quarta-feira, 16 de agosto de 2017

ARTE REALISTA| God bless you


Sinopsis: Gabriel es conducido hacia su irremediable destino.
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God bless you (thriller, ESP, 2007), de Mario Lizondo.
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sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Berkeley e Hume: o movimento de decadência do empirismo



por Paulo Ayres

Em outros casos, porém, pode-se falar efetivamente de uma continuidade real. Penso aqui na relação orgânica que existe, por exemplo, entre Berkeley e Hume e o neopositivismo empiriocriticista [...]. Mas tais casos não alteram a justeza de nossa periodização; quando se estabelece uma relação desse tipo, a análise atenta demonstra que o filósofo assimilado não pertencia à tradição progressista, ou seja, desempenhava já em seu tempo um papel reacionário diante da corrente dominante.
(Carlos Nelson Coutinho)

O materialismo no empirismo britânico

Acompanhando o processo gradual e plurissecular da transição do mundo feudal para o mundo burguês, o empirismo, em sintonia com as revoluções científicas – necessidades postas justamente por esse processo de passagem de modos de produção e de formas de sociabilidade –, coloca o materialismo no palco da batalha das ideias de uma maneira relevante como não acontecia desde o tempo dos pré-socráticos[1].

Essa gnosiologia moderna não se restringiu ao território britânico, mas foi lá que se filiou como a sua pátria por excelência, apresentando figuras revolucionárias na área do conhecimento, com tendências materialistas em algum grau. O desbravador F. Bacon, com sua teoria dos ídolos, é muito maior que o título de pai do método indutivo. Newton revolucionava os estudos científicos do mundo físico, unindo matemática e experimentação. Hobbes cria um abrangente sistema materialista que engloba natureza e sociedade. E Locke desenvolve detalhadamente o empirismo britânico e, ao mesmo tempo, expõe as suas limitações dualistas.

Todavia, em plena época do tratado que gera o Reino Unido (1707), no século que veria o início da Revolução Industrial na sua reta final, uma linha regressiva[2] toma forma naquelas terras, na esteira das limitações empiristas expostas anteriormente: o empirismo extremo de George Berkeley (1685-1753) e de David Hume (1711-1776).

Berkeley: o empirismo extremo se apresenta como idealismo

Se o empirismo trouxe consigo a ontologia materialista para debater de igual para igual com o idealismo na Era Moderna, é, portanto, uma ironia histórica que o empirismo na sua versão mais extrema, destacadamente Berkeley e Hume, entre na via antimaterialista do idealismo e do ceticismo, respectivamente.

Tido como filósofo extremamente exótico, o bispo Berkeley encontra o caminho do idealismo ao ir mais além do que a centralidade da empiria do empirismo tradicional e propor a totalização reducionista da empiria, a identidade entre sensação e objeto. E se tudo o que existe na realidade são experiências e percepções, então não faz sentido a noção de uma substância essencial não captada pela sensibilidade. Com isso, ele questiona toda a história da filosofia como uma perda de tempo descolada da realidade por ir além dos dados empíricos[3]. Sua filosofia é apresentada como o ponto em que senso comum prevalece sobre as especulações[4]. Mesmo recorrendo a Deus como base e explicação para fugir do solipsismo e para realizar a fundamental diferenciação entre ideias fictícias e adventícias (ou melhor, entre experiências enganosas e não enganosas), ao se fechar na mais pura elevação da empiria como centro do conhecimento, Berkeley ergue o seu incomum e “escandaloso[5]” edifício teórico, se cercando do grau mais básico de conhecimento (a empiria), deduzindo daí uma rede “intersubjetiva” de caráter teológico-cosmológico para criar o sistema ontológico mais direto[6].

O “ser é ser percebido” (esse est percepi) leva a conclusões que, espíritos mais realistas dirão, com razão, são absurdas, pouco sustentáveis, mas o caráter paradoxal é que tal edifício filosófico berkeleyano é firme nas suas fantasias epistemológicas, como uma fortificação subjetivista pronta para receber os mais diversos tipos de ataques, embora a razão nos mostre a imagem isolada e frágil dela[7]. Eis o aspecto irônico da trajetória do empirismo, perdendo a sua faceta materialista ao ir ao extremo de suas possibilidades.

O ceticismo mitigado de Hume e a cientificidade manipulatória


Como estamos tratando de certas ironias vistas post festum em desdobramentos históricos contraditórios, o principal herdeiro da gnosiologia do eclesiástico Berkeley é o iluminista antitradicionalista Hume. É ele que conduz o empirismo extremo para a via que o bispo irlandês tanto procurou evitar: o ceticismo. Não um ceticismo a la Pirro, é claro, mas um moderno ceticismo mitigado; isto é, o agnosticismo[8].

É preciso essa contextualização histórica, pois a realidade é sempre mais complexa que meros esquematismos classificatórios e o liberal Hume, intelectual notório do primeiro século do Reino Unido, foi um irônico e perspicaz combatente da visão de mundo cristã-feudal e possui textos sobre economia política, história da Inglaterra, filosofia moral, filosofia política etc. Mas é justamente naquilo que o fez entrar para a posteridade, a sua exótica gnosiologia, que reside o seu problema. E, de início, já é necessário declarar que tal teoria do conhecimento é tão “escandalosa” quanto a de Berkeley[9].

