se com o máximo de rigor sobre cada conceito, mas esse deter-se sobre cada conceito implica falar simultaneamente de mais algum. Sempre a idéia na arquitetura conceitual da constelação. Porque na medida em que se toma a sério a noção de totalidade, onde uma ordenação do conjunto das partes é que preside a instalação efetiva do significado, isto é, o sentido real da coisa vem pelo conjunto interligado.

O conceito isolado é uma coisa totalmente abstrata no pior sentido do termo, no sentido de parte unilateralizante, de parte que faz o peso cair para um dos lados, com um peso indevido. Mesmo a ideia de modo de produção, a gente está compreendendo no modo de produção ao mesmo tempo um conjunto muito grande constelar de conceitos. Se não o compreendo assim ele vira uma forma. Ele vira exatamente o que Marx não quer que vire, uma mera abstração.

Alguém poderia perguntar: mas, então, o marxismo na opera com abstrações? Sim, opera. A grande dificuldade do método dialético, o elemento da prova, é precisamente o seguinte: cada conceito pode ser usado em níveis distintos. Que níveis são esses? São os níveis, são os planos de concreção. Que plano de concreção é esse? É o espaço entre dois polos. Entre o abstrato abstrato e o concreto concreto. Entre a abstratividade e a concreticidade. A concreticidade como objeto real, como efetividade da existência, a coisa existente efetivamente na realidade e o abstrato, isto é, algo que diz respeito a isso, mas diz respeito de forma genérica, conseqüentemente eliminadora de um conjunto de suas partes.

Entre esses dois polos da máxima concretude possível e da abstratividade possível, que caminhando entre as duas, todos os instantes em que concreto e abstrato estão misturados. Mas, cada um desses infinitos pontos é uma condensação onde o elemento abstrato e o elemento concreto estão simultaneamente presentes. Isto é, cada um destes pontos corresponde a dois níveis: a determinação muito rigorosa em que nível se fala é muito decisiva no método dialético. Se eu estou falando no nível abstrato, se eu estou falando no nível concreto.

Com as constelações acontece o mesmo. Eu posso ter a constelação na concretude máxima e posso ter a constelação no polo da máxima abstratividade. Entre esses dois polos, a própria constelação, que não é apenas objeto, ou uma ideia que pode estar nos polos, mas o conjunto das ideias é que pode estar neste contínuo puntiforme. A grande dificuldade é nunca perder de vista, por quem faz a investigação, em que níveis ele está pondo a constelação. Mais ainda: os diferentes conceitos de uma constelação não precisam estar todos ao mesmo tempo no mesmo nível. Alguns dos conceitos entram com maior concreticidade, outros entram com maior abstratividade.

A gente está muito agarrado a ter noções rigidamente firmadas, como formas vazias, onde atira os dados empíricos. No método dialético isso tudo tem que ser esquecido, porque concreto e abstrato, dado empírico e caminho para a concreção, permeado pela abstratividade que está pulsando em todos os sentidos. Discernir precisamente os níveis é controlar a “aplicabilidade” do método. Por que isto ocorre? Por que é uma exigência do método? Não. Porque a realidade procede deste modo. As constelações conceituais chegam a ganhar esta forma porque a realidade se comporta desta forma.

Exemplo: a forma mais concreta do trabalho só surgiu no capitalismo. Mas, um conceito em nível abstrato muito mais amplo do que o próprio trabalho concreto surgiu no escravismo. O fenômeno real trabalho só ganha a sua plenitude no capitalismo. O trabalho nos modos de produção anteriores é, em relação à forma trabalho concreta do capitalismo, uma forma mais primária, portanto, pode-se dizer mais abstrata, menos complexa e menos rica. Mas, o conceito que Aristóteles tinha do trabalho era mais amplo do que a concretude do trabalho no seu tempo.

