quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

A literatura naturalista e a dissolução da forma romanesca



por György Lukács

Ao lado do grande romance, sempre existiu uma literatura meramente agradável. Ela jamais enfrentou seriamente os grandes problemas sociais, mas limitou-se a reproduzir o mundo tal como ele se reflete na consciência burguesa média. No período de ascensão da burguesia, contudo, a oposição entre literatura meramente agradável e o grande romance não era de modo algum tão nítida quando veio a se tornar no período da decadência burguesa. No plano da escrita, a velha literatura agradável ainda vivia das tradições da robusta arte narrativa popular; em sentido social, só raramente ela caía numa apologética grosseira e mentirosa. As coisas se passam de modo inteiramente diverso no período da decadência da burguesia. A apologia se torna o traço cada vez mais predominante da ideologia burguesa: quanto mais emergem de modo nítido as contradições do capitalismo, tanto mais grosseiros se tornam os meios utilizados para glorificá-lo de modo mentiroso e para caluniar o proletariado revolucionário e os trabalhadores rebeldes. Em consequência, no período posterior a 1848, o romance sério, verdadeiramente artístico, tem de se posicionar contra a corrente dominante e se afastar cada vez mais da ampla massa dos leitores de sua própria classe. Esta posição oposicionista, quando não leva a uma adesão à causa do proletariado, cria em torno do escritor burguês uma atmosfera de isolamento social e artístico cada vez mais profundo. Ao contrário dos escritores do período anterior, eles não podem mais viver a vida da sociedade, a vida de sua própria classe, nem participar de suas lutas; transformam-se em observadores de uma realidade social que lhes é, em maior ou menor medida, estranha e hostil.

Devido a esta situação, os grandes escritores deste período só podem recolher do passado a herança do romantismo. A relação viva entre eles e as grandes tradições do período ascendente da burguesia se debilita de modo crescente; mesmo quando se sentem herdeiros destas tradições e estudam com afinco o seu legado, encaram-no cada vez mais de um ponto de vista romântico. Flaubert é o primeiro e, ao mesmo tempo, o maior representante deste novo realismo que busca o caminho de uma apropriação artística da realidade burguesa em oposição a uma apologética vulgar e mentirosa. A fonte artística do realismo flaubertiano reside no ódio e no desprezo pela realidade burguesa, que ele observa e descreve com extraordinária exatidão em suas manifestações humanas e psicológicas; mas, ao analisá-las, ele não vai além da polaridade cristalizada das contradições que emergem à superfície, sem penetrar em suas conexões essenciais mais profundas. O mundo que ele configura é o mundo da prosa definitivamente consolidada. Tudo o que é poético existe doravante somente no sentimento subjetivo, na revolta impotente dos homens (dos “jovens” de Hegel) contra a prosa da vida; a ação do romance pode consistir apenas na figuração do modo pelo qual este sentimento de revolta, a priori impotente, é esmagado por esta vil prosa burguesa. De acordo com esta concepção fundamental, Flaubert introduz em seus romances o mínimo de ação possível; descreve eventos e homens que quase não superam o nível da realidade burguesa cotidiana, sem fornecer ao leitor nem um enredo épico nem situações e personagens concretos. Já que o ódio e o desprezo pela realidade escrita constituem o ponto de partida de seu método criativo, ele renuncia conscientemente ao modo narrativo característico de todos os velhos realistas (um modo que, nos maiores dentre eles, aproxima-se mesmo do estilo da epopeia). Esta arte da narração é substituída em Flaubert, pela descrição refinada de detalhes sofisticados. A banalidade da vida, contra a qual se insurge romanticamente este realismo, é figurada num plano puramente “artístico”: não são as características objetivamente importantes da realidade que se encontram no centro da atenção do artista, mas a banalidade cotidiana, que ele recria por meio da revelação artística de seus detalhes mais vistosos.

A essência da herança romântica reside sobretudo no falso dilema entre objetivismo e subjetivismo. O dilema é falso porque este subjetivismo e este objetivismo são igualmente vazios, inflados e coagulados. Mas o dilema era inevitável porque sua origem não está na individualidade deste ou daquele artista, ou em sua ausência de honestidade ou talento, mas tem sua base na situação social do intelectual burguês no período da decadência ideológica da burguesia. Subjetivismo vazio e objetivismo inflado são as categorias que aparecem necessariamente na superfície do mundo fenomênico do capitalismo consolidado. Fechados no círculo mágico deste mundo objetivo e necessário dos fenômenos, é em vão que os grandes escritores realistas deste período buscam encontrar um terreno objetivo sólido para sua criação realista e, ao mesmo tempo, conquistar para a poesia, a partir das forças interiores do sujeito, um mundo que se tornou prosaico.

A intenção consciente de Émile Zola é superar as tendências românticas; mas isto ocorre apenas na intenção, apenas em sua própria imaginação. Ele quer que o romance tenha uma base científica; propõe substituir a fantasia e o arbítrio inventivo pelo experimento e pela documentação. Mas esta cientificidade não é mais do que uma variante do realismo romântico, sentimental e paradoxal de Flaubert: com Zola, passa a predominar o aspecto pseudo-objetivo do romantismo. É verdade que Goethe e Balzac encontraram nas ideias científicas de Geoffroy de Saint-Hilaire muitos estímulos úteis para explicar seu próprio método criativo de figuração da sociedade; mas o fato é que, neles, esta influência científica não fez mais do que reforçar uma tendência dialética que já existia, ou seja, a tendência a descobrir as principais contradições da sociedade. Ao contrário, a tentativa de Zola de usar neste sentido as ideias de Claude Bernard levou-o apenas a um registro pseudocientífico dos sintomas do desenvolvimento capitalista e não o fez penetrar nos fundamentos deste processo. (Paul Lafargue observa corretamente que, para a prática literária de Zola, o vulgarizador Lombroso contou muito mais do que Claude Bernard.). Experimentação e documentação significam, na prática, que Zola não participa do mundo, não figura no romance suas próprias experiências de vida e de luta, mas se aproxima de um complexo social como um repórter (na justa observação de Lafargue) que tem como objetivo descrever tal complexo. O universo de Zola é o canhão louco de Victor Hugo, do qual já falamos, tornado prosaico.

Zola descreve com muita exatidão o modo como escreveu seus romances; de resto, segundo ele, este é o modo com devem ser escritos os romances realistas. Diz ele:
Um de nossos romancistas naturalistas quer escrever um romance sobre o mundo dos teatros. Parte desta ideia geral, sem ter ainda um fato ou um personagem. Sua primeira preocupação deve ser a de agrupar num conjunto de notas tudo o que pode saber sobre o mundo que pretende figurar. Deve conhecer um ator, assistir uma peça. Depois, [...] conversará com os homens mais informados sobre o assunto e coletará as palavras, as histórias, os retratos. Isso não basta: ele buscará em seguida os documentos escritos. [...] Finalmente, visitará os locais, viverá alguns momentos num teatro para conhecer todos os seus recantos, passará noites no camarim de uma atriz, impregnar-se-á o mais possível do ar ambiente. E, uma vez recolhidos todos os documentos, seu romance se escreverá por si mesmo. O romancista terá apenas de distribuir logicamente os fatos [...] O interesse não está na excentricidade da história; ao contrário, quanto mais banal e comum ela for, tanto mais se tornará típica.[1]
O falso objetivismo deste método se manifesta aqui, com toda clareza, no fato de que, em primeiro lugar, Zola identifica o banal com o típico e o contrapõe apenas ao singular, ao simplesmente interessante; e, em segundo, no fato de que ele não vê mais o que é característico e significativamente artístico na ação, na reação ativa do homem aos eventos do mundo exterior. Nele, a figuração épica das ações é substituída pela descrição dos fatos e das circunstâncias.

A contraposição entre narrar e descrever é tão velha quanto a literatura burguesa, já que o método criativo da descrição nasceu da reação imediata do escritor à realidade prosaicamente cristalizada, que exclui toda ação espontânea do homem.[2] É bastante significativo que já Lessing tenha protestado energicamente contra o método descritivo por ser ele contrário às leis da poesia, em geral, e da épica, em particular; sobre isso, Lessing cita Homero para mostrar, com base no exemplo do escudo de Aquiles, que no autêntico poeta épico todo “objeto acabado” se dissolve numa série de ações humanas. É inútil, mesmo nos melhores escritores, a luta contra a crescente onda da prosa burguesa da vida; isso pode ser comprovado no fato de que a figuração das ações humanas é cada vez mais suplantada, no romance, pela descrição das coisas e dos fatos. Zola não faz mais do que formular teoricamente, de modo bastante nítido, a decadência espontânea da arte narrativa no romance moderno. Ele ainda se encontra no início desta decadência; e é por isso que suas obras, num grande número de episódios apaixonantes, ainda estão próximas das grandes tradições do romance. Mas as linhas fundamentais de sua criação já abrem caminho para uma nova orientação. Basta comparar a cena de uma corrida de cavalos em seu romance Naná e aquela contida em Ana Karênina de Tolstoi. Em Tolstoi, trata-se de uma cena épica viva, na qual tudo é épico, desde a sela do cavalo até o público, ou seja, onde tudo é construído através das ações dos homens em situações para eles significativas. Em Zola, temos uma descrição esplêndida de um evento da vida da sociedade parisiense, evento que, do ponto de vista da ação, não tem nenhuma ligação com o destino da protagonista do romance, e a que os demais personagens assistem apenas na condição de espectadores interessados, mas não envolvidos. Em Tolstoi, a cena da corrida é um episódio épico na ação do romance; em Zola, é uma simples descrição. Tolstoi, portanto, não tem necessidade de “inventar” uma “relação” entre os elementos objetivos deste episódio e os protagonistas do romance porque a corrida é parte essencial da própria ação. Zola, ao contrário, é obrigado a ligar a corrida ao resto do conteúdo de seu romance de modo simbólico, ou seja, mediante a coincidência casual dos nomes do cavalo vencedor e da protagonista do romance.

Este uso do simbolismo, que Zola recolheu como herança em Victor Hugo, atravessa toda sua obra: a grande loja, a Bolsa etc., são símbolos da vida moderna elevados a uma gigantesca dimensão, como a igreja de Notre-Dâme ou o canhão em Victor Hugo. O falso objetivismo de Zola se manifesta de modo mais claro nesta coexistência inorgânica de dois princípios criativos inteiramente heterogêneos: o detalhe apenas observado e o símbolo puramente lírico. Este caráter inorgânico atravessa toda a composição: já que o mundo descrito ema cada romance não é construído com base em ações concretas de homens concretos em situações concretas, mas é uma espécie de recipiente, de ambiente abstrato no qual os homens são inseridos a posteriori, desaparece a ligação necessária entre o personagens e ação; para o mínimo de ação indispensável, basta algum traço recolhido dos casos médios. Contudo, a prática de Zola é, também aqui, melhor que sua teoria, ou seja, as características de seus personagens são mais ricas do que os enredos que ele concebe; mas, precisamente por isso, eles não se transformam em ações, permanecendo objeto de simples observações e descrições. Portanto, o número de tais descrições pode aumentar ou diminuir à vontade. A cientificidade do método de Zola, cujo objetivismo mal oculta  empobrecimento da imagem do mundo social que ele constrói, não pode assim nem levar a um reflexo exato das contradições da sociedade capitalista, no plano do conhecimento, nem a criação de obras narrativas acabadas, no plano artístico. Lafargue mostra corretamente que, apesar da exatidão de suas observações singulares, Zola aborda temas dos quais não vê as determinações sociais decisivas (o alcoolismo dos operários em O matadouro, a oposição entre velho e novo capitalismo em O dinheiro). Por outro lado, no que se refere ao desenvolvimento do romance, não têm tanta importância os erros de fato cometidos por Zola na interpretação dos fenômenos sociais (embora os velhos realistas, por participarem pessoalmente das lutas sociais de seu tempo, intuíssem a verdade nas questões decisivas), mas sim o fato de que tais erros favoreceram a aceleração da dissolução da forma romanesca. Os grandes “historiadores da vida privada” tiveram por sucessores tão somente cronistas líricos ou jornalísticos dos eventos do dia a dia.

Flaubert e Zola constituem a última inflexão no desenvolvimento do romance. Por isso, tornou-se necessário examinar mais detalhadamente suas obras, já que as tendências à dissolução da forma do romance manifestam-se neles, pela primeira vez, de uma forma quase clássica. O desenvolvimento ulterior do romance, apesar de toda a sua variedade, transcorre nos quadros dos problemas já delineados em Flaubert e Zola, ou seja, no quadro do falso dilema entre subjetivismo e objetivismo, que leva inevitavelmente a uma série de outras antíteses igualmente falsas, como, por exemplo, a perda cada vez mais irremediável da verdadeira tipicidade das situações e dos personagens, substituída pelo falso dilema entre a banalidade da média e o que é puramente “original” ou “excêntrico”. Em consequência deste falso dilema, o desenvolvimento do romance moderno oscila entre os dois extremos igualmente falsos da “cientificidade” e do irracionalismo, entre o fato bruto e o símbolo, entre o documento da “alma” ou da “atmosfera”. Decerto, não faltam nem mesmo as tentativas de voltar ao verdadeiro realismo. Mas tais tentativas só em raríssimos casos vão além de uma aproximação ao realismo flaubertiano. Não se trata de um caso. Zola, como escritor honesto, afirma sobre sua própria prática: “Agora, toda vez que me empenho num estudo, deparo-me com o socialismo”[3] Na atual sociedade, um escritor não tem de modo algum a necessidade de tratar tematicamente das questões imediatas da luta proletária de classe para se deparar com o problema, central na nossa época, da luta entre capitalismo e socialismo. Mas, para enfrentar até o fundo todo o conjunto de questões relativas a esta luta, o escritor deve romper com o círculo mágico da ideologia burguesa decadente. Somente pouquíssimos escritores são capazes de fazê-lo; os demais restam prisioneiros, em sentido artístico e literário, deste círculo cada vez mais estreito, cada vez mais repleto de contradições. A ideologia da burguesia decadente, cada vez mais apologética, restringe continuamente a esfera da atividade criativa do escritor. Como diz Heinrich Mann, “saber o que um escritor virá a ser depende daquilo que sua classe pode suportar”.

