quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A literatura naturalista e a dissolução da forma romanesca



por György Lukács

Ao lado do grande romance, sempre existiu uma literatura meramente agradável. Ela jamais enfrentou seriamente os grandes problemas sociais, mas limitou-se a reproduzir o mundo tal como ele se reflete na consciência burguesa média. No período de ascensão da burguesia, contudo, a oposição entre literatura meramente agradável e o grande romance não era de modo algum tão nítida quando veio a se tornar no período da decadência burguesa. No plano da escrita, a velha literatura agradável ainda vivia das tradições da robusta arte narrativa popular; em sentido social, só raramente ela caía numa apologética grosseira e mentirosa. As coisas se passam de modo inteiramente diverso no período da decadência da burguesia. A apologia se torna o traço cada vez mais predominante da ideologia burguesa: quanto mais emergem de modo nítido as contradições do capitalismo, tanto mais grosseiros se tornam os meios utilizados para glorificá-lo de modo mentiroso e para caluniar o proletariado revolucionário e os trabalhadores rebeldes. Em consequência, no período posterior a 1848, o romance sério, verdadeiramente artístico, tem de se posicionar contra a corrente dominante e se afastar cada vez mais da ampla massa dos leitores de sua própria classe. Esta posição oposicionista, quando não leva a uma adesão à causa do proletariado, cria em torno do escritor burguês uma atmosfera de isolamento social e artístico cada vez mais profundo. Ao contrário dos escritores do período anterior, eles não podem mais viver a vida da sociedade, a vida de sua própria classe, nem participar de suas lutas; transformam-se em observadores de uma realidade social que lhes é, em maior ou menor medida, estranha e hostil.

Devido a esta situação, os grandes escritores deste período só podem recolher do passado a herança do romantismo. A relação viva entre eles e as grandes tradições do período ascendente da burguesia se debilita de modo crescente; mesmo quando se sentem herdeiros destas tradições e estudam com afinco o seu legado, encaram-no cada vez mais de um ponto de vista romântico. Flaubert é o primeiro e, ao mesmo tempo, o maior representante deste novo realismo que busca o caminho de uma apropriação artística da realidade burguesa em oposição a uma apologética vulgar e mentirosa. A fonte artística do realismo flaubertiano reside no ódio e no desprezo pela realidade burguesa, que ele observa e descreve com extraordinária exatidão em suas manifestações humanas e psicológicas; mas, ao analisá-las, ele não vai além da polaridade cristalizada das contradições que emergem à superfície, sem penetrar em suas conexões essenciais mais profundas. O mundo que ele configura é o mundo da prosa definitivamente consolidada. Tudo o que é poético existe doravante somente no sentimento subjetivo, na revolta impotente dos homens (dos “jovens” de Hegel) contra a prosa da vida; a ação do romance pode consistir apenas na figuração do modo pelo qual este sentimento de revolta, a priori impotente, é esmagado por esta vil prosa burguesa. De acordo com esta concepção fundamental, Flaubert introduz em seus romances o mínimo de ação possível; descreve eventos e homens que quase não superam o nível da realidade burguesa cotidiana, sem fornecer ao leitor nem um enredo épico nem situações e personagens concretos. Já que o ódio e o desprezo pela realidade escrita constituem o ponto de partida de seu método criativo, ele renuncia conscientemente ao modo narrativo característico de todos os velhos realistas (um modo que, nos maiores dentre eles, aproxima-se mesmo do estilo da epopeia). Esta arte da narração é substituída em Flaubert, pela descrição refinada de detalhes sofisticados. A banalidade da vida, contra a qual se insurge romanticamente este realismo, é figurada num plano puramente “artístico”: não são as características objetivamente importantes da realidade que se encontram no centro da atenção do artista, mas a banalidade cotidiana, que ele recria por meio da revelação artística de seus detalhes mais vistosos.

