quinta-feira, 1 de junho de 2023

ARTE REALISTA| Linkedin



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Linkedin (farsa, BRA, 2023), de Bianca Frossard.
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segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Materialismo metafísico



por Henri Lefebvre

Poder-se-á, contudo, apresentar a seguinte objeção: o próprio materialismo é uma metafísica, não do espírito ou da ideia, mas da matéria.

Ele admite uma realidade absoluta; aceita o impensável, o inconcebível, uma “coisa em si”: a matéria situada fora da consciência e da experiência, até mesmo do conhecimento. Como os metafísicos e os místicos, os materialistas saltam no desconhecido, admitindo a existência de algo na outra margem, além dos limites do conhecido. Reconhecendo nossas sensações como a única fonte de nossos conhecimentos, os materialistas não se atêm a sensações efetivamente experimentadas, aos “fenômenos”; admitem a “coisa em si” (expressão kantiana que designa a realidade absoluta), duplicando assim o mundo dos fenômenos através de um mundo absolutamente real e verdadeiro.

Essa crítica atinge um tipo de materialismo hoje ultrapassado: o atomismo, o mecanicismo.

O atomismo de Epicuro e de Lucrécio leva em conta certas propriedades simples dos objetos materiais — a dureza, a elasticidade — e os eleva ao absoluto, definindo através deles uma matéria eterna. Segundo esses dois pensadores, o mundo se forma pela aglomeração instável de pequenos corpos, os átomos, que são os elementos últimos, irredutíveis, simples, do universo material.

Quando o materialismo afirma, com Karl Vogt, que o “o pensamento tem com o cérebro a mesma relação que a bílis com o fígado”; ou, com certas escolas de psicologia, que a consciência é “epifenômeno” sem eficácia e que somos “autômatos conscientes” (Huxley); esse materialismo nega uma parte da realidade e sua história biológica e social; leva ao absoluto um fato fisiológico: a secreção, o reflexo.

O materialismo metafísico envolve-se em contradições. Para explicar como os átomos inertes podem entrar em movimento e se prenderem uns nos outros, os atomistas da antiguidade viram-se forçados a complicar a hipótese, atribuindo aos átomos formas variadas e emprestando-lhes uma força misteriosa capaz de desviá-los dos trajetos verticais e paralelos a que seriam levados pela simples ação do peso (teoria do “clinamen”).

A escola do materialismo “epifenomenista” chega a afirmar que, sem a consciência, os seres humanos — através tão-somente dos seus reflexos e comportamentos automáticos — continuariam a realizar as mesmas ações; e que, mesmo sem consciência, automaticamente, Descartes teria escrito “penso, logo sou”.[1]

A essas sutilezas grosseiras, correspondem as sutilezas igualmente grosseiras do idealismo. Bergson chega a provar (no início de Matière et Mémoire) que o mundo é apenas um conjunto de “imagens” e que o próprio cérebro não é mais que uma “imagem” — embora, na verdade, uma imagem “privilegiada”. Afirmar que o cérebro é condição do pensamento, diz Bergson[2], significaria que “a parte é o todo”.

Parece até que, quando um traumatismo atinge gravemente ou destrói o cérebro de um homem, é apenas uma pequena parte de suas “imagens” que desaparece!

O idealismo contemporâneo, notadamente com Bergson, obstina-se em replicar o materialismo que:
... temos certeza imediata apenas da ideia, seja da ideia do pensamento ou das coisas corporais. Mas... a ideia das coisas corporais não pode por si mesma atingir um objeto que, caso exista, está além dela e cuja existência, por conseguinte, é um problema.[3]
Essa metafísica idealista corresponde a uma afirmação — e a uma “experiência” — do caráter subjetivo da consciência, concebida como um “eu” fechado em si mesmo; ora, mostramos como esse “eu” não é mais que o “eu” do intelectual separado da vida prática, efetivamente fechado em si mesmo. O idealismo leva ao absoluto uma pequena experiência humana muito suspeita, ou seja, a consciência puramente subjetiva.

O materialismo vulgar responde negando o “eu”, a consciência, a atividade humana; levando ao absoluto constatações de detalhe (por exemplo, os reflexos), sai desse círculo vicioso da consciência, mas para renunciar à consciência, que, na opinião dele, continua a ser um círculo vicioso!

Por essas razões, tal materialismo conserva-se brutalmente “mecanicista”; aplica aos processos da natureza química e orgânica tão-somente os métodos de exploração e explicação mecânicos. Assim, leva em consideração apenas as propriedades mais elementares — e, portanto num certo sentido, as mais abstratas — da natureza material. Negligencia a variedade inumerável das formas de energia e de potência criadora na natureza; e, além disso, deixa de lado todos os processos históricos, a história humana e mesmo a história da natureza, naquilo que essa tem de complexo e de evolutivo. Por isso, o idealismo conservou até bem pouco tempo uma espécie de monopólio efetivo no que se refere à teoria do pensamento e ao conhecimento da sociedade; tão-só ele — à sua maneira — abordava os problemas respectivos a essas áreas, que eram negligenciados ou tratados superficialmente pelo materialismo mecanicista.

O pensamento oscilava incessantemente entre essas duas variedades de metafísica, o idealismo e o materialismo, desencorajado por seus paradoxos e contradições, indo de um suicídio pela negação idealista de mundo, sem motivo para se fixar, ora seduzido pelo encantamento idealista, ora atraído pelo realismo materialista.

O materialismo moderno ultrapassa resolutamente essas controvérsias estéreis, porque as define como uma posição no interior da metafísica; e ultrapassa resolutamente os “problemas” metafísicos.

A única propriedade atribuível filosoficamente (na teoria do conhecimento) à “matéria” e cuja admissão define o materialismo moderno é o fato de existir fora de nossa consciência, sem nós, antes de nós — qualquer que seja essa existência.

Um “sistema” fechado da natureza, que pretendesse abarcar e definir tudo, notadamente a “matéria”, é incompatível com esta lei: o conhecimento humano progride da ignorância à ciência. Um sistema desse tipo, pretendendo fechar o saber, paralisa o trabalho da ciência. Ora, a ciência da natureza — e somente ela — descobre pouco a pouco o que é esse existência “material”, essa realidade objetiva; e a descobre progressivamente: certas descobertas inauguram períodos novos do saber e nos obrigam a revisar todas as nossas velhas ideias. Quaisquer que sejam as transformações da ciência da natureza, mantém-se o fato de que ela conhece uma natureza!

Cada época deve esforçar-se por organizar, sistematizar numa “síntese”, o conjunto dos conhecimentos sobre a natureza. Mas nenhuma dessas sínteses pode se pretender definitiva.

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Notas:
[1] Godfernaux, em Revue Philosophique, 1904.
[2] Energie spirituelle, À propos du “Parallelisme psychophysique”, pp. 202-223.
[3] Delbos, La Philosophie Française, p. 35.
LEFEBVRE, H. Lógica formal. Lógica dialética. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 65-67.
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