Não podemos propor aqui, nem mesmo sumariamente, uma história do romance mais recente. Registraremos apenas — ao lado da tendência decadente geral da ideologia burguesa, que culmina na barbárie fascista e no sufocamento consciente de toda tentativa de figuração da verdadeira realidade — os principais tipos de solução para os impasses do romance que foram tentadas na últimas décadas. Repetimos: elas permanecem todas no plano do falso dilema que já observamos em Flaubert e Zola. A escola de Zola, em sentido estrito, desagregou-se muito cedo, o “zolismo”, o falso objetivismo do romance documental, subiste até hoje, com a única diferença de que os laços que ainda ligavam Zola ao velho realismo se rompem cada vez mais e o programa de Zola se realiza de modo cada vez mais puro (o que não exclui o surgimento de algumas obras bem realizadas deste tipo, como, por exemplo, alguns romances de Upton Sinclair). Com muito mais força, naturalmente, crescem o subjetivismo e o irracionalismo, que surgem logo após a desagregação da escola de Zola propriamente dita. Esta tendência transforma paulatinamente o romance num agregado de fotografias instantâneas da vida interior do homem e, no final, leva à completa dissolução de todo conteúdo e de toda forma do romance (Joyce, Proust).

Como protesto contra estes fenômenos de dissolução, fazem-se as mais variadas tentativas — no mais das vezes reacionárias — de renovar a antiga força e vitalidade da narração. Alguns escritores fogem da realidade capitalista para um mundo rural estilizado, que pretende estar nos antípodas do capitalismo (como Knut Hamsum), ou num mundo colonial não ainda contaminado pelo capitalismo (Kipling); outros, através de uma reconstrução estética das condições da velha arte narrativa, buscam restabelecer o romance como forma artística (redução à novela, estilização histórico-decorativaao mode de Conrad Ferdinand Meyer) etc. Naturalmente, surgem também escritores que fazem a tentativa heroica de nadar contra a corrente e, com base em um crítica honesta da sociedade contemporânea, buscam conservar ou reativar as grandes tradições do romance. À medida que, por um lado, aprofundam-se as contradições e a degradação da ordem capitalista e, por outro, fortalece-se vitoriosamente o socialismo na União Soviética, à medida que crescem os sentimentos revolucionários entre os intelectuais, os melhores representantes da literatura ocidental rompem as relações com a burguesia, o que abre para a sua criação amplas perspectivas (Romain Rolland, André Gide, André Malraux, Jean-Richard Bloch etc.).

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Notas:
[1] E. Zola, Le roman expérimental, Paris, Garnier-Flammarion, 1979, p. 214-215. 
[2] Lukács desenvolve este argumento, inclusive a comparação entre Naná e Ana Karênina, em seu ensaio
“Narrar ou descrever?”, em id., Ensaios sobre literatura, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 47-48. 
[3] Carta a J. Van Santen Kolff, de junho de 1886.
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LUKÁCS, G. “O romance como epopeia burguesa”. In: Arte e sociedade: escritos estéticos 1932-1967. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. 2ª ed., Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 228-235).
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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A dissolução da Political Economy e o desenvolvimento da Economics

por José Paulo Netto e Marcelo Braz
 
A crise da Economia Política clássica

Entre os anos vinte e quarenta do século XIX — ou, com mais exatidão, entre 1825/1830 e 1848[1] — desenha-se a crise e a dissolução da Economia Política clássica. Essa crise insere-se num contexto bem determinado: nessas décadas, altera-se profundamente a relação da burguesia com a cultura ilustrada de que se valera no seu período revolucionário, cultura que configura, no plano das ideias, o chamado Programa da Modernidade.

A cultura ilustrada condensa um projeto de emancipação humana que foi conduzido pela burguesia revolucionária, resumido na célebre consigna liberdade, igualdade, fraternidade. Entretanto, a emancipação possível sob o regime burguês, que se consolida nos principais países da Europa Ocidental na primeira metade do século XIX, não é emancipação humana, mas somente emancipação política. Com efeito, o regime burguês, emancipou os homens das relações de dependência pessoal, vigentes na feudalidade; mas a liberdade política, ela mesma essencial, esbarrou sempre num limite absoluto, que é o próprio regime burguês: nele, a igualdade jurídica (todos são iguais perante a lei) nunca pode se traduzir em igualdade econômico-social — e, sem esta, a emancipação humana é impossível.

Portanto, a Revolução Burguesa, realizada, não conduziu ao prometido reino da liberdade: conduziu a uma ordem social sem dúvida muito mais livre que a anterior, mas que continha limites insuperáveis à emancipação da humanidade. Tais limites deviam-se ao fato de a revolução resultar numa nova dominação de classe — o domínio de classe da burguesia. E não é preciso dizer que a existência daqueles limites contradizia as promessas emancipadoras contidas na cultura ilustrada.

Instaurando o seu domínio de classe, a burguesia experimenta uma profunda mudança: renuncia aos seus ideais emancipadores e converte-se numa classe cujo interesse central é a conservação do regime que estabeleceu. Convertendo-se em classe conservadora, a burguesia cuida de neutralizar e/ou abandonar os conteúdos mais avançados da cultura ilustrada. Por seu turno, as classes e camadas sociais que, ao lado da burguesia revolucionária, articularam o bloco social do Terceiro Estado e agora viam-se objeto da dominação burguesa trataram de retomar aqueles conteúdos e adequá-los a seus interesses.

O movimento das classes sociais, naqueles anos — entre as décadas de vinte e quarenta do século XIX —, mostra inequivocamente que estava montado um novo cenário de confrontos: não mais entre burguesia (que, antes, liderara o Terceiro Estado) e a nobreza, mas entre a burguesia e segmentos trabalhadores, com destaque para o jovem proletariado. Se o movimento ludista inglês fora derrotado pouco antes, a ele substituiu-se o movimento cartista; e, no continente, avolumam-se as rebeliões e insurreições. Todo esse processo vai explodir nas revoluções de 1848; nas convulsões que abalam a Europa, um novo antagonismo social central está agora na ordem do dia — dois protagonistas começam a se enfrentar diretamente, a burguesia conservadora e o proletariado revolucionário.

No plano das ideias, 1848 assinala uma inflexão de significado histórico-universal: a burguesia abandona os principais valores da cultura ilustrada e ingressa no ciclo da sua decadência ideológica, caracterizado por sua incapacidade de classe para propor alternativas emancipadoras; a herança ilustrada passa às mãos do proletariado, que se situa, então, como sujeito revolucionário.

É nesse contexto que se compreende a crise da Economia Política clássica — sua crise é parte daquela inflexão, ocasionada pela conversão da burguesia em classe conservadora. Na medida em que expressa os ideais da burguesia revolucionária, a Economia Política clássica torna-se incompatível com os interesses da burguesia conservadora. Não é casual, portanto, que o pensamento burguês pós-1848 abandone as conquistas teóricas da Economia Política clássica — como também não é casual que tais conquistas se transformem num legado a ser assumido pelos pensadores vinculados ao proletariado.

Uma observação é suficiente para indicar a incompatibilidade da Economia Política clássica com os interesses da burguesia convertida em classe dominante e conservadora. Trata-se do modo como aquela enfrentou o problema da riqueza social (ou, mais exatamente, da criação de valores): para os clássicos, o valor é produto do trabalho. Se essa concepção era útil à burguesia que se confrontava com o parasitismo da nobreza, deixou de sê-lo quando pensadores ligados ao proletariado começaram a extrair dela consequências socialistas. A teoria clássico do valor-trabalho, que fora uma arma da burguesia na crítica ao Antigo Regime, torna-se agora uma crítica ao regime burguês: nas mãos de pensadores vinculados ao proletariado, a teoria do valor-trabalho serve para investigar e demonstrar o caráter explorador do capital (representado pela burguesia) em face do trabalho (representado pelo proletariado). Os clássicos puderam desenvolver a teoria do valor-trabalho porque pesquisavam a vida social e econômica a partir da produção dos bens materiais, e não da sua distribuição; por isso, não só a teoria do valor-trabalho era incompatível com os interesses da burguesia conservadora; também o era a pesquisa da vida social fundada no estudo da produção econômica.

Compreende-se, assim, que após 1848, tanto a teoria do valor-trabalho quanto a investigação social e econômica a partir da análise da produção tenham sido abandonadas pelo pensamento burguês conservador; mais do que isso: foram consideradas “extracientíficas” pela Economia que, a partir da segunda metade do século XIX, substituiu — na cultura burguesa e especialmente nos meios acadêmicos — a Economia Política clássica. E se compreende também que ambas, a teoria do valor-trabalho e a análise social e econômica a partir da produção, tenham sido recuperadas pelos pensadores vinculados aos interesses das massas trabalhadoras.

Se, entre 1825/1830 e 1840, a Economia Política clássica experimenta a sua crise, na segunda metade do século a sua inteira dissolução está consumada — e isso se verifica até mesmo pelo desuso da expressão Economia Política. De fato, o que resulta da dissolução da Economia Política clássica são duas linhas de desenvolvimento teórico mutuamente excludentes: a investigação conduzida pelos pensadores ligados à ordem burguesa e a investigação realizada pelos intelectuais vinculados ao proletariado (com Karl Marx à frente). Nos dois casos, a antiga expressão é deslocada, no primeiro é abandonada e substituída pela nominação mais simples de Economia[2]; quanto a Marx, ele sempre se refere à sua pesquisa como crítica da Economia Política. E, em ambos os casos, a mudança de nomenclatura sinaliza alterações substantivas na concepção teórica, relativas aos valores, ao objeto, ao objetivo e a método de pesquisa.

A Economia vai se desenvolver no sentido de uma disciplina científica estritamente especializada, depurando-se de preocupações históricas, sociais e políticas. Tais preocupações serão postas à conta das outras ciências sociais que se articulam na sequência de 1848: a História, a Sociologia e a Teoria (ou Ciência) Política. No marco dessa “divisão intelectual do trabalho científico”, a Economia se especializa, institucionaliza-se como disciplina particular, específica, marcadamente técnica, que ganha estatuto científico-acadêmico. Adequada à ordem social da burguesia conservadora, torna-se basicamente instrumental e desenvolve um enorme arsenal técnico (valendo-se intensivamente de modelos matemáticos). Ela renuncia a qualquer pretensão de fornecer as bases para a compreensão do conjunto da vida social e, principalmente, deixa de lado procedimentos analíticos que partem da produção — analisa preferencialmente a superfície imediata da vida econômica (os fenômenos da circulação), privilegiando o estudo da distribuição dos bens produzidos entre os agentes econômicos e quando, excepcionalmente, atenta para a produção, aborda-a de modo a ladear a teoria do valor-trabalho.

Tal Economia, cujos esboços aparecem nos textos de autores que Marx qualificou como economistas vulgares[3], tem as suas primeiras formulações mais bem acabadas nas obras de William S. Jevons (1835-1882), Carl Menger (1840-1921) e Léon Walras (1834-1910). No curso de seu desenvolvimento, do fim do século XIX até os dias atuais, ela evoluiu no sentido de inúmeras especialidades e se diferenciou numa infinidade de “escolas”, lideradas em alguns casos, por intelectuais muito qualificados[4]. Perfeitamente integrada nos circuitos universitários, legitimou-se produzindo um corpo de profissionais credenciados para atuar como gestores nas empresas capitalistas e na administração pública.

A constituição dessa “ciência econômica” marca uma verdadeira ruptura em face da Economia Política clássica. Desta, ela herdou uma característica: a consideração das categorias econômicas próprias do regime burguês como realidades supra-históricas, eternas, que não devem ser objeto de transformação estrutural, senão ao preço da destruição da “ordem social”; assim, para essa “ciência econômica”, propriedade privada, capital, salário, lucro etc.. fazem parte, natural e necessariamente, de qualquer forma de organização social “normal”, “civilizada”, e devem sempre ser preservados. Mas a “ciência econômica” abandonou resolutamente as ideias que, formuladas pela Economia Política clássica, poderiam constituir elementos de crítica ao regime burguês (por exemplo, a teoria valor-trabalho, que foi substituída pela teoria da “utilidade marginal”). e. com esse procedimento de princípio, tornou-se um importante instrumento de administração, manipulação e legitimação da ordem comandada pela burguesia.