A essência da herança romântica reside sobretudo no falso dilema entre objetivismo e subjetivismo. O dilema é falso porque este subjetivismo e este objetivismo são igualmente vazios, inflados e coagulados. Mas o dilema era inevitável porque sua origem não está na individualidade deste ou daquele artista, ou em sua ausência de honestidade ou talento, mas tem sua base na situação social do intelectual burguês no período da decadência ideológica da burguesia. Subjetivismo vazio e objetivismo inflado são as categorias que aparecem necessariamente na superfície do mundo fenomênico do capitalismo consolidado. Fechados no círculo mágico deste mundo objetivo e necessário dos fenômenos, é em vão que os grandes escritores realistas deste período buscam encontrar um terreno objetivo sólido para sua criação realista e, ao mesmo tempo, conquistar para a poesia, a partir das forças interiores do sujeito, um mundo que se tornou prosaico.

A intenção consciente de Émile Zola é superar as tendências românticas; mas isto ocorre apenas na intenção, apenas em sua própria imaginação. Ele quer que o romance tenha uma base científica; propõe substituir a fantasia e o arbítrio inventivo pelo experimento e pela documentação. Mas esta cientificidade não é mais do que uma variante do realismo romântico, sentimental e paradoxal de Flaubert: com Zola, passa a predominar o aspecto pseudo-objetivo do romantismo. É verdade que Goethe e Balzac encontraram nas ideias científicas de Geoffroy de Saint-Hilaire muitos estímulos úteis para explicar seu próprio método criativo de figuração da sociedade; mas o fato é que, neles, esta influência científica não fez mais do que reforçar uma tendência dialética que já existia, ou seja, a tendência a descobrir as principais contradições da sociedade. Ao contrário, a tentativa de Zola de usar neste sentido as ideias de Claude Bernard levou-o apenas a um registro pseudocientífico dos sintomas do desenvolvimento capitalista e não o fez penetrar nos fundamentos deste processo. (Paul Lafargue observa corretamente que, para a prática literária de Zola, o vulgarizador Lombroso contou muito mais do que Claude Bernard.). Experimentação e documentação significam, na prática, que Zola não participa do mundo, não figura no romance suas próprias experiências de vida e de luta, mas se aproxima de um complexo social como um repórter (na justa observação de Lafargue) que tem como objetivo descrever tal complexo. O universo de Zola é o canhão louco de Victor Hugo, do qual já falamos, tornado prosaico.

Zola descreve com muita exatidão o modo como escreveu seus romances; de resto, segundo ele, este é o modo com devem ser escritos os romances realistas. Diz ele:
Um de nossos romancistas naturalistas quer escrever um romance sobre o mundo dos teatros. Parte desta ideia geral, sem ter ainda um fato ou um personagem. Sua primeira preocupação deve ser a de agrupar num conjunto de notas tudo o que pode saber sobre o mundo que pretende figurar. Deve conhecer um ator, assistir uma peça. Depois, [...] conversará com os homens mais informados sobre o assunto e coletará as palavras, as histórias, os retratos. Isso não basta: ele buscará em seguida os documentos escritos. [...] Finalmente, visitará os locais, viverá alguns momentos num teatro para conhecer todos os seus recantos, passará noites no camarim de uma atriz, impregnar-se-á o mais possível do ar ambiente. E, uma vez recolhidos todos os documentos, seu romance se escreverá por si mesmo. O romancista terá apenas de distribuir logicamente os fatos [...] O interesse não está na excentricidade da história; ao contrário, quanto mais banal e comum ela for, tanto mais se tornará típica.[1]
O falso objetivismo deste método se manifesta aqui, com toda clareza, no fato de que, em primeiro lugar, Zola identifica o banal com o típico e o contrapõe apenas ao singular, ao simplesmente interessante; e, em segundo, no fato de que ele não vê mais o que é característico e significativamente artístico na ação, na reação ativa do homem aos eventos do mundo exterior. Nele, a figuração épica das ações é substituída pela descrição dos fatos e das circunstâncias.