A exigência lógica ao tratar o conceito de trabalho imediatamente o obrigou a perceber certos componentes universais que não estavam ali, mas só vão aparecer no capitalismo. Quando ele distinguiu trabalho efetivo e o momento de apreensão mental. A consciência do trabalho e o trabalho. O trabalho compreende sempre dois momentos: consciência e trabalho efetivo. Está presente na dimensão teleológica do trabalho o elemento consciência. A consciência, o por teleológico no escravismo é muito rarefeito. O escravo não tem teleologia nenhuma. Mas, Aristóteles percebeu que o trabalho tem teleologia. Ele percebe que o trabalho não é mera atividade física. Que a atividade física compreende um momento de consciência. Assim, o trabalho é muito mais abstrato no escravismo e muito mais concreto no capitalismo. Como realidade, em nível de conceito, a noção trabalho, em Aristóteles, é muito mais ampla que o próprio trabalho que ele conseguiu ver. Por exigência do próprio conceito. O grão de teleologia que existe implica trabalhar a teleologia.

O abstrato é parte, é algo segmentado, é algo que perdeu a diferenciação. Nesse caso, o trabalho concreto do escravismo é mais incipiente e mais abstrato. Mas, o verdadeiro trabalho abstrato só aparece no capitalismo, que expressa o verdadeiro trabalho concreto. Trabalho abstrato do capitalismo é um concreto abstrato da realidade. Exemplo: eu tenho uma fábrica num setor da economia, que produz mercadorias do tipo metalurgia, outro setor que produz artefatos de madeira, um terceiro, roupas, um quarto, alimentos, etc. Para que possa haver a troca de parafuso por arroz, de arroz por calça, de calça por remédio, deve haver alguma coisa que igualize tudo isso. A igualdade é o trabalho abstrato. Que quer dizer isso? Não interessa mais se eu mexo com madeira, com ferro ou com tecido. O que interessa agora, para poder medir essa igualdade, é saber qual o tempo social consumido para fazer qualquer dessas atividades. O trabalhador da fábrica não trabalha mais concretamente. E sob nenhum aspecto. Em primeiro lugar, ele trabalha pedaços. Já é uma abstração. O que importa não é o que ele faz, mas quanto tempo ele consome para fazer aquilo. Consequentemente, o trabalho tem como essência a abstração do trabalho concreto e a retenção do tempo social consumido. Isto é que é o valor. O ser do trabalho concreto é o trabalho abstrato.

Toda esta questão foi posta relativamente ao problema das abstrações que estão sempre permeando as constelações. O que é praticamente interessante de reter: quando se constitui o trabalho orientado pelo método dialético, em primeiro lugar busca-se a totalidade. A totalidade garrafa, como forma de conhecimento é uma constelação conceitual. Essa totalidade conceitual vai ficar em níveis distintos de abstração e concreção. Quando eu disse: a essência da garrafa é ser mercadoria, esse é um instante de determinação abstrata. É a essência abstrata dela. Sem o que o restante não dá para ser devidamente amarrado. Por sinal, o copo também é mercadoria, o cigarro também. Se eu ficar só na determinação mercadoria, todos esses objetos viram um só. É que a chave abstrata aqui me permite, na sequência, fazer a determinação concreta. A determinação concreta não significa superar a noção de mercadoria, mas concretá-la. Eu não vou mais perder de vista a noção de mercadoria. Por que ela imediatamente me dá o que? O fato de este objeto não ser um objeto natural, mas um objeto histórico. Se é um objeto histórico, ela me dá o conjunto de operações necessárias para chegar à mercadoria garrafa, a esta mesa. Significa um ciclo produtivo, um ciclo distributivo, um ciclo de aquisição. A determinação concreta disso implica trazer à tona todas as formas de concreção. Agora, a concreção absoluta é desnecessária cientificamente. A concreção absoluta implicaria tomar todos os detalhes, mesmo ínfimos, e integrá-los na teoria construída. Porém, isto não é necessário, na medida em que graus ainda não tão concretos já me traduzem toda a concreção necessária para a compreensão. Então, eu me limito àquele instante. Como é que eu sei que o limite chegou? É quando a reconstrução conceitual ganhou um corpo de identidade concreta, que tem consciência de certos buracos abstratos, mas sabe que o preenchimento destes buracos abstratos já não altera o conjunto. Como eu sei isto? Nunca antes de fazê-lo.