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Notas:
[1] Por volta de 1825, manifestou-se a primeira crise econômica do capitalismo; em 1848, explodiram revoluções democrático-populares na Europa Ocidental e Central.
[2] Esta substituição — Political Economy por Economics — foi consagrada com a publicação, em 1890, dos influentes Principles of Economics [Princípios de Economia], de Alfred Marshall (1842-1924).
[3] Para Marx, entre outros, eram típicos representantes da “economia vulgar” William Nassau Senior (1790-1864), Fredéric Bastiat (1801-1850) e John Stuart Mill (1806-1873).
[4] Entre os quais cabe destaque para o austríaco Joseph A. Schumpeter (1883-1950) e o inglês John M. Keynes (1883-1946). 
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NETTO, J. P.; BRAZ, Marcelo. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006, pp. 19-23.
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sexta-feira, 24 de novembro de 2017

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Sobre o ontologismo de Nicolai Hartmann

A conquista terrenal de Nicolai Hartmann

A sobriedade e a sensatez de Hartmann evidenciam-se já no modo como ele levanta a pergunta pelo conhecimento ontológico. Enquanto as questões ontológicas tradicionais por séculos tiveram caráter essencialmente teológico (ou eram expressão de uma teologia secularizada, como pudemos observar no caso de Heidegger), em Hartmann o ponto de partida e o de chegada eram totalmente terrenais. Se a ontologia quiser desempenhar um papel filosoficamente fundamentado no âmbito atual do conhecimento, deve aflorar da vida, da vida cotidiana das pessoas; ela jamais poderá perder essa conexão com os modos elementares da existência, caso queira permanecer apta a ser ouvida como voz crítica sóbria também e justamente nos casos em que são verbalizadas as questões mais complexas e sutis do conhecimento. Para Hartmann, portanto, a ontologia não é o resultado final metafísico da filosofia, o que ela ainda era nos séculos XVII e XVIII; pelo contrário, ela é, muito antes, a base da filosofia do lado da realidade e de, modo correspondente, a instância de controle permanente de todo e qualquer conhecimento humano ou atividade humana, ou seja, justamente o critério para ver como seus resultados se posicionam diante da própria realidade, o quanto seus métodos são apropriados para estabelecer a conexão com a realidade. Desse modo, a virada ontológica da filosofia, na medida em que é autêntica, como em Hartmann, e não um complemento irracionalista-subjetivista à postura epistemológica dos séculos XIX e XX, como na fenomenologia, constitui um ataque frontal ao antiontologismo do primado da teoria do conhecimento, que atingiu em Kant a sua forma clássica mais influente. Por essa razão, o contraste não foi reduzido apenas à questão de se o lugar da filosófico central seria ocupado pela ontologia ou pela teoria conhecimento, mas também se o ponto de partida seria de "cima" ou de "baixo".

György Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo, 2012, p.132-133.

A insuficiência dialética de Nicolai Hartmann

Em nossa crítica, estivemos empenhados em analisar concretamente o concreto e, quando necessário, refutá-lo concretamente. Porém, ao concluirmos tais considerações, é preciso dizer o seguinte: as limitações de Hartmann estão essencialmente ligadas ao fato de ele evitar com certo receio os problemas manifestamente dialéticos. Sendo um observador lúcido e imparcial da realidade, é natural que ele seja reiteradamente confrontado com constelações dialéticas. Mas se desvia da sua essência dialética, refugiando-se na dialética de Aristóteles e limitando-se a falar de aporias sempre que problemas dialéticos exigem uma solução dialética. Naturalmente que Hartmann conhece Hegel, pois escreveu um livro inteiro sobre ele. Porém, é bem característico de Hartmann o modo como ele se posiciona, nesse livro, sobre o método dialético:
Evidentemente existe uma aptidão singularmente dialética, que ganha forma, mas não pode ser apreendida. Ela consiste num tipo bem próprio, originário, de visão interior, que não pode ser derivada de nenhuma outra coisa, mais exatamente, uma visão inteiramente conspectiva, que, avançando pelos nexos do objeto, visualiza-os sempre a partir de diversos aspectos simultaneamente e, em consequência, cintilante de contradições, e, apesar disso, vê também o contraditório em sua ligação com a unidade, ligação que é característica do objeto. É digno de nota que nem mesmo os cérebros dialéticos logrem desvendar o mistério da dialética. Eles possuem e manejam muito bem o método, mas não são capazes de nos revelas como fazem isso. Eles próprios, pelo visto, não sabem. Ocorre o mesmo que no processo de criação do artista.
György Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo, 2012, p.180.


O materialismo inteligente de Nicolai Hartmann

É por exemplo bastante chocante ver que ele [Lukács] tenha escolhido por epígrafe do capítulo sobre Hartmann uma fórmula bem conhecida de Lênin, extraída dos Cadernos filosóficos: “O idealismo inteligente está muito mais próximo do materialismo inteligente do que o materialismo tacanho”. Lukács pensava assim prestar homenagem ao pensamento de Hartmann, indicando a proximidade de alguns de seus pontos de vista sobre o materialismo ontológico do marxismo, mas relegava Hartmann ao idealismo, “inteligente” evidentemente, mas ainda assim idealismo.

Ora, se há no século XX um pensador que, nos campos da ontologia e da gnosiologia, desenvolveu uma crítica implacável do idealismo filosófico, desvelando sem concessões as raízes mesmas de seus erros e perseguindo-o até os últimos redutos, é exatamente Nicolai Hartmann. Já no início dos anos 1920, Paul Natorp exprimia numa carta sua surpresa de ver o jovem filósofo – que ele considerava até então como pertencendo ao círculo da Escola de Marburgo – questionar sua teoria “idealista” do conhecimento como “subjetivista”.
  
Nicolas Tertulian, "Nicolai Hartmann e Georg Lukács: uma aliança fecunda".
In: Crítica Marxista, n. 32, p. 9-32, 2011.

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quarta-feira, 16 de agosto de 2017

ARTE REALISTA| God bless you


Sinopsis: Gabriel es conducido hacia su irremediable destino.
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God bless you (thriller, ESP, 2007), de Mario Lizondo.
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sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Berkeley e Hume: o movimento de decadência do empirismo



por Paulo Ayres

Em outros casos, porém, pode-se falar efetivamente de uma continuidade real. Penso aqui na relação orgânica que existe, por exemplo, entre Berkeley e Hume e o neopositivismo empiriocriticista [...]. Mas tais casos não alteram a justeza de nossa periodização; quando se estabelece uma relação desse tipo, a análise atenta demonstra que o filósofo assimilado não pertencia à tradição progressista, ou seja, desempenhava já em seu tempo um papel reacionário diante da corrente dominante.
(Carlos Nelson Coutinho)

O materialismo no empirismo britânico

Acompanhando o processo gradual e plurissecular da transição do mundo feudal para o mundo burguês, o empirismo, em sintonia com as revoluções científicas – necessidades postas justamente por esse processo de passagem de modos de produção e de formas de sociabilidade –, coloca o materialismo no palco da batalha das ideias de uma maneira relevante como não acontecia desde o tempo dos pré-socráticos[1].

Essa gnosiologia moderna não se restringiu ao território britânico, mas foi lá que se filiou como a sua pátria por excelência, apresentando figuras revolucionárias na área do conhecimento, com tendências materialistas em algum grau. O desbravador F. Bacon, com sua teoria dos ídolos, é muito maior que o título de pai do método indutivo. Newton revolucionava os estudos científicos do mundo físico, unindo matemática e experimentação. Hobbes cria um abrangente sistema materialista que engloba natureza e sociedade. E Locke desenvolve detalhadamente o empirismo britânico e, ao mesmo tempo, expõe as suas limitações dualistas.

Todavia, em plena época do tratado que gera o Reino Unido (1707), no século que veria o início da Revolução Industrial na sua reta final, uma linha regressiva[2] toma forma naquelas terras, na esteira das limitações empiristas expostas anteriormente: o empirismo extremo de George Berkeley (1685-1753) e de David Hume (1711-1776).

Berkeley: o empirismo extremo se apresenta como idealismo

Se o empirismo trouxe consigo a ontologia materialista para debater de igual para igual com o idealismo na Era Moderna, é, portanto, uma ironia histórica que o empirismo na sua versão mais extrema, destacadamente Berkeley e Hume, entre na via antimaterialista do idealismo e do ceticismo, respectivamente.

Tido como filósofo extremamente exótico, o bispo Berkeley encontra o caminho do idealismo ao ir mais além do que a centralidade da empiria do empirismo tradicional e propor a totalização reducionista da empiria, a identidade entre sensação e objeto. E se tudo o que existe na realidade são experiências e percepções, então não faz sentido a noção de uma substância essencial não captada pela sensibilidade. Com isso, ele questiona toda a história da filosofia como uma perda de tempo descolada da realidade por ir além dos dados empíricos[3]. Sua filosofia é apresentada como o ponto em que senso comum prevalece sobre as especulações[4]. Mesmo recorrendo a Deus como base e explicação para fugir do solipsismo e para realizar a fundamental diferenciação entre ideias fictícias e adventícias (ou melhor, entre experiências enganosas e não enganosas), ao se fechar na mais pura elevação da empiria como centro do conhecimento, Berkeley ergue o seu incomum e “escandaloso[5]” edifício teórico, se cercando do grau mais básico de conhecimento (a empiria), deduzindo daí uma rede “intersubjetiva” de caráter teológico-cosmológico para criar o sistema ontológico mais direto[6].

O “ser é ser percebido” (esse est percepi) leva a conclusões que, espíritos mais realistas dirão, com razão, são absurdas, pouco sustentáveis, mas o caráter paradoxal é que tal edifício filosófico berkeleyano é firme nas suas fantasias epistemológicas, como uma fortificação subjetivista pronta para receber os mais diversos tipos de ataques, embora a razão nos mostre a imagem isolada e frágil dela[7]. Eis o aspecto irônico da trajetória do empirismo, perdendo a sua faceta materialista ao ir ao extremo de suas possibilidades.

O ceticismo mitigado de Hume e a cientificidade manipulatória


Como estamos tratando de certas ironias vistas post festum em desdobramentos históricos contraditórios, o principal herdeiro da gnosiologia do eclesiástico Berkeley é o iluminista antitradicionalista Hume. É ele que conduz o empirismo extremo para a via que o bispo irlandês tanto procurou evitar: o ceticismo. Não um ceticismo a la Pirro, é claro, mas um moderno ceticismo mitigado; isto é, o agnosticismo[8].

É preciso essa contextualização histórica, pois a realidade é sempre mais complexa que meros esquematismos classificatórios e o liberal Hume, intelectual notório do primeiro século do Reino Unido, foi um irônico e perspicaz combatente da visão de mundo cristã-feudal e possui textos sobre economia política, história da Inglaterra, filosofia moral, filosofia política etc. Mas é justamente naquilo que o fez entrar para a posteridade, a sua exótica gnosiologia, que reside o seu problema. E, de início, já é necessário declarar que tal teoria do conhecimento é tão “escandalosa” quanto a de Berkeley[9].

O empirismo extremo humeano não tem medo de ir diretamente às consequências drásticas da radicalidade dessa linhagem filosófica: o total divórcio entre ciência e ontologia, adotando a postura cética quanto à possibilidade de formular uma concepção ontológica da realidade objetiva:

Toda crença numa questão de fato ou de existência real deriva de algum objeto presente à memória ou aos sentidos, e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro. Ou, em outras palavras: após descobrir, pela observação de muitos exemplos, que duas espécies de objetos, como a chama e o calor, a neve e o frio, aparecem sempre ligadas, se a chama ou a neve se apresenta novamente aos sentidos, a mente é levada pelo hábito a esperar o calor ou o frio e a acreditar que tal qualidade realmente existe e se manifestará a quem lhe chegar mais perto (HUME, 1980, p. 153).

Essa negação da causalidade objetiva é o resultado que a totalização da empiria sofre na letra de Hume, que, partindo do problema da indução e das conexões entre ideias, é levado a inferir que a própria relação de causa e efeito é produto a posteriori do aparelho cognitivo. Contudo, essa é apenas a conclusão estranha em que chega a sua gnosiologia. No caminho até aí, os pressupostos – que já haviam sido colocados por Berkeley –, abraçam o ceticismo ao se negar fazer a manobra ontológica que o pai do empirismo extremo havia feito (a identidade entre a gnosiologia empirista e a ontologia). E se formos observar mais de perto, o ponto de partida que sustentam as epistemologias agnósticas (seja a versão empirista de Hume ou, posteriormente, a criticista de Kant) é sempre uma conceituação de empiria que realiza uma quebra com a realidade objetiva. No filósofo escocês, a divisão entre ideias e impressões deixa as primeiras como ecos pretéritos, “impressões menos vivazes[10]“ e “cópias de nossas impressões[11]”. Se há coisas inatas (naturais), ironiza Hume pensando no debate Descartes-Locke, são as impressões e não as ideias[12].

Com esse rígido “princípio geral” em que as ideias são meras vibrações atrasadas vindas das impressões e percepções mais fortes, Hume se depara com as questões relativas à associação de ideias distintas que montam as cadeias de raciocínios. Há, para ele, apenas três formas de conexão ideal – a semelhança, a contiguidade de tempo ou lugar e a causalidade – e as três são frutos das operações mentais do ilhado sujeito do conhecimento e não dizem respeito às questões de fato (como ele denomina o conhecimento diretamente empírico). Há um fosso aí entre a razão e a empiria, entre o passado e o presente, entre causa e efeito, entre a realidade objetiva e a reprodução mental dela.

Hume nega a visão metafísica, binária, rígida em que “ou isso ou aquilo” para descartar o posicionamento sobre os pares antinômicos necessidade-liberdade, causalidade-acaso; mas faz isso saindo pela porta dos fundos: a abstenção ontológica. Mais um alimento para o seu ceticismo, tal como a explicitação do problema da indução[13]. Abstenção ontológica essa que nunca é completa nesse formalismo científico e deixa implícita uma ontologia metafísica[14].

A expressão “jogar o bebê fora com a água do banho” diz muito sobre a maioria das tentativas de descartar a metafísica. Concebe-se uma identidade total entre pesquisa ontológica e tradição metafísica e, na justificável busca de se livrar desta última, cancela-se a primeira. Hume é apenas um dos inúmeros pensadores que escolhem essa via unilateral e, por seu pioneirismo e ênfase empirista, se destaca na operação de empobrecimento da cientifidade[15].

E essa miséria da racionalidade formal, aquela de caráter manipulatório, objetivista e apologético da ordem capitalista vigente, além disso, deixa a lacuna para que muitas metafísicas mistificadoras coexistam com ela, de maneira imbricada:
 
O que, em sua época, o cardeal Belarmino demandou da ciência e da filosofia, sobretudo da natureza, está hoje amplamente realizado. A Igreja conseguiu, naquela época, coagir Galileu à retratação de suas ideias, mas não pode deter a marcha triunfal da ontologia terrenalmente orientada, cientificamente fundada; essa ontologia minou totalmente, de modo irrecuperável, a ontologia bíblico-cristã. O devanescimento, por nós descrito, do senso de realidade no cotidiano social da manipulação universal, após um desenvolvimento que durou séculos, conduziu os princípios do cardeal Belarmino a uma vitória, talvez provisória, mas, por ora, mais completa do que foi possível para os contemporâneos de Galileu, a saber: a capitulação da filosofia da natureza às exigências de uma manipulação antiontológica. Naturalmente, o que se salvou, mesmo para as grandes massas adeptas de alguma fé, não é mais a antiga imagem que a Igreja tinha da realidade, mas a necessidade religiosa nua e abstrata de sujeitos completamente manipulados. [...]