A contraposição entre narrar e descrever é tão velha quanto a literatura burguesa, já que o método criativo da descrição nasceu da reação imediata do escritor à realidade prosaicamente cristalizada, que exclui toda ação espontânea do homem.[2] É bastante significativo que já Lessing tenha protestado energicamente contra o método descritivo por ser ele contrário às leis da poesia, em geral, e da épica, em particular; sobre isso, Lessing cita Homero para mostrar, com base no exemplo do escudo de Aquiles, que no autêntico poeta épico todo “objeto acabado” se dissolve numa série de ações humanas. É inútil, mesmo nos melhores escritores, a luta contra a crescente onda da prosa burguesa da vida; isso pode ser comprovado no fato de que a figuração das ações humanas é cada vez mais suplantada, no romance, pela descrição das coisas e dos fatos. Zola não faz mais do que formular teoricamente, de modo bastante nítido, a decadência espontânea da arte narrativa no romance moderno. Ele ainda se encontra no início desta decadência; e é por isso que suas obras, num grande número de episódios apaixonantes, ainda estão próximas das grandes tradições do romance. Mas as linhas fundamentais de sua criação já abrem caminho para uma nova orientação. Basta comparar a cena de uma corrida de cavalos em seu romance Naná e aquela contida em Ana Karênina de Tolstoi. Em Tolstoi, trata-se de uma cena épica viva, na qual tudo é épico, desde a sela do cavalo até o público, ou seja, onde tudo é construído através das ações dos homens em situações para eles significativas. Em Zola, temos uma descrição esplêndida de um evento da vida da sociedade parisiense, evento que, do ponto de vista da ação, não tem nenhuma ligação com o destino da protagonista do romance, e a que os demais personagens assistem apenas na condição de espectadores interessados, mas não envolvidos. Em Tolstoi, a cena da corrida é um episódio épico na ação do romance; em Zola, é uma simples descrição. Tolstoi, portanto, não tem necessidade de “inventar” uma “relação” entre os elementos objetivos deste episódio e os protagonistas do romance porque a corrida é parte essencial da própria ação. Zola, ao contrário, é obrigado a ligar a corrida ao resto do conteúdo de seu romance de modo simbólico, ou seja, mediante a coincidência casual dos nomes do cavalo vencedor e da protagonista do romance.

Este uso do simbolismo, que Zola recolheu como herança em Victor Hugo, atravessa toda sua obra: a grande loja, a Bolsa etc., são símbolos da vida moderna elevados a uma gigantesca dimensão, como a igreja de Notre-Dâme ou o canhão em Victor Hugo. O falso objetivismo de Zola se manifesta de modo mais claro nesta coexistência inorgânica de dois princípios criativos inteiramente heterogêneos: o detalhe apenas observado e o símbolo puramente lírico. Este caráter inorgânico atravessa toda a composição: já que o mundo descrito ema cada romance não é construído com base em ações concretas de homens concretos em situações concretas, mas é uma espécie de recipiente, de ambiente abstrato no qual os homens são inseridos a posteriori, desaparece a ligação necessária entre o personagens e ação; para o mínimo de ação indispensável, basta algum traço recolhido dos casos médios. Contudo, a prática de Zola é, também aqui, melhor que sua teoria, ou seja, as características de seus personagens são mais ricas do que os enredos que ele concebe; mas, precisamente por isso, eles não se transformam em ações, permanecendo objeto de simples observações e descrições. Portanto, o número de tais descrições pode aumentar ou diminuir à vontade. A cientificidade do método de Zola, cujo objetivismo mal oculta  empobrecimento da imagem do mundo social que ele constrói, não pode assim nem levar a um reflexo exato das contradições da sociedade capitalista, no plano do conhecimento, nem a criação de obras narrativas acabadas, no plano artístico. Lafargue mostra corretamente que, apesar da exatidão de suas observações singulares, Zola aborda temas dos quais não vê as determinações sociais decisivas (o alcoolismo dos operários em O matadouro, a oposição entre velho e novo capitalismo em O dinheiro). Por outro lado, no que se refere ao desenvolvimento do romance, não têm tanta importância os erros de fato cometidos por Zola na interpretação dos fenômenos sociais (embora os velhos realistas, por participarem pessoalmente das lutas sociais de seu tempo, intuíssem a verdade nas questões decisivas), mas sim o fato de que tais erros favoreceram a aceleração da dissolução da forma romanesca. Os grandes “historiadores da vida privada” tiveram por sucessores tão somente cronistas líricos ou jornalísticos dos eventos do dia a dia.