Não há um requisito formal, na dialética, para dizer você chega até tal ponto, senão nós cairíamos novamente no método formalizante. A completude formal. Como a completude não é formal, quem rege a completude é o próprio objeto.

Alguém dirá: mas isso é inteiramente incontrolável! Absolutamente. É rigorosamente controlável. É muito mais controlável do que a forma, porque a forma é um atendimento artificial, ao passo que o atendimento concreto deriva de estar permanentemente revendo o suposto da própria concreção. Isto é, o método, em cada instante, está sendo revisto. A prova não nasce formalmente de fora, a prova se põe pela constituição concreta. A prova não me vem como alguma coisa que eu tenho fora do meu trabalho e seu eu chegar a este padrão eu concluí. A prova me vem pelo próprio texto constituído. É quando o texto ganhou uma identidade de reprodução que eu posso parar.

Agora, eu posso me enganar. Onde, então, a outra prova ontológica se porá? Ela se porá na famosa palavra práxis. Mas, não na forma em que ela é comumente utilizada. Vulgarmente, a palavra práxis é entendida como a prática imediata empírica. Resultado: se eu tenho uma teoria, se eu monto uma teoria e testo pela prática, se empiricamente ela dá resultados positivos, ela é verdadeira. Se empiricamente, ela dá resultados negativos, ela é falsa. Isto não é dialética, é pragmatismo. Assim se eu tenho uma teoria sobre um conjunto social num momento eleitoral, se eu ganho as eleições eu tinha lido a sociedade direito, se eu perco, eu tinha lido errado. Isto é falso, dialeticamente. Eu posso estar certo perdendo as eleições e posso estar errado ganhando.

A práxis é uma prova, mas não concebida como empiricidade, mas como ontologia. Isto é, não é funcionalmente concebida, como resultados positivos ou negativos, mas é a compreensão dos resultados da prática pela lógica dos seres em movimento. Prova ontológica (não no sentido medieval do termo), significa a compreensão, pela interioridade do objeto, daquilo que lhe ocorreu. Perder ou ganhar uma eleição em si não prova nem desmente uma teoria.A própria teorização, ontologicamente posta, é tomada como prova.

Seria mais interessante, mais compreensível se em vez de prova se usasse demonstração. Como a corrente positivista tem no dado empírico a prova, ela transforma problema em prova, porque o dado empírico é sempre problema, é algo que tem que ser explicado, ela mistifica e diz: a prova está pelo dado empírico, ela não demonstra, mas aponta algo externo à teoria como prova.

A demonstração dialética é de outro tipo. Ela não se satisfaz em recolher pura e simplesmente algumas evidências empíricas, externas à construção teórica. Exemplo: ela toma uma teoria, que não é algo entendido como hipótese (na dialética a teoria não é hipótese de explicação, ela subentende que é a reprodução conceitual do real) através dela, a realidade terá que se comportar provavelmente de um jeito ou de outro. Seja qual for o comportamento desta realidade, se a reprodução deste segundo comportamento estiver em articulação adequada com aquilo que a primeira teoria reproduziu do movimento, está provado. Quer dizer que eu tenho a ideia de que a luta de classes é o motor da história. E tenho a atualidade, por exemplo, os Estados Unidos. Nessa luta de classes, para Marx, o agente transformador é o proletariado. Eu pego na empiricidade, nos EUA, e a classe operária é uma das camadas menos inquietas e mais conformistas. Se eu tomar a prova empírica para este caso, o marxismo é falso. Porque o país mais altamente desenvolvido do ponto de vista capitalista, com o seu proletariado mais desenvolvido e organizado, é o menos revolucionário. Portanto, a teoria de Marx é falsa.

Mas, nenhum marxista aceita que a classe operária não seja a classe revolucionária. Só que a maioria não sabe o que dizer com relação à classe operária norte-americana. Porque ela passou a pensar também a prova como empírica. Quando, para Marx ela jamais foi. Aliás, nos Manuscritos econômico-filosóficos, ele começa uma crítica à economia política. Então, lá ele diz que a Economia Política parte da propriedade privada, mas não nos diz nada a respeito da sua constituição. Portanto, a Economia Política nada nos explica a respeito da propriedade privada. Eis aí um lance metodológico-ontológico. Não adianta partir do dado empírico e provar pelo dado empírico. Eu tenho que explicar, que demonstrar. A prova é demonstração.