O neopositivismo [e, em certa medida. toda a tradição do racionalismo formal] passa então a cumprir a antiga exigência numa nova situação, com novos meios: ele propõe limitar o progresso ao que pode ser manipulado em termos estritamente técnicos, conservando a estrutura social que constitui o fundamento da técnica (LUKÁCS, 2012, p. 125-127).

Por fim, em meio a observações de determinadas ironias do desdobramento histórico, mais uma para complementar a curiosa linhagem do empirismo britânico que se torna antimaterialista: o iluminista Hume é, mesmo involuntariamente, o destacado precursor do projeto religioso do cardeal Belarmino de empobrecer a ciência e a filosofia da natureza para deixar o caminho livre para que as diversas ontologias religiosas se ajustem nas lacunas do cotidiano da sociabilidade burguesa, agora consolidada na sua fase monopolista e intensamente reificadora e manipulatória.

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Notas:
[0] Epígrafe cf. Coutinho, 2010, p. 24-25. Este trabalho – apresentado na disciplina de História da Filosofia Moderna I, da professora Patricia Coradim, Filosofia, Universidade Estadual de Maringá (UEM), 2017 – em vias de melhor lapidação, tem como finalidade apresentar a corrente do empirismo extremo desenvolvido no Reino Unido a partir do século XVIII – como um episódio regressivo na história desta tradição epistemológica. Iniciado com G. Berkeley e tendo a sua maior repercussão com D. Hume, tal empirismo opera numa drástica redução das ambições filosófico-científicas. Em particular, pretende-se enfatizar como o chamado ceticismo mitigado de Hume é um prelúdio das tendências da tradição positivista e seu padrão formal de cientificidade.
[1] “A filosofia de Epicuro é a única que interrompe essa tendência evolutiva [de ontologias dualistas]. Nela, um materialismo inescrupulosamente crítico destrói toda ontologia de dois mundos”. No entanto “o epicurismo permanece completamente isolado e passa a ser difamado, de modo contínuo, como hedonismo vulgar” (LUKÁCS, 2012, p. 34-35).
[2] Enquanto isso, na contramão dessa linhagem subjetivista, na “antiquada” Itália, o empirismo apresenta uma configuração revolucionária na gnosiologia sui generis de G. Vico. Tal leitura sobre o pensador napolitano foi apresentada no trabalho da disciplina Filosofia da História, do professor Vladimir Chaves dos Santos.
[3] “Entre os homens prevalece a opinião singular de que as casas, montanhas, rios, todos os objetos sensíveis têm uma existência natural ou real, distinta da sua perceptilidade pelo espírito. [...] todos os corpos de que se compõem a poderosa máquina do mundo não subsistem sem um espírito, e o seu ser é serem percebidas ou conhecidas” (BERKELEY, 1980, p. 13-14).
[4] Esse título é questionável em dois aspectos: primeiramente, o fato óbvio de que no senso comum prevalece uma visão prático-cotidiana que concebe que a realidade é muito maior que os dados empíricos; e, em segundo lugar, a concepção de mundo mais básica de todas revela um materialismo espontâneo. Cf. Lukács, 2012, p. 30-33).
[5] “Kant já mencionara ser um ‘escândalo da filosófia’ em Berkeley o fato de que a existência fora de nós era admitida meramente pela fé” (ibidem, p. 54).
[6] A intenção progressista de Berkeley em buscar um sistema filosófico monista, superando o velho dualismo ontológico, é algo louvável; no entanto, o seu conteúdo conservador de atacar a visão de mundo do materialismo britânico é algo indefensável (do ponto de vista do Iluminismo inglês). O resultado deste projeto é ontologicamente bizarro, embora “funcional” do ponto de vista da racionalidade formal que predominaria entre cientificistas a partir do século XIX.
[7] “Sistema extravagante que, me parece, no podria deber su origen más que unos ciegos! Y este sistema, para verguenza del espíritu humano, para verguenza de la filosofia, es el más difícil de combatir, aunque és el más absurdo de todos” (DIDEROT apud LENIN, 1973, p. 11).
[8] Na tradição marxista, primeiramente com Engels, se tornou comum usar o termo agnosticismo para se referir a esta gnosiologia moderna que, através do ceticismo mitigado da cientificidade antiontológica, resulta, a partir do século XIX, na tradição positivista e no neokantismo. Cf. Lenin (1973), Coutinho (2010) e Lukács (2012).
[9] A negação da causalidade objetiva de Hume é um absurdo do mesmo nível que o “ser é ser percebido” e “somos percepções vivendo na mente de Deus” de Berkeley, embora ganhe, estranhamente, ares de maior respeitabilidade científica por muitos devido à sua “laicidade”.
[10] Ibidem, p. 140.
[11] Ibidem, p. 141. Entretanto, logo em seguida, Hume abre espaço para uma exceção sobre as ideias simples ao falar das cores. Mas, ainda sim, ele não altera o seu “princípio geral” (p. 142).
[12] Idem, nota 1.
[13] “Que o sol nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível e não implica mais contradição do que a assertiva contrária, de que o sol nascerá” (idem, p. 144).
[14] “O autoengano em que incorrem aqui o neopositivismo e algumas outras correntes que, com ele, adotam uma orientação exclusivamente gnosiológica, reside no fato de ignorarem por completo a neutralidade ontológica do ser-em-si ante as categorias, diferentemente dimensionadas, do universal, do particular e do singular. Os objetos, as relações etc. são em si ou independentemente de serem singulares, particulares ou universais. [...] É indubitável que a participação do sujeito cognoscente no espelhamento do universal no pensamento é considerável: de fato, o universal não aparece na realidade existente em si de maneira imediata ou isolada, independentemente dos objetos e das relações singulares, sendo portanto necessário obtê-lo mediante a análise de tais objetos, relações etc. Isso, porém, de modo algum suprime o seu ser-em-si ontológico, mas apenas lhe confere características específicas. Não obstante, é dessas circunstâncias que surge a ilusão de que o universal nada mais é que um produto da consciência cognoscente, e não uma categoria objetiva da realidade em si. Tal ilusão induz o neopositivismo a classificar o universal como “elemento” da manipulação subjetivista e a ignorar, como “metafísica”, sua objetividade existente em si” (LUKÁCS, 2012, p. 60).
[15] Eis a miséria da razão. Expressão cunhada por Carlos Nelson Coutinho (2010) para caracterizar a tradição do racionalismo formal (um nome para a ampla e heterogênea tradição positivista). Uma racionalidade empobrecida porque o seu conceito de “razão” se atém ao entendimento/intelecto (Verstand) – e este é apenas uma etapa do processo dialético da razão (Vernunft), onde a etapa ontológica reorganiza e sintetiza universal e historicamente os dados abstraídos na etapa analítica.
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Referências bibliográficas:
BERKELEY, G. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. In: Berkeley/Hume. Trad. Antônio Sérgio. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ªed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
HUME, D. Investigação sobre o entendimento humano. In: Berkeley/Hume. Trad. Leonel Vallandro. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
______. Ensaios morais, politicos e literários. In: Berkeley/Hume. Trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
LENIN, V. L. Materialismo y empiriocriticismo. In: Obras escogidas, tomo IV (edição castelhana). Moscou: Progreso, 1973,
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
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terça-feira, 25 de julho de 2017

O gradual processo de liberalização do Labour



por István Mészáros

Marcar como época do grande recuo os anos que se seguiram à implosão soviética — datação preferida por muitos intelectuais que foram de esquerda como justificativa para o fato de terem tomado sua “estrada para Damasco” — leva a descrever erroneamente as conversões pessoais e, o que é mais importante, a minimizar os colapsos institucionais. Pois não foram apenas os partidos comunistas ocidentais que àquela época se transformaram em tímidos partidos socialdemocratas da ordem estabelecida, buscando no colapso soviético a justificativa de sua dramática mudança de rota. Ao mesmo tempo, também os velhos partidos socialdemocratas dos principais países da Europa ocidental se transformaram em partidos conservadores de centro direita, tornando-se indistinguíveis dos instrumentos políticos da “revolução thatcherista”.

As conversões pessoais foram, evidentemente, parte essencial — mas apenas parte — desse processo de desvio significativo do espectro político para a direita. Por isso, não é surpreendente ver todo o Partido Trabalhista Britânico se metamorfosear no partido do “novo trabalhismo” para conseguir manter, depois de sua vitória eleitoral, todas as leis antitrabalhistas de Margareth Thatcher, apesar dos compromissos manifestos em contrário, e torná-las de fato, sob certos aspectos, ainda mais autoritárias.

Esses ponderáveis desenvolvimentos históricos não podem ser explicados apenas pelas “conversões pessoais”. Ao contrário, por vezes, as surpreendentes conversões individuais só se tornam inteligíveis quando colocadas contra o pano de fundo da tendência geral dos acontecimentos históricos. Afinal, não se deve esquecer que as primeiras medidas drásticas do monetarismo neoliberal na Grã-Bretanha foram impostas pela maior autoridade econômica do “Velho Trabalhismo”, Denis Healey, sob o regime esquerdista de faz-de-conta do primeiro ministro Harold Wilson, bem antes de o Partido Conservador Britânico conseguir abraçar inteiramente a forte liderança de direita de Margareth Thatcher. É de se notar que a vitória eleitoral dela ocorreu depois de o sucessor de Harold Wilson no cargo de primeiro-ministro, James Callaghan, ter-se dirigido a uma plateia de operários com estas palavras brutalmente francas: “o partido acabou”. Deste modo, ele indicava a determinação do Partido Trabalhista de seguir um novo curso de liquidação progressiva dos ganhos da classe operária britânica no pós-guerra. Assim, o surgimento do malfadado consenso neoliberal precedeu a vitória eleitoral dos conservadores. O subsequente abandono explícito do princípio central da constituição do Partido Trabalhista — sua cláusula quarta, o compromisso programático do trabalhismo britânico com a garantia da propriedade comum dos meios de produção — foi apenas a conclusão lógica de um processo retrógrado que havia se iniciado muito tempo antes.

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MÉSZÁROS, I. O poder da ideologia. Trad. Magda Lopes e Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 14-15.
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sexta-feira, 21 de julho de 2017

Sobre a questão judaica (1844)


Publicado em Paris no ano de 1844, no único número dos Anais Franco-Alemães, o ensaio Sobre a questão judaica explicita a diferença entre emancipação política e emancipação humana.
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livro em PDF
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MARX, K. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2010.
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sexta-feira, 14 de julho de 2017

Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho


 
por Virgínia Fontes

Somente na sociedade capitalista os seres sociais – em sua esmagadora maioria – são convertidos genericamente em trabalhadores, isto é, em seres cuja utilidade social fundamental é valorizar o valor e cuja necessidade singular insuperável é vender sua força de trabalho. Sob quaisquer condições e atravessando todas as situações: sexo, gênero, cor, religião, educação, região ou nacionalidade. Esta relação social constitui a base do capitalismo – seres sociais que não dispõem de meios para subsistir – e é sempre reproduzida ampliadamente. Ela origina-se na expropriação massiva de terras camponesas a partir do século XV e nos “cercamentos parlamentares”, realizados no século XVIII na Inglaterra, que extinguiam a propriedade camponesa através de decretos (Wood, 2001, p. 91). Prossegue seu curso na atualidade expropriando camponeses, em todo o mundo, e reatualizando expropriações parlamentares. Gera, permanentemente, de um lado, a concentração da propriedade, pelo roubo de terras e de bens coletivos e, de outro, massas de trabalhadores que precisam vender força de trabalho[1].

A necessidade vital, de subsistência (que é sempre socialmente realizada, e não apenas singular), torna-se um imperativo maior, avassalador, apresentado como se fosse um“valor” máximo e urgente. Necessidade travestida – dramaticamente – em seu contrário, como se fosse liberdade. Marx realizou profunda crítica da Economia Política e permitiu compreender que, em todas as sociedades historicamente existentes, somente o trabalho produziu riqueza, embora ele tenha assumido formas as mais diversas (cum grano salis).

A atividade genérica do trabalho – o que permite ao ser social transformar a natureza com a qual compartilha a existência e, por esse mesmo processo, transformar-se profundamente – torna-se sob o capitalismo apenas “produção de riqueza” abstrata e forma de sujeição da grande maioria da população. O sociometabolismo – essa troca entre seres sociais na sua relação de transformação da natureza – é profundamente diverso segundo os períodos históricos. Ele depende das maneiras pelas quais, em cada período histórico, a sociedade organizava-se na produção de sua vida material e cultural. Sob o capitalismo, envolve uma verdadeira ruptura,
um “racha irreparável” dentro da sociedade capitalista no metabolismo entre a humanidade e a Terra – “um metabolismo prescrito pelas leis naturais da própria vida” – exigindo sua “restauração sistemática como uma lei reguladora da produção social”. Na industrialização da agricultura, sugeriu ele [Marx], a verdadeira natureza da “produção capitalista” foi revelada como sendo a de que “só se desenvolve minando simultaneamente as fontes originais de toda a riqueza – o solo e o trabalhador” (Foster, 2013, s. p.).
Quanto mais se expande o capitalismo, mais o trabalho assume múltiplas configurações, recobertas por contraditórias aparências, disseminadas, enfatizadas pela propaganda e pela atuação empresarial e estatal. Duas aparências assumem a frente na atualidade: o trabalho reduzir-se-ia a emprego, e seria superável, eliminável da vida social.