Flaubert e Zola constituem a última inflexão no desenvolvimento do romance. Por isso, tornou-se necessário examinar mais detalhadamente suas obras, já que as tendências à dissolução da forma do romance manifestam-se neles, pela primeira vez, de uma forma quase clássica. O desenvolvimento ulterior do romance, apesar de toda a sua variedade, transcorre nos quadros dos problemas já delineados em Flaubert e Zola, ou seja, no quadro do falso dilema entre subjetivismo e objetivismo, que leva inevitavelmente a uma série de outras antíteses igualmente falsas, como, por exemplo, a perda cada vez mais irremediável da verdadeira tipicidade das situações e dos personagens, substituída pelo falso dilema entre a banalidade da média e o que é puramente “original” ou “excêntrico”. Em consequência deste falso dilema, o desenvolvimento do romance moderno oscila entre os dois extremos igualmente falsos da “cientificidade” e do irracionalismo, entre o fato bruto e o símbolo, entre o documento da “alma” ou da “atmosfera”. Decerto, não faltam nem mesmo as tentativas de voltar ao verdadeiro realismo. Mas tais tentativas só em raríssimos casos vão além de uma aproximação ao realismo flaubertiano. Não se trata de um caso. Zola, como escritor honesto, afirma sobre sua própria prática: “Agora, toda vez que me empenho num estudo, deparo-me com o socialismo”[3] Na atual sociedade, um escritor não tem de modo algum a necessidade de tratar tematicamente das questões imediatas da luta proletária de classe para se deparar com o problema, central na nossa época, da luta entre capitalismo e socialismo. Mas, para enfrentar até o fundo todo o conjunto de questões relativas a esta luta, o escritor deve romper com o círculo mágico da ideologia burguesa decadente. Somente pouquíssimos escritores são capazes de fazê-lo; os demais restam prisioneiros, em sentido artístico e literário, deste círculo cada vez mais estreito, cada vez mais repleto de contradições. A ideologia da burguesia decadente, cada vez mais apologética, restringe continuamente a esfera da atividade criativa do escritor. Como diz Heinrich Mann, “saber o que um escritor virá a ser depende daquilo que sua classe pode suportar”.

Não podemos propor aqui, nem mesmo sumariamente, uma história do romance mais recente. Registraremos apenas — ao lado da tendência decadente geral da ideologia burguesa, que culmina na barbárie fascista e no sufocamento consciente de toda tentativa de figuração da verdadeira realidade — os principais tipos de solução para os impasses do romance que foram tentadas na últimas décadas. Repetimos: elas permanecem todas no plano do falso dilema que já observamos em Flaubert e Zola. A escola de Zola, em sentido estrito, desagregou-se muito cedo, o “zolismo”, o falso objetivismo do romance documental, subiste até hoje, com a única diferença de que os laços que ainda ligavam Zola ao velho realismo se rompem cada vez mais e o programa de Zola se realiza de modo cada vez mais puro (o que não exclui o surgimento de algumas obras bem realizadas deste tipo, como, por exemplo, alguns romances de Upton Sinclair). Com muito mais força, naturalmente, crescem o subjetivismo e o irracionalismo, que surgem logo após a desagregação da escola de Zola propriamente dita. Esta tendência transforma paulatinamente o romance num agregado de fotografias instantâneas da vida interior do homem e, no final, leva à completa dissolução de todo conteúdo e de toda forma do romance (Joyce, Proust).