Então, a classe operária americana. Se eu tomar empiricamente, eu estou diante de uma factualidade que me recusa o caráter revolucionário dessa classe. Ora, para obter uma demonstração eu preciso explicar esta factualidade. Então, se o método dialético tem a capacidade de me permitir explicar porque a classe operária norte-americana tem esse comportamento durante esse período, não só eu entendo porque ela tem, mas continuo a afirmar o caráter revolucionário caso eu possa demonstrar que esse estágio atual é resultado de uma integração ontológica que não é permanente, mas é circunstancial e nesse instante leva a um amordaçamento da consciência desta classe e leva a uma situação de equilíbrio material onde ela não tem como nem porque reagir. Então a prova não está pela derivação do seu comportamento imediato, mas pela sua essencialidade ontológica. Para dar o remate. Não é porque a classe operária norte-americana, hoje, não levanta a bandeira revolucionária que esteja resolvida a contradição capital-trabalho.

Eu vou finalizar agora tentando mostrar como se faz essa concreção. Para que não se pense que o método dialético é apenas uma atitude. É um procedimento exatamente rigoroso e exatamente preciso porque ele não é formal. Exatamente porque ele não tem um conjunto de regras, um conjunto de procedimentos. Mas, ele tem isto sim, um conjunto de referenciais ontológicos. Eu vou tentar articular uma súmula dos referenciais ontológicos e num ponto tentar trabalhar no plano lógico a exigência de concreção.

Uma evidência espero ter constituído: que o método, na dialética de Marx, está rigorosamente colado à ontologia. Não existe método sem ontologia. Lukács dizia que qualquer questão séria de metodologia desemboca em ontologia. Todas as questões de metodologia que não desembocam em ontologia são baboseira. O que há de sério, no método, está na sua essencialidade ontológica. Resultado: o método dialético dá um conjunto de equipamentos operacionais que são os instantes de abstratividade ontológica que norteiam os passos de modo decisivo. Primeiro equipamento é um conjunto crescente, nunca estabilizado, de parâmetros ontológicos, que, pela sua abstratividade, configura itinerários metodológicos.

O conjunto de noções abstratas, nunca formais. O que é uma abstração nesse sentido? É uma parte de um conteúdo seccionado de outros. Uma abstração é um seccionamento conteudístico e genérico. É um conteúdo genérico. Não é uma forma vazia, como a forma matemática. O método não trabalha com a noção de forma vazia, forma matemática, mas com nódulos genéricos conteudísticos, abstração, resumo genérico de alguma coisa.

Primeiro, o ser é uma totalidade, ordenada, em processo. Qualquer objeto, para que possa ser estudado, tem que ser tomado na sua integridade. Quer dizer, então, que só posso estudar o mundo todo de uma vez? Não. Eu posso recortar no mundo elementos que, mantidos na sua integralidade, sejam possíveis de concreção. Se só na totalidade é possível a descoberta da lógica interior que a rege, um recorte inadequado mutila a lógica interna e impossibilita a descoberta da lógica interna que aquilo possui. A ontologia dá os lineamentos dos objetos. A ontologia seria, pelo menos no seu nível abstrato, os lineamentos mais gerais do ser. Então, o ser social. O ser social é uma forma da materialidade, é matrizado pelas formas de produção e reprodução material da existência. Estas formas são a carapaça, o solo matrizador desse todo, que não é constituído apenas pela base material, mas gera outras especificidades. O corpo humano não é apenas a coluna vertebral, mas também braços e pernas que são derivados dessa coluna, ou melhor, só têm sentido em relação a esta coluna.