Sob o capital, o traço constitutivo mais forte do trabalho, a capacidade criativa, torna-se secundário para os que exercem a própria atividade (alienação[2]). Para a grande maioria, o trabalho reduz-se à necessidade imperativa de homens e mulheres de garantir sua subsistência no mercado. Da relação social entre trabalho e capital e da atividade criativa saltamos para a relação jurídica “emprego”, forma ainda generalizada pelo capitalismo, mas em vias de transformação, na qual homens e mulheres estão totalmente disponíveis, durante a maior parte do tempo, aos seus empregadores, para realizar as tarefas (“trabalho”) que lhes forem designadas[3]. A base social dessa necessidade escapa ao ser singular, e o trabalho somente lhe aparece como uma vida ritmada pelo “contrato de trabalho” que assegura condições sociais de existência, através do salário. O trabalho (a atividade) é louvado e reafirmado na educação escolar, na educação profissional, nas empresas e na propaganda, onde se procura extrair uma vocação, um impulso interno a cada ser singular que o justifique e conforte na tarefa que deverá cumprir. Também é louvado como emprego, enquanto trampolim para o sucesso e valorizado positivamente como expressão da própria subjetividade. Tal valoração positiva é socialmente confirmada somente se o trabalho converte-se em “emprego”, em forma de venda da força de trabalho assegurada por um contrato. No século XIX, Marx já assinalava a tendência a uma opacidade ainda maior das relações entre capital e trabalho através do pagamento de salários por “peças”, quando a remuneração do trabalhador depende não da jornada contratada, mas de sua produção[4].

Desde o século XIX, enormes lutas sociais impuseram regras e limites legais ao patronato, de tal forma que contratos de trabalho limitaram (sem eliminá-las) as formas de pagamento “por peças”, e associaram-se a uma grande variedade de direitos (férias, salário anual adicional, aposentadorias, licença saúde etc.), para além de conquistas na educação e na saúde públicas, por exemplo. Evidente- mente, o desemprego é a ameaça maior para a população privada das condições de existência. Ele continua sendo a expressão mais clara do despotismo do capital, maneira de disciplinar enormes massas de seres sociais, e deriva de dois processos principais: a permanência de expropriações, produzindo mais seres necessitados de vender força de trabalho em concorrência com os “empregados”, e a introdução de maquinaria e tecnologia, que dispensa força de trabalho.

A coexistência de grandes massas de trabalhadores em espaços comuns, subordinados à mesma empresa (ao mesmo “patrão”) traz enorme tensão para o capital. Essa massa reconhecia-se concretamente nos seus hábitos de vida, seus locais de moradia, na subordinação comum de um cotidiano compartilhado ao longo de anos de vida. Criava-se uma aparência de correspondência entre trabalho (a atividade criativa), emprego (a forma concreta da sujeição do trabalhador ao capital) e vida (sociabilidade). Isso era mais visível e intenso nos empregos fabris. Essa contradição intrínseca da vida capitalista (socialização dos processos produtivos oposta à concentração da propriedade dos resultados da atividade coletiva) tornava também evidente a sujeição coletiva e contribuiu para a criação de sindicatos e de partidos de extração operária. As estruturas de controle para bloquear reivindicações e rebeldias estavam ancoradas, em primeiro lugar, diretamente no próprio patronato (capatazes, controle dos poros de tempo nas funções exercidas etc.), que contava com o apoio policial (estatal) para as situações que extrapolassem os muros das empresas. E elas eram frequentes.

Começamos a ver onde se lastreia a aparência de superabilidade – ou a noção de que o trabalho não seria algo de intrinsecamente significativo para o ser social e, em especial, para o capital. Essa noção tem múltiplas matrizes, que tendem a aparecer superpostas e imbricadas. Não poderemos apresentar todos os aspectos, mas vale mencionar alguns deles. Uma tendência fortíssima é o deslocamento contínuo, imposto e estimulado pelo patronato, dos custos de contenção das contradições – e lutas – dos trabalhadores para o âmbito do Estado. Frente à ameaça (real ou suposta) de revoluções dos trabalhadores, o Estado as- sumiu, nos países centrais, crescente parcela do valor da reprodução dessa força de trabalho, através de políticas públicas de saúde, educação, moradia, saneamento etc. (Cf. Brunhoff, 1985). Em paralelo, prosseguiam as expropriações diretas (da terra) em escala internacional, aumentando a massa de trabalhadores no âmbito internacional, com efeitos mais claros a partir dos anos 1980. Na década seguinte, ainda acrescentar-se-ão as populações expropriadas de direitos dos países anteriormente integrantes do chamado bloco socialista. Intensifica-se a concorrência entre os trabalhadores e ela será estimulada e aproveitada pelo empresariado, com expansão extrema das relações capitalistas no mundo. Evidentemente, o aumento da massa de trabalhadores envolveu tanto uma redução do valor da força de trabalho, quanto do seu poder de barganha, que se exerce quase que unicamente no âmbito nacional.

Os Estados capitalistas realizaram um duplo movimento: reduziram sua intervenção na reprodução da força de trabalho empregada, ampliando a contenção da massa crescente de trabalhadores desempregados, preparando-os para a subordinação direta ao capital. Isso envolve assumir, de maneira mais incisiva, processos educativos elaborados pelo patronato, como o empreendedorismo e, sobretudo, apoiar resolutamente o empresariado no disciplinamento de uma força de trabalho para a qual o desemprego tornou-se condição normal (e não apenas mais ameaça disciplinadora). O crescimento da violência estatal é, por- tanto, um aspecto dos mais importantes, e merece estudos detalhados[5]. Um segundo aspecto é a redução dos recursos disponíveis para o Estado, de um lado pela redução de suas fontes de recursos, sejam aquelas ligadas ao assalariamento, seja pela evasão fiscal empresarial sob múltiplos formatos; de outro, pelo aumento do apetite inexorável do capital captando recursos públicos para sua expansão internacional e/ou em momentos de crise. O predomínio dos Estados Unidos na formatação dessas novas práticas não é desprezível. Mas não deve fazer esquecer o papel das classes dominantes dos demais países que aderiram vivamente a elas por também partilharem interesses internacionais, pelos efeitos “benéficos” que extraem desse disciplinamento dos trabalhadores ou ainda pelo uso dos recursos públicos para expandirem-se ou amortecer crises.

Vale a pena explorar alguns elementos da relação entre trabalho e emprego. Em primeiro lugar, a profunda contradição entre o que é apresentado socialmente como “liberdade” do ser social, a sua vocação[6], em contraste com sua sujeição cotidiana aos empregadores. Essa contradição é vivida no cotidiano dos empregados, tensos pelo temor do desemprego, pelo bloqueio que o emprego impõe aos inúmeros outros afazeres e possibilidades da existência (o acompanhamento dos filhos, o esporte, a cultura, o lazer, as viagens etc.). A existência real estaria fora do emprego, mas este ocupa quase todo o tempo, introduzindo uma pro- funda e dolorosa fissura entre o tempo de trabalho e a vida, tema explorado por Thompson, o que anima expectativa reiterada de um mundo sem trabalho, ou sem empregos.

Em segundo lugar, o resultado do processo de trabalho não faz sentido para o empregado, que integra uma espécie de grande“sistema” coletivo, subordinado a um patronato que, em muitos casos na atualidade, sequer é visível ou incorporado em pessoas concretas (tal como os “acionistas”). O objetivo geral do processo de conjunto escapa ao trabalhador, aparecendo como astronômicas cifras de lucro, mero dinheiro, distante da vida concreta, como se não mantivesse mais relação com a extração de valor. O trabalhador pode até saber que sua fábrica produz aviões ou medicamentos, mas a sua parcela de atividade está totalmente subordinada a uma estrutura abstrata, diluída numa massa de atividades conexas, em muitos casos dividida em diversos continentes e em proprietários não visíveis. Ele não se reconhece no produto do seu trabalho, que se lhe afigura como o produto “da empresa”, e sua subordinação parece ser ao “sistema”. A desqualificação do trabalho/emprego e dos trabalhadores está ligada à sua forma social, mas os atinge singularmente.

Permanentemente são postos em prática procedimentos empresariais e/ou políticos para bloquear a emergência das tensões geradas por essas contradições. Citemos alguns, como a superposição de sucessivas formações profissionais, em diferentes níveis, procurando adequar os seres sociais às necessidades específicas – e exigências – do capital, preparando-os para uma disponibilidade a mais flexível possível, frente à inflexibilidade crescente das exigências do capital: a empregabilidade. Outra política – empresarial e pública – reside na falsificação da democracia, através do estímulo (monetário ou por temor ao desemprego) à participação e ao engajamento do trabalhador, que deve vestir a camisa da empresa. Também o estímulo ao empreendedorismo, como apagamento jurídico fictício da relação real de subordinação do trabalho ao capital, que se apresenta como igualdade entre… capitalistas, sendo um deles mero “proprietário” de sua própria força de trabalho.

Em terceiro lugar, mas extremamente relevante, figura a relação entre o trabalhador e a tecnologia. Todos sabem que a tecnologia é fruto de trabalho humano, coletivo, cristalizado em máquinas de inúmeros tipos (mecânicas, eletrônicas, digitais) e processos. Se resultada atividade de trabalhadores, seu direcionamento provém do capital em prol de maior lucratividade. No entanto, a tecnologia costuma ser apresentada como algo “externo” à humanidade e indiferente à sua sorte. Como se, a partir da própria coisa tecnológica, engendrassem-se revoluções na vida social. Ela torna-se uma ameaça, brandida regularmente, como maneira específica de eliminar trabalho (isto é, emprego) na vida social, substituindo os seres concretos em funções que, doravante, serão eliminadas pelo uso de tal ou qual método ou tecnologia. A tecnologia é simultaneamente ameaça difusa de desemprego e promessa do fim do trabalho. A realização por máquinas de inúmeras tarefas é apresentada como garantia de um futuro no qual ninguém mais precisaria trabalhar (transformar a natureza), pois tudo seria produzido por tecnologias (muito ou pouco “inteligentes”), liberando os seres sociais do trabalho, a começar pelas tarefas rudes ou repetitivas. O desemprego que a introdução capitalista de máquinas promove para intensificar a extração de valor é metamorfoseado em liberação do trabalho. A necessidade de trabalhar, porém, subsiste entre os seres sociais da sociedade capitalista, pois sem vender força de trabalho, tais expropriados não subsistem no mercado. Entre ameaça e promessa, desaparecem as possibilidades concretas trazidas por processos de trabalho a cada dia mais socializados, como redução das jornadas sem redução salarial, por exemplo.

Finalmente, outro elemento, de poderosa influência, é a própria expressão da riqueza na sociedade capitalista. Sabemos que a riqueza acumulada pelo capital é “trabalho morto”. Essa riqueza deriva da extração de mais-valor pelos proprietários de capital sobre massas crescentes de trabalhadores que precisam vender sua força de trabalho. Mas ela não aparece dessa maneira: a verdade não está explícita nos supermercados ou nos bancos, menos ainda na publicidade. A riqueza aparece na forma do dinheiro, da própria coisa dinheiro, daquilo que permitiria o acesso ilimitado a todas as coisas. A riqueza – e o modelo de vida sugerido – é o ócio, mas lucrativo. Essa imagem clássica do capitalista reforçou-se nas últimas décadas, na medida em que “os investidores” seriam os que fariam “render” seu dinheiro de maneira quase mágica e, em contrapartida, viveriam uma vida isenta de trabalho.

Sem pretensão exaustiva, observamos como a categoria trabalho está permeada de sentidos contraditórios, positivos e negativos. Há uma tendência forte a identificar trabalho (atividade humana, sociometabólica, de transformação da natureza) com a forma “emprego”, uma das formas de subordinação do trabalho ao capital, que agora se desloca para uma subordinação ainda mais direta, como veremos. As contradições exacerbadas nas sociedades capitalistas induzem, de um lado, à imposição do trabalho, simultaneamente vivida enquanto atividade criativa, enquanto garantia de subsistência/direitos e enquanto sujeição e, de outro lado, promovem uma profunda rejeição do trabalho, na qual se confundem a recusa da sujeição com a dificuldade do acesso ao emprego com direitos.

Direito ao trabalho?

Nunca houve, em nenhuma sociedade capitalista, direito ao trabalho e, se havia alguma ilusão, ela foi derrotada em 1848. Há, sim, obrigação de vender força de trabalho e essa obrigação sequer precisa ser legal, pois se assenta na “natureza das coisas” para essa sociedade expropriatória. Manuais de economia chamam de “pleno-emprego”, em sociedades capitalistas, situações em que as taxas de desemprego estão abaixo de 5% da população! No assim chamado pleno emprego dos anos “dourados” (1945-1975) para os países centrais, os dados estavam truncados, pois não entravam na conta nem os trabalhadores sem direitos (imigrantes), que viviam nesses países, nem os camponeses de outros países que estavam sendo expropriados pelo avanço imperialista dos capitais dessas metrópoles, nem as precárias condições de trabalho que as empresas imperialistas impunham no chamado “3º Mundo”.

Assistimos nas últimas décadas a uma transformação extensa (mas desgraçadamente no interior das condições caracteristicamente capitalistas) das relações de emprego. Intensificam-se expropriações secundárias de diversos tipos. Vamos nos ocupar apenas da expropriação secundária dos contratos de trabalho, que atinge trabalhadores urbanos, em muitos casos já secularmente expropriados dos meios de produção (terra e seus instrumentos de trabalho). Por diversas razões – internacionalização da circulação de capitais contraposta ao relativo encapsulamento dos trabalhadores em âmbitos nacionais; ampliação das expropriações primárias nas periferias, levando a uma disponibilidade crescente de trabalhadores em mercados de trabalho distantes, o que leva ao aprofundamento de tecnologias voltadas para a interconexão e o transporte –, formas secundárias de subordinação de trabalhadores já existentes passaram a se disseminar e a as- sumir papel de destaque: o trabalho por peças, trabalho a domicílio, os estágios (período complementar à formação educativa, em diversos níveis) e as empresas de alocação de mão de obra (terceirização genérica). Forneceram um molde para a subordinação dos trabalhadores ao capital para além do emprego.