Como protesto contra estes fenômenos de dissolução, fazem-se as mais variadas tentativas — no mais das vezes reacionárias — de renovar a antiga força e vitalidade da narração. Alguns escritores fogem da realidade capitalista para um mundo rural estilizado, que pretende estar nos antípodas do capitalismo (como Knut Hamsum), ou num mundo colonial não ainda contaminado pelo capitalismo (Kipling); outros, através de uma reconstrução estética das condições da velha arte narrativa, buscam restabelecer o romance como forma artística (redução à novela, estilização histórico-decorativaao mode de Conrad Ferdinand Meyer) etc. Naturalmente, surgem também escritores que fazem a tentativa heroica de nadar contra a corrente e, com base em um crítica honesta da sociedade contemporânea, buscam conservar ou reativar as grandes tradições do romance. À medida que, por um lado, aprofundam-se as contradições e a degradação da ordem capitalista e, por outro, fortalece-se vitoriosamente o socialismo na União Soviética, à medida que crescem os sentimentos revolucionários entre os intelectuais, os melhores representantes da literatura ocidental rompem as relações com a burguesia, o que abre para a sua criação amplas perspectivas (Romain Rolland, André Gide, André Malraux, Jean-Richard Bloch etc.).

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Notas:
[1] E. Zola, Le roman expérimental, Paris, Garnier-Flammarion, 1979, p. 214-215. 
[2] Lukács desenvolve este argumento, inclusive a comparação entre Naná e Ana Karênina, em seu ensaio
“Narrar ou descrever?”, em id., Ensaios sobre literatura, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 47-48. 
[3] Carta a J. Van Santen Kolff, de junho de 1886.
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LUKÁCS, G. “O romance como epopeia burguesa”. In: Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 228-235).
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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A dissolução da Political Economy e o desenvolvimento da Economics

por José Paulo Netto e Marcelo Braz
 
A crise da Economia Política clássica

Entre os anos vinte e quarenta do século XIX — ou, com mais exatidão, entre 1825/1830 e 1848[1] — desenha-se a crise e a dissolução da Economia Política clássica. Essa crise insere-se num contexto bem determinado: nessas décadas, altera-se profundamente a relação da burguesia com a cultura ilustrada de que se valera no seu período revolucionário, cultura que configura, no plano das ideias, o chamado Programa da Modernidade.

A cultura ilustrada condensa um projeto de emancipação humana que foi conduzido pela burguesia revolucionária, resumido na célebre consigna liberdade, igualdade, fraternidade. Entretanto, a emancipação possível sob o regime burguês, que se consolida nos principais países da Europa Ocidental na primeira metade do século XIX, não é emancipação humana, mas somente emancipação política. Com efeito, o regime burguês, emancipou os homens das relações de dependência pessoal, vigentes na feudalidade; mas a liberdade política, ela mesma essencial, esbarrou sempre num limite absoluto, que é o próprio regime burguês: nele, a igualdade jurídica (todos são iguais perante a lei) nunca pode se traduzir em igualdade econômico-social — e, sem esta, a emancipação humana é impossível.

Portanto, a Revolução Burguesa, realizada, não conduziu ao prometido reino da liberdade: conduziu a uma ordem social sem dúvida muito mais livre que a anterior, mas que continha limites insuperáveis à emancipação da humanidade. Tais limites deviam-se ao fato de a revolução resultar numa nova dominação de classe — o domínio de classe da burguesia. E não é preciso dizer que a existência daqueles limites contradizia as promessas emancipadoras contidas na cultura ilustrada.

Instaurando o seu domínio de classe, a burguesia experimenta uma profunda mudança: renuncia aos seus ideais emancipadores e converte-se numa classe cujo interesse central é a conservação do regime que estabeleceu. Convertendo-se em classe conservadora, a burguesia cuida de neutralizar e/ou abandonar os conteúdos mais avançados da cultura ilustrada. Por seu turno, as classes e camadas sociais que, ao lado da burguesia revolucionária, articularam o bloco social do Terceiro Estado e agora viam-se objeto da dominação burguesa trataram de retomar aqueles conteúdos e adequá-los a seus interesses.