Nesses modos de produção, as categorias sociais se recortam e entre elas há sempre dois ramos antagônicos. O conflito entre elas gera a história desse modo de produção, gera, por determinação não linear e não mecanicista, as ideias, gera a consciência. Ora, se eu vou estudar uma ideologia, essa parametração ontológica me faz localizar a ideologia obrigatoriamente nesse contexto. De modo que eu tenho que descobrir a gênese daquele sistema de ideias, a função social daquele grupo de ideias e tenho que obrigatoriamente fazer aquilo que nós chamamos o plano filosófico, que é a análise imanente dessas ideias. É o conjugado dessas três coisas que permite entender a ideologia. Se eu arranco a ideologia fora desse contexto, eu passo a ter um sistema de ideias incompreensível. Nem na sua estrutura lógica, porque esta depende do modo de produção. Não é ter a matriz social, mas ter a matriz ontológica do ser social. A linguagem não é uma linguagem fora do homem. A linguagem é uma linguagem no homem e o homem só é homem na sociedade. Não existe linguagem pura, só existe linguagem humana. Isto não é um pressuposto tranquilo. Tranquilo é que a linguagem está num contexto social. Mas, que a linguagem seja produto ontológico do social, já é diferente. Qualquer filósofo não marxista admitiria hoje que a economia é um fator. Mas, para o marxista, a economia não é fator, é matriz. Não é nem causa, é matriz. A política é a forma do econômico ao nível do poder de Estado. Não quer dizer que haja uma derivação como uma corrente linear. A linguagem. O que é a linguagem? A linguagem é a consciência prática. É a consciência que se comunica, mas não no sentido de passar informações, mas passa informações porque propõe ações ao outro.

Esses elementos norteadores, que demarcam o caminho, são fundamentos filosóficos da investigação científica do objeto. Se a ciência busca alguma coisa, ela tem que saber o que busca. É o preconceito positivista que supõe um investigador que desconhece tudo em relação ao objeto, ser capaz de investigar o objeto. Se ele desconhece tudo do objeto, nem este objeto existe para ele. O positivismo configura uma mistificação grosseira de supor um investigador dentro da sala escura, procurando um gato escuro que lá não está. Se eu não sei algo do objeto, não sei o que procurar. Então, o que eu sei de início? Eu sei uma abstração ontológica. Mínima que seja. Essa abstração ontológica, configurada por todos os elementos mais ou menos aflorados, me permite buscar a concreção. A concreção seria o momento de ciência deste saber que começou ao nível filosófico-ontológico.

Para a dialética, não existe diferença entre ciência e filosofia. Ambas são apenas momentos distintos de um mesmo saber. O saber das coisas. Então, agarrar as coisas subentenderia a existência de um vai-e-vem entre o momento filosófico e o momento científico – o filosófico como mais abstrato e o científico como mais concreto – ainda que as coisas possam ter momentos mais abstratos do concreto científico e momentos mais concretos do abstrato filosófico. Esta malha que vai se formando, busca desse perfil, desse desenho preliminar ontológico, percorrer o caminho de concreção e chegar ao objeto efetivamente concreto. Isto é, transformar a ontologia abstrata em ontologia concreta. A ontologia concreta, se pensada em termos de uma ciência autônoma, “independente”, nós temos o produto científico.

Sintetizar todos os dados, integrar sob todos os ângulos, por aquilo que eu chamei de determinações recíprocas e por constituição constelar conceitual, eu chego ao concreto.

Acontecem várias coisas. Duas mais importantes: uma, eu concretei; outra, a abstração ontológica inicial agora pode se converter num perfil ontológico mais abstrato e mais concreto. Portanto, quando eu faço ciência eu não abandono a filosofia. E a retomada, no plano ontológico, permite engordar esse ontológico, significa torná-lo mais complexo, mais rico, mais concreto, e ele passa servir para uma segunda investigação de forma mais profunda. Mais do que isso. Em última análise, aquela idéia de aproximação do conhecimento que eu coloquei tem aqui um dos seus momentos importantes. Eu parto de uma abstração ontológica, chego ao produto científico concreto. Mas, com esse produto científico eu realimento a minha ontologia. Então, eu posso agora fazer novamente o percurso e melhorar a minha ciência. Aí, quando eu cheguei, pela segunda vez, ao final da ciência, eu posso, pela terceira vez, melhorar a ontologia. Eu posso fazer de novo o caminho da ciência. De forma que cada um desses círculos é um círculo de maior amplitude concreta. Hegel falava que a ciência é um círculo feito de círculos. Nesse sentido, estamos aqui numa plataforma hegeliana. Para passar para o marxismo, é preciso substituir círculos por espirais. Então, eu digo: uma espiral de espirais. Onde se vai elevando o nível. E a elevação do nível não está na fixação de generalidades, mas na retratação concreta das singularidades. Mas, para que isso possa ser feito, as tuas generalidades são generalidades agora que abandonam o terreno pura e simplesmente da generalidade abstrata e são generalidade concreta.