A expansão do capitalismo em escala internacional é simultaneamente a produção de mais trabalhadores (expropriações), capazes de produzir mais-valor, e de desemprego. Em outras palavras, pode haver mais trabalho e menos emprego. As formas mais conhecidas são tecnologias que dispensam trabalhadores, processos nacionais ou internacionais de deslocalização de empresas, ou ainda ataques diretos contra direitos conquistados, quando e onde porventura tenham ocorrido melhorias das condições salariais e organização de trabalhadores para assegurar limites legais à jornada e às condições de trabalho.

Se a “natureza das coisas” promovida pela expansão do capital não é suficiente para “domar” os trabalhadores em níveis adequados para a extração de mais-valor, as velhas formas de curto-circuitar direitos ligados ao emprego, através do uso direto da força de trabalho sem mediação de direitos, são reativadas pelas próprias empresas e, em geral, posteriormente rejuvenescidas e“legalizadas” pelo Estado, apresentadas como as novas “necessidades” do crescimento.

Na atualidade, explorando intensamente as contradições experimentadas pelos trabalhadores nas suas relações de emprego, está em curso um processo de subordinação direta– sem a mediação de emprego ou contrato– dos trabalhadores às mais variadas formas de capital. Multiplicaram-se as modalidades jurídicas para enquadrar tais situações, seccionando desigualmente direitos das relações concretas (efetivas) de trabalho. Assim, ao lado da permanência de empregos

com contratos regulares (e direitos), multiplicam-se formas paralelas, com contratos parciais (tempo determinado, jornada parcial ou alongada), terceirizações em vários níveis (subcontratações), subordinação sem contrato (bolsistas, estagiários etc.), salário por peças, trabalho a domicílio, pessoa jurídica (quando o trabalhador cria uma empresa cujo objetivo é vender sua força de trabalho, uma das modalidades do empreendedorismo, na qual o próprio trabalhador torna-se “empresa”, para a qual não estão previstos direitos trabalhistas, ou ainda“trabalho voluntário”, quando trabalhadores aceitam realizar tarefas “sociais” com a expectativa de posteriormente conseguirem empregos)[7].

O Estado e suas agências – e a lei, os regulamentos, as prescrições – são o ponto no qual se procura apagar as determinações de classe, impondo como “necessárias”, “naturais” ou “incontornáveis” as exigências do capital frente ao restante da população. Mas o Estado não existe fora e acima das contradições de classe concretamente existentes. Ele atua ex ante apoiando e ampliando as condições de expansão para o capital, aplainando os obstáculos legais. Atua também ex post, seja na legalização das práticas empresariais que ignoram as leis de maneira massiva, seja frente às reivindicações concretas dos trabalhadores, quando admite alguns freios às formas mais drásticas, introduzindo modalidades de amenização política das condições precárias de trabalho ou do desemprego.

Qual é o ex ante que nos interessa nesse momento? A dupla configuração do capital-imperialismo contemporâneo: a da classe trabalhadora crescente e difusa nacional e internacionalmente e a da centralização e concentração dos recursos sociais de produção. Essa dupla configuração não resulta de uma opção política, como se o Estado pairasse acima das condições sociais. Ela resulta das formas concretas de expansão/contração da dinâmica capital-imperialista ao longo das últimas décadas. Mencionamos acima algumas contradições cotidianas sobre trabalho e emprego. Não é, pois, de estranhar que parcela dos trabalhadores sem acesso a contratos com direitos passe a rejeitar o formato emprego, ora denunciando-o como privilégio (subscrevendo o coro empresarial), ora aderindo a outros formatos que aparecem como liberação do contato direto com empregadores. Pode ser inquietante, mas tampouco é de estranhar que assumam o ponto de vista do capital, pretendendo-se empreendedores de si próprios…

A escala da concentração/centralização de capitais atingiu níveis inimagináveis há poucas décadas8. A propriedade capitalista crucial contemporânea não é apenas a dos meios diretos de produção, mas a dos recursos sociais de produção. A propriedade fundamental é da capacidade de colocar em funcionamento meios de produção e de agenciar força de trabalho – sob formas as mais díspares – para que seja possível a produção de valor (e, sobretudo, de mais-valor) em escalas e âmbitos variados (local, regional, nacional, internacional). Há um salto gigantesco e uma mudança de escala difíceis de serem apreendidas como uma totalidade, contendo aspectos e sentido comuns, tamanhas as diferenças locais, o ritmos e as formas sutis ou brutais que as implementaram. Mas também não resulta de um capitalismo sem política ou sem Estado. Essa concentração é diretamente apoiada por sujeitos concretos, implementando concertadamente práticas de sujeição dos trabalhadores e elaborando políticas explícitas de adequação legal e de formação dessa classe trabalhadora.

Concentração de recursos sociais e expropriações: a sujeição direta do trabalhador

Melhor, talvez, do que uma longa explicação teórica seja detalharmos um exemplo sobre algo muito corriqueiro: o Uber. Seu enorme impacto já gerou no- vos termos, como a “uberização das relações de trabalho” e um verbo, uberizar. Vamos nos ocupar, sobretudo, dessa empresa específica, mas ela não é nem original, nem a única. A forma como opera atravessa diversos setores (alojamento e transporte, financiamento, produção etc.), estimulada por processos explícitos de “incubação”, através de startups[9], gerando várias modalidades da assim mal-chamada “economia colaborativa”[10].

Há um senso comum que trata delas como expressão de “tecnologia”, produtoras de bens “imateriais”, mera maquininha plataforma “reunindo consumi- dores e ofertantes de serviços”, como se fossem “lojas” ou “esquinas” virtuais. Fortemente influenciado por think tanks empresariais e pela propaganda disse- minada na mídia proprietária, o senso comum tende a esquecer o aspecto de produção de valor (e, sobretudo, de mais-valor) que representam.

Um dos pontos de partida pode ser localizado em atividades originadas em projetos antimercantis, estimulando iniciativas socialmente compartilhadas sem fins econômicos. As incubadoras tornaram-se a maneira pela qual o grande capital fomenta startups para expropriar tais possibilidades criadas para evitar o mercado. Um exemplo é a plataforma Linux, não proprietária, que atualmente integra celulares Android (Samsung) e grandes empresas de informática; outro é a web, convertida em base de controle sobre a população em escala planetária. Suas imensas possibilidades jamais se converteram em enfrentamento da dinâmica social concreta do capitalismo, que gera e reproduz mercados através de expropriação, concentração de recursos sociais e extração de mais-valor. De- certo, parte desses novos processos e técnicas nasce como inquietações frente às intensas contradições aguçadas pelo capitalismo e apontam para novas e poderosas possibilidades, mas precisam ser exploradas de maneira crítica. Não à maneira de muitos, fascinados, como se essas experiências fossem imediatamente o que dizem ser (“colaborativas”, “livres”, “bens comuns”). Ao contrário, é preciso identificar as relações reais que acolhem seu nascimento, suas formas específicas de adaptação às formas concentradas do capital, sua generalização e, por fim, as possibilidades e tensões novas que introduzem na relação entre capital e trabalho. Essas iniciativas não acabam com o trabalho, mas aceleram a transformação da relação empregatícia (com direitos) em trabalho isolado e diretamente subordinado ao capital, sem mediação contratual e desprovido de direitos. Antes como depois, o interesse central do capital prossegue sendo a extração e a captura do mais-valor.

Em boa parte, tais plataformas tecnológicas resultam de atividades de trabalho (não empregatícias) realizadas gratuitamente, ou quase, para o grande e altamente concentrado capital: pesquisa, prospecção e desenvolvimento de estratégias ou de“nichos de mercado”. O termo é enganoso: nicho de mercado quer dizer descobrir uma forma de extrair mais-valor, através da utilização do trabalho humano. A ponta tecnológica do chamado empreendedorismo (realizado por trabalhadores de diversas formações, mas sem emprego) dedica-se a pesquisar possibilidades de expropriação secundária, em diversas partes do mundo, que possam converter-se em maneiras de assegurar a subsistência de tais equipes através da implantação de formas de extração de valor em grande escala. Tais prospecções, uma vez mais ou menos testadas, são oferecidas a grandes empresas, a proprietários, a bancos ou sistemas financeiros não bancários, com expectativas de lucros formidáveis na expansão e consolidação de seus processos. Estabelecem associações diretas com capitais altamente concentrados (empresas, bancos, fundos de investimento etc.), pois dependem de enormes recursos sociais de produção para assegurarem a conexão entre a massa de capitais buscando valorização e a massa de trabalhadores disponíveis.

O termo “incubadoras de empresas” é explícito, tão evidente é seu papel de incubação de expropriações e de valorização do valor. A maior parte dessas iniciativas morre no nascedouro e a força de trabalho nelas empenhada parece desaparecer. As associações entre as empresas incubadas (startups) que vingarem e o grande capital são apresentadas como financiamentos, mas o termo oculta os processos sociais subjacentes, de expropriação e de subordinação do trabalho, além dos cuidadosos acertos sobre os diversos tipos de propriedade envolvidos no processo.

No caso da Uber, por exemplo, desde 2010, a empresa capta financiamentos milionários, chegando, na atualidade, a acordos com a Arábia Saudita (que injetou 3,5 bilhões de dólares na empresa) e com a China, que resultou em fusão com a chinesa Didi, em negócio estimado em 35 bilhões de dólares (Insider.Pro, 28/08/2016).

Alguns acreditam – ingênua ou perversamente – que qualquer garoto numa garagem poderia fazer isso, desde que fosse inteligente e esperto o suficiente para idealizar um novo esquema. É certo, há milhares de garotos em garagens tentando chegar a algo assim, gratuitamente. Isso significa milhares de garotos trabalhando arduamente, sem remuneração, em extrema concorrência para “vender” seu projeto de assegurar sua própria subsistência e, se possível, enriquecer.

Seguem algumas características da empresa Uber, relembrando que ela aqui figura apenas como um exemplo. Uber não é proprietária direta das ferramentas e meios de produção (o automóvel, o celular), mas controla ferreamente a propriedade da capacidade de agenciar, de tornar viável a junção entre meios de produção, força de trabalho e mercado consumidor, sem intermediação de um “emprego”. A empresa detém, juntamente com outras grandes empresas ou proprietários, a propriedade dos recursos sociais de produção.

Trata-se de uma coligação íntima (pornográfica) entre as formas mais concentradas da propriedade, que viabilizam o controle econômico do processo na parte que lhes interessa, o controle da extração, a captura do mais-valor e sua circulação de volta à propriedade. A defesa da propriedade intelectual da criação de um processo (a conexão) une-se estreitamente a investidores que, detentores de quantias de dinheiro monumentais, precisam transformá-las em capital, isto é, investi-las em processos de extração de valor. Tais investidores podem ser provenientes de setores variados: fundos de investimento de risco como Benchmark ou First Round Capital, grandes conglomerados financeiros, como Goldman Sachs ou empresas como Amazon ou Google, sem falar em acordos com operadoras de cartão de crédito, com montadoras ou empresas de aluguéis de automóveis. Somente a escala atingida pela propriedade dos recursos sociais de produção permite acoplar uma plataforma de busca a uma tecnologia móvel de cartão de crédito e a um localizador, que asseguram a estreita dependência do trabalhador, pois do cartão depende sua própria remuneração e o localizador denuncia todos os seus percursos, uma vez acionado o celular (conexão principal). E é através do cartão que serão extraídos diretamente entre 20 e 25% de toda a remuneração do trabalhador. A taxa de extração de valor é férrea, assim como o regime de trabalho.

Os interesses comuns a tais grandes proprietários não se limitam aos lucros diretos do empreendimento, mas se estendem às maneiras de contornar a legislação e os impostos, implantando sofisticadas redes jurídicas internacionais e utilizando-se de paraísos fiscais (La Tribune, 23/10/2015). Ademais, é fundamental contar com a livre circulação internacional do lucro, além do estabelecimento de uma defesa política comum com o empresariado dos diferentes países quanto à subordinação de trabalhadores sem direitos e, se possível, com uma intensa difusão através de educação (escolar, pública e/ou privada e não escolar) e da mídia proprietária das vantagens do empreendedorismo, aliado ao fim inelutável do “trabalho”. Isso sem falar de intrincadas imposições legais estabelecidas através de tratados internacionais, que limitam o raio de ação das lutas dos trabalhadores em cada país. Quanto aos impostos do trabalho e da própria atividade, estes serão pagos diretamente pelo trabalhador (taxas de circulação, permissões etc.).

Longe de reduzir a importância da propriedade capitalista, ao contrário, estamos diante de sua potencialização. Trata-se de expandi-la ainda mais, no mesmo compasso em que à grande massa deve restar apenas a propriedade direta de coisas somente conversíveis em capital na forma de maquinaria gratuitamente oferecida ao capital, através da intermediação de um polo conector, que ativa a extração de valor. Os proprietários dessas coisas (no caso, automóveis) são facilmente expropriáveis. O próprio desgaste dos automóveis – sem falar da saúde dos motoristas – fica inteiramente a cargo dos trabalhadores. Imaginando livrar-se desse custo, os motoristas passaram a alugar automóveis. Devem, por- tanto, pagar o aluguel a outro proprietário da ferramenta automóvel, entregando parcela do mais-valor que produzem e continuando a encaminhar ao Uber a parcela pré-fixada como valorização do valor resultante de seu trabalho. A em- presa distancia-se da vida concreta e faz questão de ignorar as condições de vida dos trabalhadores, assegurando-se um custo próximo de zero para maquinaria, matéria-prima (combustíveis, reparos, renovação da frota) e da própria força de trabalho.