O movimento das classes sociais, naqueles anos — entre as décadas de vinte e quarenta do século XIX —, mostra inequivocamente que estava montado um novo cenário de confrontos: não mais entre burguesia (que, antes, liderara o Terceiro Estado) e a nobreza, mas entre a burguesia e segmentos trabalhadores, com destaque para o jovem proletariado. Se o movimento ludista inglês fora derrotado pouco antes, a ele substituiu-se o movimento cartista; e, no continente, avolumam-se as rebeliões e insurreições. Todo esse processo vai explodir nas revoluções de 1848; nas convulsões que abalam a Europa, um novo antagonismo social central está agora na ordem do dia — dois protagonistas começam a se enfrentar diretamente, a burguesia conservadora e o proletariado revolucionário.

No plano das ideias, 1848 assinala uma inflexão de significado histórico-universal: a burguesia abandona os principais valores da cultura ilustrada e ingressa no ciclo da sua decadência ideológica, caracterizado por sua incapacidade de classe para propor alternativas emancipadoras; a herança ilustrada passa às mãos do proletariado, que se situa, então, como sujeito revolucionário.

É nesse contexto que se compreende a crise da Economia Política clássica — sua crise é parte daquela inflexão, ocasionada pela conversão da burguesia em classe conservadora. Na medida em que expressa os ideais da burguesia revolucionária, a Economia Política clássica torna-se incompatível com os interesses da burguesia conservadora. Não é casual, portanto, que o pensamento burguês pós-1848 abandone as conquistas teóricas da Economia Política clássica — como também não é casual que tais conquistas se transformem num legado a ser assumido pelos pensadores vinculados ao proletariado.

Uma observação é suficiente para indicar a incompatibilidade da Economia Política clássica com os interesses da burguesia convertida em classe dominante e conservadora. Trata-se do modo como aquela enfrentou o problema da riqueza social (ou, mais exatamente, da criação de valores): para os clássicos, o valor é produto do trabalho. Se essa concepção era útil à burguesia que se confrontava com o parasitismo da nobreza, deixou de sê-lo quando pensadores ligados ao proletariado começaram a extrair dela consequências socialistas. A teoria clássico do valor-trabalho, que fora uma arma da burguesia na crítica ao Antigo Regime, torna-se agora uma crítica ao regime burguês: nas mãos de pensadores vinculados ao proletariado, a teoria do valor-trabalho serve para investigar e demonstrar o caráter explorador do capital (representado pela burguesia) em face do trabalho (representado pelo proletariado). Os clássicos puderam desenvolver a teoria do valor-trabalho porque pesquisavam a vida social e econômica a partir da produção dos bens materiais, e não da sua distribuição; por isso, não só a teoria do valor-trabalho era incompatível com os interesses da burguesia conservadora; também o era a pesquisa da vida social fundada no estudo da produção econômica.

Compreende-se, assim, que após 1848, tanto a teoria do valor-trabalho quanto a investigação social e econômica a partir da análise da produção tenham sido abandonadas pelo pensamento burguês conservador; mais do que isso: foram consideradas “extracientíficas” pela Economia que, a partir da segunda metade do século XIX, substituiu — na cultura burguesa e especialmente nos meios acadêmicos — a Economia Política clássica. E se compreende também que ambas, a teoria do valor-trabalho e a análise social e econômica a partir da produção, tenham sido recuperadas pelos pensadores vinculados aos interesses das massas trabalhadoras.

Se, entre 1825/1830 e 1840, a Economia Política clássica experimenta a sua crise, na segunda metade do século a sua inteira dissolução está consumada — e isso se verifica até mesmo pelo desuso da expressão Economia Política. De fato, o que resulta da dissolução da Economia Política clássica são duas linhas de desenvolvimento teórico mutuamente excludentes: a investigação conduzida pelos pensadores ligados à ordem burguesa e a investigação realizada pelos intelectuais vinculados ao proletariado (com Karl Marx à frente). Nos dois casos, a antiga expressão é deslocada, no primeiro é abandonada e substituída pela nominação mais simples de Economia[2]; quanto a Marx, ele sempre se refere à sua pesquisa como crítica da Economia Política. E, em ambos os casos, a mudança de nomenclatura sinaliza alterações substantivas na concepção teórica, relativas aos valores, ao objeto, ao objetivo e a método de pesquisa.