O que é generalidade concreta? É a generalização que não contém apenas as igualdades de elementos diversos, mas contém a igualdade e as diferenças. O universal, para Hegel, e especialmente para Marx, não é aquilo que contém apenas o denominador comum de objetos do mesmo tipo, mas contém os elementos diversos. A ciência usa a abstração como mediação. A abstração não é o ponto de chegada, na dialética. É meio. É instrumento.
(Marilu: generalidade concreta é um absurdo! Ou é concreto ou é abstrato).
Isto é o preconceito lógico do positivismo. Isto está estourado desde Hegel. O universal concreto é um conceito decisivo em Hegel. Comte também fez de conta que não existia. O universal concreto é o universal que contém em si, enquanto conceito, a igualdade e a desigualdade e supõe a sua existência na realidade. Trabalho abstrato é um universal concreto.

O momento do perfil ontológico norteia os passos do andamento científico. O arcabouço ontológico me instrui sobre o que fazer no terreno científico. Primeira coisa: o recorte legítimo. Como é que eu recorto legitimamente um objeto? Se eu tomar uma laranja e recortá-la empiricamente, eu posso passar a faca de qualquer lado e de qualquer jeito. Essa talhada corta não ao nível orgânico da laranja e seu eu começo a estudar assim, eu tenho uma arbitrariedade. Qual foi a lógica que me inspirou o corte? Nenhuma. A casualidade. A coleta de dados empíricos é uma causalidade arbitrária. O que eu colho é um caos que não tem ordenação.
(Marilu: depois eu arrumo)
Eis o crime. Eu começo a ordenar pela cabeça e não pela lógica que eles tinham na realidade. Eu dou a ordem, ainda que eles estivessem numa ordem dada. A coleta de dados empíricos desinstrumentalizada ontologicamente significa arrancar manchas empíricas, factualidades de uma lógica à qual eles pertencem sem respeitar essa lógica. E depois arrumá-las.

Se eu tomo a laranja e a recorto de acordo com a lógica orgânica dela própria, aí então eu respeito o seu em si. Este passo é também o passo que esclarece como se gera a ontologia.Ora, se o método deriva da ontologia, a ontologia norteia o método. De onde vem a ontologia?

Se eu tomo a laranja e me aproximo dela já com a atitude de quem a respeita. Supondo que ela tem uma lógica dela, que não sou eu que vou dar a lógica a ela, através da minha cabeça, mas que a minha cabeça vai descobrir a lógica dela, eu já tenho uma atitude completamente diferente da do coletor de dados empíricos. Tiro a casca da laranja; tiro a película que resta; vejo que ela é formada de gomos. Em vez de dar um corte, eu separo os gomos. Eu mantive unidades, eu mantive recortes de integralidade do fruto. Abro a película de um dos gomos e descubro que lá dentro existem aqueles grânulos, que separados são unidades reais. Só nesse descascar, só nessa dissecação eu estou descobrindo as partes da sua integralidade. Eu não vou reinventar depois uma lógica, mas eu já sei que debaixo da casca há gomos, dentro dos gomos há aquelas cápsulas...