Há uma centralização absoluta e internacional do comando sobre os trabalhadores e redução dos custos do processo de valorização do valor. Aparentemente, há apenas um aplicativo de computador a conectar motoristas e usuários. Isso é falso, pois, entre eles, há um credenciamento (para os motoristas e usuários), um cartão de crédito e um rastreador do movimento do motorista, todos totalmente arbitrários e autocráticos. Somente envolvem direitos para os proprietários do capital, escassas garantias para os usuários e nenhum direito para o trabalhador, salvo o de receber parcela do que produziu. Redução de custos não quer dizer sua inexistência: a centralização a esse nível exige intensa coordenação internacional da administração e gestão, além da partilha do lucro entre os demais proprietários dos recursos sociais de produção. No site da Uber, encontram-se, eventualmente, chamadas para o enxuto sistema interno de controle internacional[11]. A contraparte dessa centralização é uma enorme descentralização do processo de trabalho. Para além do credenciamento e do localizador, não há controle direto próximo aos trabalhadores: apenas a pura necessidade deve movê-los ao trabalho. Não há jornada de trabalho combinada ou obrigatória, nem limites para ela, tampouco dias de repouso remunerado. Estes se sabem trabalhadores, mas não se consideram como tal, mas como prestadores de um serviço casual, mesmo se movidos pela mais dramática necessidade. De fato, eles não têm um emprego, mas uma conexão direta de entrega do mais-valor aos proprietários capazes de lhes impor um processo de produção de valor pré-estabelecido. Não são os poros do tempo livre que tais proprietários procuram obturar, como nos processos fabris, que realizam estrito controle do tempo de trabalho. Aqui, trata-se de lidar com novas escalas, ampliando o volume de valor, através de fornecedores massivos de mais-valor. Qualquer tempo disponibilizado pelo trabalhador singular é tempo de lucro.

Importante lembrar que há várias definições de serviços. A mais corriqueira em manuais de economia é meramente descritiva e separa produção (fabril), comércio (os pontos) e serviços. Se as consideramos através das relações sociais que as envolvem, clarificamos sua distinção. É produção, na sociedade capitalista, tudo aquilo que está direcionado para a valorização do valor. Assim, é indiferente para um grande proprietário a atividade concreta realizada por “seus” trabalha- dores, lingerie, sapatos, músicas, programas de televisão ou de computador. Os serviços, nessa concepção, são os processos de trabalho em que os trabalhadores detêm integral e diretamente o controle do processo de produção e vendem o resultado final de sua atividade. No momento em que o trabalhador, dispondo ainda ou não de alguma propriedade direta, somente pode realizar sua atividade sob o comando do capital, saímos de uma relação social de prestação de serviços para o trabalho valorizador do valor, tipicamente capitalista. O contrato – ou a exploração direta – é seu formato jurídico e não traduz as relações reais.

As formas democráticas de gestão das cidades e de transporte coletivo são curto-circuitadas, de maneira quase imediata, pelo ingresso de massas de auto- móveis buscando passageiros sem formação adequada, sem seguros, apresentando-se como uma “carona compartilhada”.

Outro aspecto digno de nota é o bloqueio jurídico e político ex ante a qual- quer ingerência dos trabalhadores sobre o processo, pela própria inexistência de contrato de trabalho. O processo apresenta-se como a reunião de voluntários que prestam um serviço, casualmente remunerado.

Há inúmeras lutas e importantes vitórias contra esse tipo de prática e, em especial, contra a empresa Uber. Juristas em vários países denunciam o vínculo empregatício entre os motoristas e a Uber, pois é a empresa quem define o modo da produção do serviço, o preço, o padrão de atendimento, a forma de pagamento e a modalidade de seu recebimento. É ainda ela quem recebe o pagamento e paga o motorista, além de centralizar o acionamento do trabalhador para sua atividade. A Uber conta ainda com um sistema disciplinar que aplica penalidades aos trabalhadores que infringirem suas normas de serviço. Nada há de compartilhamento, “pois o motorista, ao ligar o aplicativo, não tem senão a opção de seguir estritamente as rígidas normas estabelecidas de forma heterônoma pelo algoritmo do aplicativo criado e gerenciado pela empresa”[12].

Em diferentes países e circunstâncias, há vitórias jurídicas contra a Uber – a começar pela Califórnia e por Massachusetts, que, em 2013, enfrentaram a em- presa, obrigada a pagar 100 milhões de dólares aos seus motoristas nesses esta- dos; além de contestações legais na Tailândia, em Milão e no Rio de Janeiro. Em 2016, a justiça britânica decidiu que não se trata de relação de autonomia entre a Uber e seus motoristas, definindo-os como funcionários da empresa (El País Brasil, 20/12/2016). Ainda cabe recurso. Em janeiro de 2017, a Federal Trade Commission (USA) aceitou encerrar processo por pagamento menor aos motoristas do que o anunciado pela empresa, através de acordo pelo qual a empresa desembolsou 20 milhões de dólares (FTC, 19/01/2017). Em fevereiro de 2017, a justiça do trabalho de Belo Horizonte (capital do estado de Minas Gerais, no Brasil) reconheceu haver vínculo empregatício entre a Uber e um de seus motoristas (Exame, 14/02/2017).

Não faltam protestos e manifestações. O volume de lutas contra a Uber é significativo, especialmente dos motoristas de táxi, que já realizaram diversas greves em inúmeras grandes cidades onde se implantou a empresa. Recentemente, crescem as greves dos próprios motoristas da Uber, por melhorias salariais e redução dos custos de operação, como a que ocorreu nos Estados Unidos (TecMundo, 29/11/2016), em novembro de 2016, e na França, em dezembro de 2016 (TF1, 15/12/2016).

Não obstante tais lutas, denúncias e algumas conquistas, e até mesmo declaração de apoio aos motoristas Uber do primeiro ministro francês Manuel Valls (Le Parisien, 16/12/2016), a estratégia de trabalho sem emprego e de extração direta de valor encarnada na Uber parece imbatível. A empresa continua a se expandir atingindo cifras espantosas de viagens e de negócios, tendo se associado à Didi chinesa, em acordo estimado em 35 bilhões. Para curto-circuitar as reivindicações dos motoristas – fonte fundamental do valor gerado pela empresa –, uma chantagem peculiar: o desenvolvimento de tecnologia para transporte de passageiros sem motoristas. Novamente, as ameaças do fim do trabalho incidem sobre os trabalhadores sem emprego, mas em atividade[13].

Matéria do blog francês Huffington Post – associado ao grupo Le Monde – inquieta-se sobre o que seria um “escravismo moderno”, mas assinala as vantagens para o Estado e para o mercado de trabalho da Uber.
Uber apresenta importantes vantagens, tanto para o Estado, quanto para o mercado de trabalho. […] Uber traz soluções onde o Estado fracassou. É um criador de trabalho dinâmico que facilita o exercício de uma atividade e a inserção profissional. […] A queda de braço [entre Uber e os motoristas] parece longe de terminar, mas várias soluções poderiam ser analisadas. O estatuto dos motoristas, de fato, deve ser redefinido, devendo beneficiar-se de um regime social de trabalhadores independentes mais protetor, se não for o caso de uma requalificação em contratos com duração indeterminada. Enfim, parece igualmente interessante imaginar a emancipação dos motoristas, pela criação de uma plataforma open-source controlada e explorada por eles próprios (Huffington Post, 10/01/2017).
Observe-se que as sugestões tendem a conservar a relação de trabalho direto, sem contrato, mesmo se admite a necessidade de melhorias. O blog ecoa estudo realizado pela Consultoria The Boston Consulting Group-BCG, cujo comunicado, disponível on-line, revela-se um libelo de defesa da Uber, que já traria, em quatro anos, “benefícios para o crescimento, o emprego e a mobilidade”. O ramo de atividade VTC (veículos de transporte com chauffeur profissional), no qual a Uber é central,
já representa 800 milhões de euros em 2016, ou 19% do setor de trans- porte particular de pessoas (táxis e VTC, avaliados em 4,2 bilhões). Ele contribui com 0,04% do PIB francês em 2016 e com 2% de seu crescimento. Na Ile de France [conurbação em torno de Paris], ele atinge 0,1% do PIB e 6% de seu crescimento. Esse ramo envolve um ecossistema de atores, em primeiro lugar os vendedores e locadores de veículos, as seguradoras, consultorias e contabilistas, e centros de formação e de exames autorizados. Estima-se que 25% do preço de uma corrida vai para os atores desse ecossistema direto, entre 150 e 250 milhões de euros em 2016. […] [Tem] impacto positivo na criação de emprego, nas receitas fiscais e na mobilidade – 15% da criação líquida de emprego na França nos primeiros 6 meses do ano de 2016 vem do ramo VTC. Essa cifra atinge 25% na Ile de France… (BCG, s. d.).
O BCG também não se esquece de assinalar a necessidade de ajustes para melhorar acondições dos motoristas de VTC (Uber), inclusive os taxistas. Falamos acima do bloqueio jurídico e político ex ante que protege tais iniciativas. Lastreado em estudos numéricos sobre crescimento de postos de trabalho, de ingressos de impostos e da taxa de crescimento do PIB, o avanço de relações de trabalho desprovidas de direitos entra na conta de uma certa fatalidade tecnológica, para a qual não haveria alternativas, a não ser módicas políticas de redução de danos para os trabalhadores, sem alterar sua condição. Ex ante, o compromisso exigido aos Estados é o de apoio à iniciativa privada, de disciplinamento da força de trabalho (de preferência com aval eleitoral) e de rentabilizar seus recursos (outra maneira de mencionar a disciplina fiscal). Ex post, os ajustes visam, sobretudo, a reduzir os transtornos causados pelas mobilizações de trabalhadores, taxistas ou motoristas de Uber. Aliás, boa parte das regulamentações jurídicas da Uber é deixada às administrações municipais, o que favorece o silêncio obsequioso de legislações mais abrangentes, permitindo o alastramento dessas iniciativas e provando que o procedimento do trabalho desprovido de direitos (trabalho sem emprego) figura como um dos modelos desejáveis para a relação entre o capital e os trabalhadores em escala internacional.

Apenas mais um exemplo, dentre os inúmeros que podem ser encontrados na web, a respeito do Uber e que mostra como tal bloqueio ex ante pode assumir formas diversas: o novo prefeito da cidade de São Paulo, a mais importante do Brasil, decidiu substituir toda a frota de automóveis da prefeitura (em boa parte alugada) pela utilização do aplicativo (Exame, 16/02/2017).

Algumas considerações

A empresa Uber figura aqui apenas como exemplo, embora extremamente elucidativo. Em diferentes ramos de atividade, nas diversas modalidades de contrato, descontrato e subordinação do trabalho, por exemplo, observa-se uma mescla de formas similares. No campo brasileiro, a engorda de animais (frangos e porcos), a produção de ovos etc., é realizada por pequenos proprietários, que devem assegurar, por seus próprios meios (em geral, através de endividamento bancário) as instalações exigidas e certificadas por grandes empresas agroindustriais. Estas, detentoras dos recursos sociais de produção, definem o processo de trabalho e o tempo máximo de sua realização (como o tempo de engorda de cada tipo de animal). Os pequenos proprietários convertem-se em elos de uma enorme cadeia produtiva, na qual realizam processos similares aos que o operário parcelar executa em grandes indústrias, arcando com os custos físicos de implantação e de manutenção do processo e sem… salário. Como alguns dos motoristas Uber, permanecem proprietários dos meios diretos de produção, mas sua atividade é subordinada diretamente ao capital sem mediação de relação empregatícia. Diferentemente dos motoristas da plataforma Uber, ainda possuem pequenos quinhões de terra. São facilmente expropriáveis, a começar pelos bancos que financiam as instalações técnicas e, a qualquer atraso, podem retirar-lhes a propriedade.

Os variados tipos de terceirização da contratação de trabalhadores – bancos, indústria automobilística, mas também têxteis, calçados, música e inúmeros outros (Antunes, 2006) – objetivam, claramente, curto-circuitar a legislação em defesa de trabalhadores, assegurando um distanciamento crescente entre o emprega- dor direto e o proprietário dos recursos sociais de produção (a grande empresa contratante das empresas fornecedoras de força de trabalho). Os cercamentos parlamentares estão em plena atividade.

Pode-se supor que o agigantamento do número de entidades sem fins lucrativos a partir da década de 1980 tenha uma relação direta com esses processos. Frente ao crescimento do desemprego e da imposição de uma concorrência aguçadíssima entre os trabalhadores, generalizaram-se, entre diversos setores, iniciativas voltadas para mobilizar sobretudo jovens com o objetivo de minorar os sofrimentos dos mais pobres, ou mais vulneráveis. Mais uma vez, não se tratava de alterar as relações capitalistas, mas de reduzir seus efeitos deletérios. Nessas novas entidades, implantavam-se relações de trabalho voluntárias e, portanto, desprovidas de direitos. Pouco a pouco, parcela dessas entidades passou a substituir atividades públicas (na assistência social) e consolidou uma atuação mercantil-filantrópica: de um lado, vendia projetos a financiadores (privados e públicos), que asseguravam a manutenção das entidades e sua própria subsistência, e de outro lado, convertia-se em forma de expropriação de direitos em diversos níveis. Essa prática resultava na redução de políticas universais, ao defenderem intervenções pontuais, quase cirúrgicas, em situações dramáticas (fome, abrigo, algumas doenças etc.). Em muitos países, enfrentaram forte oposição pela manutenção das políticas universais, e sua intervenção limitou-se, por algum tempo, ao âmbito da filantropia. Na medida em que as privatizações avançaram e os cercamentos parlamentares conseguiram extorquir direitos, passaram a se apresentar como as mais aptas para parcerias público-privadas, sobretudo na educação e na saúde públicas. Mudavam de escala: fortemente financiadas por grandes empresários, essas entidades hoje são profissionalizadas e procuram elaborar as políticas nacionais e abocanhar parte de seu funcionamento, sobretudo na área da gestão. Entidades privadas, embora sem fins lucrativos, acedem à gestão de hospitais e de sistemas escolares públicos (Bravo et al., 2015). O conjunto do fenômeno ainda é insuficientemente pesquisado, embora já existam variadas pesquisas a respeito de Organizações Não Governamentais.