A Economia vai se desenvolver no sentido de uma disciplina científica estritamente especializada, depurando-se de preocupações históricas, sociais e políticas. Tais preocupações serão postas à conta das outras ciências sociais que se articulam na sequência de 1848: a História, a Sociologia e a Teoria (ou Ciência) Política. No marco dessa “divisão intelectual do trabalho científico”, a Economia se especializa, institucionaliza-se como disciplina particular, específica, marcadamente técnica, que ganha estatuto científico-acadêmico. Adequada à ordem social da burguesia conservadora, torna-se basicamente instrumental e desenvolve um enorme arsenal técnico (valendo-se intensivamente de modelos matemáticos). Ela renuncia a qualquer pretensão de fornecer as bases para a compreensão do conjunto da vida social e, principalmente, deixa de lado procedimentos analíticos que partem da produção — analisa preferencialmente a superfície imediata da vida econômica (os fenômenos da circulação), privilegiando o estudo da distribuição dos bens produzidos entre os agentes econômicos e quando, excepcionalmente, atenta para a produção, aborda-a de modo a ladear a teoria do valor-trabalho.

Tal Economia, cujos esboços aparecem nos textos de autores que Marx qualificou como economistas vulgares[3], tem as suas primeiras formulações mais bem acabadas nas obras de William S. Jevons (1835-1882), Carl Menger (1840-1921) e Léon Walras (1834-1910). No curso de seu desenvolvimento, do fim do século XIX até os dias atuais, ela evoluiu no sentido de inúmeras especialidades e se diferenciou numa infinidade de “escolas”, lideradas em alguns casos, por intelectuais muito qualificados[4]. Perfeitamente integrada nos circuitos universitários, legitimou-se produzindo um corpo de profissionais credenciados para atuar como gestores nas empresas capitalistas e na administração pública.

A constituição dessa “ciência econômica” marca uma verdadeira ruptura em face da Economia Política clássica. Desta, ela herdou uma característica: a consideração das categorias econômicas próprias do regime burguês como realidades supra-históricas, eternas, que não devem ser objeto de transformação estrutural, senão ao preço da destruição da “ordem social”; assim, para essa “ciência econômica”, propriedade privada, capital, salário, lucro etc.. fazem parte, natural e necessariamente, de qualquer forma de organização social “normal”, “civilizada”, e devem sempre ser preservados. Mas a “ciência econômica” abandonou resolutamente as ideias que, formuladas pela Economia Política clássica, poderiam constituir elementos de crítica ao regime burguês (por exemplo, a teoria valor-trabalho, que foi substituída pela teoria da “utilidade marginal”). e. com esse procedimento de princípio, tornou-se um importante instrumento de administração, manipulação e legitimação da ordem comandada pela burguesia.

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Notas:
[1] Por volta de 1825, manifestou-se a primeira crise econômica do capitalismo; em 1848, explodiram revoluções democrático-populares na Europa Ocidental e Central.
[2] Esta substituição — Political Economy por Economics — foi consagrada com a publicação, em 1890, dos influentes Principles of Economics [Princípios de Economia], de Alfred Marshall (1842-1924).
[3] Para Marx, entre outros, eram típicos representantes da “economia vulgar” William Nassau Senior (1790-1864), Fredéric Bastiat (1801-1850) e John Stuart Mill (1806-1873).
[4] Entre os quais cabe destaque para o austríaco Joseph A. Schumpeter (1883-1950) e o inglês John M. Keynes (1883-1946). 
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NETTO, J. P.; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006, pp. 19-23.
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