O recorte legítimo está em vários níveis. O gomo é um recorte legítimo; a cápsula é outro; a semente é outro...e o meu estudo de integralização que vai do suco que está na cápsula, passando pela cápsula, pelo gomo, pela articulação dos gomos, na junção dentro da cápsula, da casca que se fecha e solta o galho, que se prende à árvore e se liga a um tronco, que desce a uma raiz, que está num solo. A laranja na sua integralidade é esse todo. Esta é a totalidade, o que não quer dizer que eu tenha que estudá-la toda de uma vez. Posso estudar por partes se cada parte estiver referida ao conjunto, se não é uma abstração. Se eu estudo uma parte, em diferentes camadas de concreção eu fico. É legítimo, numa tese, dizer: vou ficar mais abstrato aqui e mais concreto acolá.

Na sociedade, o recorte legítimo obedece a um procedimento muito semelhante. Eu preciso partir da configuração ontológica, que me dá os lineamentos (os modos de produção, as categorias sociais...).

Seguindo, na sociedade, a questão ontológica, eu tenho a possibilidade de recortar. Recortar sempre remetendo ao todo. A primeira coisa das duas últimas que eu quero mencionar é a seguinte: os seres reais se põem na existência e para o pensamento, em três categorias de generalização. Para o pensamento e para a realidade, essas três formas são existentes, isto é, essas três categorias: singularidade, particularidade e universalidade. Não são apenas conceitos, mas são existência. São categorias da consciência e da realidade. Exemplo: cada uma das pessoas aqui presentes é uma singular da universalidade humanidade. Exemplo de particularidade: os homens de um lado, as mulheres de outro.

Na sociedade, na vida humana no seu conjunto, essas três formas, tem três formas muito importantes e o pensamento não dialético elimina uma delas. Faz uma operação de eliminação no plano lógico para poder eliminar a nível sociológico. Entre a singularidade indivíduo e a universalidade humanidade estabelece-se em geral o vácuo, isto é, entre a individualidade e a universalidade não aparece nenhuma mediação. O indivíduo é remetido à universalidade da humanidade diretamente. Contudo, em termos reais, este elemento é a mediação que liga o indivíduo à humanidade. A particularidade que é eliminada por um golpe mágico das correntes não dialéticas é a classe. A classe é, do ponto de vista histórico, a mais importante das particularidades. O indivíduo pertence à humanidade passando pela sua pertinência à classe. A lógica das ciências humanas, em geral, aboliu a lógica da particularidade precisamente para poder abolir a efetividade das classes sociais. Ou apenas preserva a particularidade como forma lógica da mediação ao estilo aristotélico onde o particular é pura e simplesmente um elo de ligação. No silogismo, o termo médio só funciona como mediação conceitual. Na dialética, a particularidade é concebida como existência real e por isso ela redunda, na consciência, numa categoria que é lógica, mas é lógica porque é real. E a concreção tem nesta particularidade toda a chave do método.

Quando eu quero designar um objeto, uma coisa qualquer (o método dialético se posta diante da coisa – aqui coisa não necessariamente entendida como pedra – a coisa social é muito diferente de uma coisa pedra, mas da coisa enquanto coisa que não está convertida ainda em objeto – eu dizia que o método dialético presta atenção a este momento e busca a conversão da coisa em objeto. O que é a coisa? É aquilo que ainda não entrou numa relação com um sujeito qualquer que a transforma em objeto. Objeto é a designação da coisa quando há um sujeito que se relaciona com ela. O em si de um objeto é a coisa. É algo que a dialética de Marx quer apanhar independentemente da relação com o sujeito cognoscente. Através do objeto ela vai buscar a coisa. Por aí estão eliminadas todas aquelas colocações bachelardianas da construção do objeto. Marx é o oposto de Bachelard. Bachelard é uma sofisticação da retomada do construto racionalista. E está naquele ramo dos positivismos. Se Bachelard quer construir o objeto, Marx quer, através do objeto, que não é construído, mas tomado, chegar à coisa. Chegar à coisa é operar a concreção.