Nunca ficou tão evidente que a própria forma de organização da sociedade capitalista impele à conversão generalizada da esmagadora maioria da população em massa trabalhadora fragmentária, desprovida ao máximo de direitos e de defesas frente ao grande capital e com jornadas de trabalho necessário crescentes, além do aumento do tempo de trabalho direto e indireto, pelo recuo das aposentadorias. Nunca ficou tão claro o papel do Estado como agenciador ex ante, apoiado em entidades empresariais, elas também “sem fins lucrativos”. Agora, trata-se de disciplinar a necessidade direta, reduzindo-se a intermediação tradicional do despotismo fabril. O Estado deve converter-se em controlador ex post (pelo convencimento e pela violência) dessas massas de trabalhadores, assegurando sua docilidade e disponibilidade para formas de sujeição ao capital desprovidas de direitos. Tanto a rapinagem empresarial, como a escala da concentração e centralização, assim como o papel cumprido pelo Estado, estão evidentes. A questão dramática é por que, nessa enorme explicitação das relações sociais, ocorre paralelamente um aparente recuo da consciência de classe e das lutas dos trabalha- dores para a superação do capital?

Essas considerações, fragmentárias e insuficientes, podem contribuir para aprofundamentos ulteriores. Necessitamos de coletivos de pesquisadores, volta- dos para a compreensão das relações sociais concretas, ainda quando delas resulta uma infinidade de abstrações, sob as quais os processos de dominação e de extração de mais-valor procuram se ocultar. Alguns equívocos merecem ser evitados:
  • A confusão entre emprego (contrato/direitos) e trabalho (venda da força de trabalho) alimenta a suposição de um fim do “trabalho”, como se o capitalismo não repousasse sobre a extração de mais-valor. A chantagem imposta pelo capital encontra eco em variadas tendências teóricas;
  • acresce a essa confusão a suposição de que o capital “financeiro” pode reproduzir-se sem a valorização do valor propiciado pelos processos de trabalho. Esquecem-se de que ele integra a concentração exacerbada da propriedade das condições sociais de produção, que essa concentração é a maior impulsionadora da extração de valor sob quaisquer condições. Longe de acabar com o trabalho, a atuação desse polo concentrado reduz o emprego com contratos e direitos a alguns setores dos trabalhadores, e impulsiona firmemente a extensão de formas de sujeição direta dos trabalhadores a processos apenas aparentemente abs- tratos. A tecnológica “plataforma de conexão” é, de fato, uma empresa e um enorme conglomerado de recursos sociais de produção;
  • a superposição de modalidades díspares de subordinação do trabalho ao capital exacerba a fragmentação efetiva da massa de trabalhadores, seccionados entre os com-direitos, os com algum-direito, os com poucos-direitos, os quase-sem-direitos e os sem-direitos que, precisando defender seu lugar específico na hierarquia de direitos, dessolidariza o conjunto de maneira profunda. Outra tendência forte é a dessolidarização intergeracional: conservam-se os direitos dos mais velhos, enquanto são praticamente suprimidos os direitos dos novos ingressantes no mercado de trabalho;
  • Ao crescer a distância entre os proprietários dos recursos sociais de produção (ocultos sob holdings, conselhos de acionistas, plataformas digitais, entidades sem fins lucrativas, etc.), cresce a dificuldade dos trabalhadores, já segmentados, a enxergarem seu processo de sujeição – e sua atividade criativa, o trabalho – como um processo coletivo;
  • essa fragmentação estimula a reatualização das segmentações pré- -existentes entre trabalhadores (nacionalidades, cor de pele e racismos, sexismos diversos etc.) que, novamente de maneira confusa, é apresentada por tendências teóricas diversas como “novas tensões” ou “novos” movimentos. Aqui, consciente ou inconscientemente, voluntária ou in- voluntariamente, ocorre um processo intelectual – e prático – de apagamento das classes sociais, nutrido ainda por uma mercantil-filantropia que recebe recursos das entidades capitalistas internacionais e das pontas mais concentradas do capital. Chegamos ao ponto de aceitarmos uma periodização fictícia, na qual se propõe uma espécie de “marco zero” de “novas” reivindicações na década de 1970, apagando-se as in- tensas lutas feministas e antirracistas que atravessaram os séculos XIX e XX, sombreando as lutas anticoloniais e o papel desempenhado pelos partidos comunistas, trotskystas e, até mesmo, socialistas;
  • há uma espécie de aceitação tácita do capitalismo como insuperável numa vasta gama de movimentos e partidos, inclusive dentre muitos que se autoproclamam de esquerda. Desse ponto de vista, ser de esquerda parece significar certa devoção para “minorar” as difíceis condições de vida de alguns setores sociais. Esse tipo de atitude adota a postura da filantropia mercantilizada e banaliza a suposição do fim do trabalho e das classes sociais, supostamente substituídas pela pobreza, excluídos, vulneráveis etc.;
  • ocorre intensa rapinagem burguesa expropriando conquistas populares ancoradas no Estado, através de um hiperativismo empresarial legiferante, produzindo leis (e arbitragens privadas) destinadas a reduzir direitos da grande maioria da população, composta por trabalhadores, ao mesmo tempo em que promove sucessivas legalizações (ajustes) adequando práticas ilegais postas em ação em ampla escala pelo empresariado. A essa rapinagem acrescenta-se a privatização de empresas e serviços públicos, ao lado da intensificação da captura dos recursos organizativos populares pelo grande capital: estímulo aos fundos de pensão privados e de investimento, como compensação à fragilização imposta aos sistemas públicos de previdência;
  • insegurança social crescente, pelo aumento da concorrência predatória no interior da classe trabalhadora, com estímulo legal. Ao se intensificarem políticas de Estado para conter as massas trabalhadoras, aumenta simultaneamente a violência – aberta e simbólica – contra os setores populares. Processos de militarização da vida social disseminam-se.
Finalmente, seria importante assinalar que essa expansão da relação direta de extração de valor resulta de e gera novas e poderosas contradições e podem abrir lutas dos trabalhadores também em nova escala. Como mencionamos acima, boa parte das novas tecnologias nasceu em ambientes contestadores do mercado ou de algum tipo de propriedade, porém nascem dentro de relações sociais capitalistas e as reproduzem. Utilizam permanentemente linguagem com expressões contestadoras, mas convivem com a naturalização do capital e com formas brutais de extração de valor. Por isso, prestam-se facilmente a interpretações idealizadas, que as tomam ao pé da letra, como se a colaboração que sugerem não estivesse emprenhada pela valorização do valor. A forma da relação social efetiva, concreta, entre os trabalhadores e os proprietários das condições sociais de produção prossegue sendo a do trabalho contra o capital e segue sendo essa a luta capaz de abrir novos horizontes históricos para a humanidade.

Nas condições atuais, o risco maior parece ser formas de extermínio crescentes – para além do encarceramento massivo – realizadas por Estados ou sob seu silêncio. Não por escassez de capitalismo industrial, como querem alguns. Nem por estar o capitalismo ultrapassado pela superação do trabalho, como supõem outros. Mas por seu excesso e necessidade insaciável de expansão.

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Notas
[0] Este texto é um desdobramento de intervenção no Colóquio Marx e o Marxismo 2016: Capital e poder, quando compartilhei a mesa redonda “Trabalho e capital: as contradições políticas contemporâneas” com Marcela Soares. Foi originalmente publicado na revista KALLAIKIA – Revista de Estudos Galegos, nº 2, junho de 2017. Agradeço o estímulo de Maurício Castro.
[1] Harvey (2004, p. 45) analisa o processo atual como um “novo imperialismo”, gerando uma nova etapa capitalista de “acumulação por espoliação”. Por outro viés, considero que as expropriações são constitutivas de todas as fases do capitalismo, e aguçaram-se recentemente, além de incidirem sobre novos fenômenos (águas, germinação das sementes, biologia humana etc.). Cf. Fontes (2013).
[2] Cf. Marx (1996).
[3] Ver o elucidativo artigo de E. P. Thompson (1995), “Tiempo, disciplina de trabajo y capitalismo industrial”.
[4] “Dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade. Do mesmo modo, é interesse pessoal do trabalhador prolongar a jornada de trabalho.” […] “mesmo permanecendo constante o salário por peça, implica em si e para si uma baixa de preço do trabalho.” […] “Mas a maior liberdade que o salário por peça oferece à individualidade tende a desenvolver, por um lado, a individualidade e, com ela o sentimento de liberdade, a independência e autocontrole dos trabalhadores, por outro lado, a concorrência entre eles e de uns contra os outros.” Marx (1985, pp. 141-142).
[5] Muitas excelentes análises assinalam a exacerbação da violência do Estado, e são fundamentais. Grande parte delas não correlaciona o fenômeno às formas de contenção da força de trabalho, por considerar o trabalho superado para o capital. Ver Agamben (2004); Arantes (2007); Brito & Oliveira (2013).
[6] Um dos sustentáculos centrais do “espírito” do capitalismo, segundo Max Weber (1983).
[7] Francisco de Oliveira cunhou uma curiosa expressão, o “trabalho sem-formas”: “[…] entre o desemprego aberto e o trabalho sem-formas transita 60% da força de trabalho brasileira […] É o mesmo mecanismo do trabalho abstrato molecular-digital que extrai valor ao operar sobre formas desorganizadas do trabalho.” (Oliveira, 2007, pp.34-35).
[8] Dentre inúmeras referências, ver Piketty (2013) e recente relatório elaborado pela OXFAM em 2017, denunciando que 8 homens possuem a mesma riqueza que a metade mais pobre do planeta, disponível em <https://www.oxfam.org.br/sites/default/files/economia_para_99-relatorio_completo.pdf>.
[9] “Muitas pessoas dizem que qualquer pequena empresa em seu período inicial pode ser considerada uma startup. Outros defendem que uma startup é uma empresa com custos de manutenção muito baixos, mas que consegue crescer rapidamente e gerar lucros cada vez maiores. Mas há uma definição mais atual, que parece satisfazer a diversos especialistas e investidores: uma startup é um grupo de pessoas à procura de um modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza.” Definição de Yuri Gitahy, publicada em revista brasileira destinada a público empresarial (Revista Exame, 03/02/2016; itálicos meus).
[10] Ver, por exemplo, <http://compass.consumocolaborativo.com/conferencias/>, onde se pode encontrar diversas apresentações sobre empresas de “novo tipo”, “colaborativas”.
[11] Cf. <https://www.uber.com/a/join?use_psh=true&exp=a-int-psh>, acesso em 22/09/2016.
[12] Vale ver o extenso e bem fundamentado argumento desenvolvido pelo professor e desembargador José Eduardo de Resende Chaves Júnior. In: <http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI237918,-41046-Motorista+do+Uber+podera+ser+considerado+empregado+no+Brasil>, 20/04/2016.
 
[13] Cf. <https://pt.insider.pro/technologies/2016-08-28/conheca-historia-da-uber/>. A extração de valor por transporte sem motorista envolve deslocar o ponto de mira: Uber se associa com empresas automobilísticas gigantes que pretendem, assim, renovar suas frotas. O consórcio proprietários dos recursos sociais de produção passaria a compartilhar lucros derivados da exploração de operários na indústria automobilística.
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Referências bibliográficas
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Resumo: Análise de alguns sentidos históricos das relações de trabalho contemporâneas, criticando duas falsas evidências contemporâneas: a de que trabalho se reduziria a emprego; e de que seria supérfluo no capitalismo atual. O artigo assinala um novo papel do Estado capitalista, deslocado de papel complementar à reprodução da força de trabalho para o de contenção de massa crescente de trabalhadores com direitos expropriados, anteriormente associados ao contrato de trabalho. A extrema concentração da propriedade capitalista – a dos recursos sociais de produção – contraposta a trabalhadores desprovidos de direitos é exemplificada pela empresa Uber. Além de ausência de direitos (desemprego) e de jornadas ilimitadas, ocorre uma centralização direta e internacional do comando capitalista sobre os trabalhadores, acoplada à extrema descentralização do processo de trabalho. Finalmente, aborda o papel das entidades empresariais sem fins lucrativos na expropriação de direitos de massas crescentes de trabalhadores.

Palavras-chave: trabalho; trabalhadores; emprego; tecnologia; capital; Estado; Uber.

Capitalism in times of uberization: from employment to labor

Abstract: The paper consists in an analysis of some historical sense of the contemporary work- relations, criticizing two false contemporary evidences: that labor reduces itself to employment; and that it would be superfluous in the present capitalism. The paper indicates a new role performed by the capitalist State, dislocated from the complementary role it plays to the reproduction of the workforce to that of contention of the increasing mass of workers expropriated from rights previously associated by the work contract. The extreme concentration of capitalist property – that of social resources of production – opposed to workers with no rights is exemplified by the company Uber. Besides the absence of rights (unemployment) and the unlimited workdays, there is a direct and international centralization of capitalist command over workers, together with an extreme decentralization of the work process. Finally, it deals with the role of nonprofit corporate entities in the expropriation of rights of increasing masses of workers

Keywords: labor; workers; employment; technology; capital; State; Uber.
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FONTES, V. Capitalismo em tempos de uberização: do emprego ao trabalho. In: Marx e o Marxismo - revista do Niep-Marx, [S.l.], v. 5, n. 8, pp. 45-67, jul. 2017.
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