Partindo de Hegel, que na Fenomenologia do espírito aponta isto com muito talento: a mudez da singularidade imediata. A singularidade imediata é muda. Significa: diante de uma coisa dada singularmente na sua imediaticidade essa coisa não pode ser dita nem pensada. Tente-se pensar essa garrafa sem pensar na palavra garrafa. Para dizê-lo, eu determino: esta é garrafa. O que é garrafa do ponto de vista lógico? É uma universalidade abstrata. Para designar a singularidade eu tenho que lançar mão imediatamente da universalidade. O objeto singular concreto, na sua imediaticidade, ganha voz pelo seu contrário, pela sua abstração. O objeto, uma vez atado a esse universal, passa a ser dizível, passa a ser pensável. Mas, note que para passar a ser pensável e dizível ele perdeu todo o seu conteúdo concreto. Quando, numa ciência, eu parto da visão caótica de mundo, para começar a falar desse caos de coisas eu começo a classificá-las através de abstrações. Exemplo: sociedade: o sistema de produção, o sistema de distribuição, o sistema bancário, etc. Para falar delas, eu fujo para um universo vazio de conteúdo, mas que é significante. A operação científica do positivismo se encerra aqui. Claro que a partir dessas abstrações a ciência começa a fazer o que. No positivismo? Começa a procurar articular estas palavras pelas palavras, não mais pela sua realidade. Os modelos são isso. Por isso que o marxismo não trabalha com modelos. A dialética rejeita completamente a noção de modelo. Par Marx, este momento que foi da singularidade muda à universalidade abstrata, que designa, que fala, esse é o instante preliminar classificatório ainda não científico. A ciência é um outro movimento, que partindo dessas abstrações faz o caminho de volta para reencontrar a singularidade concreta não mais na imediaticidade da sua mudez, mas na voz multifacética da sua concretude, que é a síntese de todas as determinações colhidas no percurso que vai da abstração à concreção. Como isto é feito? Isto é operado pela lógica da particularidade.

Falávamos em universal, particular, singular. O singular é uma unidade, é um ponto. O universal também é um ponto. O particular é diferente. O particular é um campo infinito. A particularidade é o instrumento da concreção. É um instrumento que vai limitando, determinando a universalidade.

Mesmo a universalidade, na medida em que ela é tomada como universalidade concreta, então ela não é mais entendida apenas como a súmula das desigualdades, mas ela é a súmula das desigualdades e das diferenças. Então, a própria universalidade contém em si a desigualdade. Vale aqui, por aproximação, lembrar de um dos princípios básicos da lógica hegeliana retomado por Marx: a identidade da identidade e da não identidade, isto é, o idêntico entre o igual e o diferente. Isto é que dá origem à noção de contradição. Elementos contrapostos, idênticos entre si e diferentes entre si. O importante é esta volta daqui para o concreto através do particular, que é um campo. Um campo significa que ele não é unitário, ele é multifacético. Ele traz para a universalidade o recorte da determinação. A universalidade é uma indeterminação. A particularidade vai conferindo determinação a algo indeterminado. O processo puntiforme opera que progressivamente a universalidade vai perdendo universalidade porque ela vai sendo determinada e ganhando concretude, exatamente porque ela está perdendo generalidade. Ao perder generalidade, ela está ganhando uma consubstanciação de determinantes da sua limitação. A síntese de componentes distintas que constituem o total neste campo de mediação e neste campo de efetivação do real faz com que o particular vá costurando os diferentes pedaços na medida certa da identidade e da não identidade, articulando o igual e o desigual a ponto de que todas as abstrações que estavam recambiadas para cá, mas não na indeterminação em que estavam aqui, mas sim na extensão, na qualidade e no tamanho que elas têm efetivamente sob o singular concreto. Resultado: os conceitos assim articulados fazem agora com que reencontrem o singular não mais mudo, mas sim falante e falante sob todas as abstrações, mas abstrações na medida certa em cada singular. Isto é a concreção.

= = =
[0] Este texto faz parte da melhor fase do José Chasin, quando era adepto do materialismo dialético. Diferente do último Chasin: estatuto metafísico e regressão metodológica (hartmanniana).
= = =
CHASIN, J. “Método dialético”. Transcrição das aulas ministradas durante o curso de pós-graduação em Filosofia Política, promovido pelo Dep. de Filosofia e História da Universidade Federal de Alagoas, de 25/01 a 06/02 de 1988.
= = =