O empirismo extremo humeano não tem medo de ir diretamente às consequências drásticas da radicalidade dessa linhagem filosófica: o total divórcio entre ciência e ontologia, adotando a postura cética quanto à possibilidade de formular uma concepção ontológica da realidade objetiva:

Toda crença numa questão de fato ou de existência real deriva de algum objeto presente à memória ou aos sentidos, e de uma conjunção habitual entre esse objeto e algum outro. Ou, em outras palavras: após descobrir, pela observação de muitos exemplos, que duas espécies de objetos, como a chama e o calor, a neve e o frio, aparecem sempre ligadas, se a chama ou a neve se apresenta novamente aos sentidos, a mente é levada pelo hábito a esperar o calor ou o frio e a acreditar que tal qualidade realmente existe e se manifestará a quem lhe chegar mais perto (HUME, 1980, p. 153).

Essa negação da causalidade objetiva é o resultado que a totalização da empiria sofre na letra de Hume, que, partindo do problema da indução e das conexões entre ideias, é levado a inferir que a própria relação de causa e efeito é produto a posteriori do aparelho cognitivo. Contudo, essa é apenas a conclusão estranha em que chega a sua gnosiologia. No caminho até aí, os pressupostos – que já haviam sido colocados por Berkeley –, abraçam o ceticismo ao se negar fazer a manobra ontológica que o pai do empirismo extremo havia feito (a identidade entre a gnosiologia empirista e a ontologia). E se formos observar mais de perto, o ponto de partida que sustentam as epistemologias agnósticas (seja a versão empirista de Hume ou, posteriormente, a criticista de Kant) é sempre uma conceituação de empiria que realiza uma quebra com a realidade objetiva. No filósofo escocês, a divisão entre ideias e impressões deixa as primeiras como ecos pretéritos, “impressões menos vivazes[10]“ e “cópias de nossas impressões[11]”. Se há coisas inatas (naturais), ironiza Hume pensando no debate Descartes-Locke, são as impressões e não as ideias[12].

Com esse rígido “princípio geral” em que as ideias são meras vibrações atrasadas vindas das impressões e percepções mais fortes, Hume se depara com as questões relativas à associação de ideias distintas que montam as cadeias de raciocínios. Há, para ele, apenas três formas de conexão ideal – a semelhança, a contiguidade de tempo ou lugar e a causalidade – e as três são frutos das operações mentais do ilhado sujeito do conhecimento e não dizem respeito às questões de fato (como ele denomina o conhecimento diretamente empírico). Há um fosso aí entre a razão e a empiria, entre o passado e o presente, entre causa e efeito, entre a realidade objetiva e a reprodução mental dela.

Hume nega a visão metafísica, binária, rígida em que “ou isso ou aquilo” para descartar o posicionamento sobre os pares antinômicos necessidade-liberdade, causalidade-acaso; mas faz isso saindo pela porta dos fundos: a abstenção ontológica. Mais um alimento para o seu ceticismo, tal como a explicitação do problema da indução[13]. Abstenção ontológica essa que nunca é completa nesse formalismo científico e deixa implícita uma ontologia metafísica[14].

A expressão “jogar o bebê fora com a água do banho” diz muito sobre a maioria das tentativas de descartar a metafísica. Concebe-se uma identidade total entre pesquisa ontológica e tradição metafísica e, na justificável busca de se livrar desta última, cancela-se a primeira. Hume é apenas um dos inúmeros pensadores que escolhem essa via unilateral e, por seu pioneirismo e ênfase empirista, se destaca na operação de empobrecimento da cientifidade[15].

E essa miséria da racionalidade formal, aquela de caráter manipulatório, objetivista e apologético da ordem capitalista vigente, além disso, deixa a lacuna para que muitas metafísicas mistificadoras coexistam com ela, de maneira imbricada:
 
O que, em sua época, o cardeal Belarmino demandou da ciência e da filosofia, sobretudo da natureza, está hoje amplamente realizado. A Igreja conseguiu, naquela época, coagir Galileu à retratação de suas ideias, mas não pode deter a marcha triunfal da ontologia terrenalmente orientada, cientificamente fundada; essa ontologia minou totalmente, de modo irrecuperável, a ontologia bíblico-cristã. O devanescimento, por nós descrito, do senso de realidade no cotidiano social da manipulação universal, após um desenvolvimento que durou séculos, conduziu os princípios do cardeal Belarmino a uma vitória, talvez provisória, mas, por ora, mais completa do que foi possível para os contemporâneos de Galileu, a saber: a capitulação da filosofia da natureza às exigências de uma manipulação antiontológica. Naturalmente, o que se salvou, mesmo para as grandes massas adeptas de alguma fé, não é mais a antiga imagem que a Igreja tinha da realidade, mas a necessidade religiosa nua e abstrata de sujeitos completamente manipulados. [...]

O neopositivismo [e, em certa medida. toda a tradição do racionalismo formal] passa então a cumprir a antiga exigência numa nova situação, com novos meios: ele propõe limitar o progresso ao que pode ser manipulado em termos estritamente técnicos, conservando a estrutura social que constitui o fundamento da técnica (LUKÁCS, 2012, p. 125-127).

Por fim, em meio a observações de determinadas ironias do desdobramento histórico, mais uma para complementar a curiosa linhagem do empirismo britânico que se torna antimaterialista: o iluminista Hume é, mesmo involuntariamente, o destacado precursor do projeto religioso do cardeal Belarmino de empobrecer a ciência e a filosofia da natureza para deixar o caminho livre para que as diversas ontologias religiosas se ajustem nas lacunas do cotidiano da sociabilidade burguesa, agora consolidada na sua fase monopolista e intensamente reificadora e manipulatória.

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Notas:
[0] Epígrafe cf. Coutinho, 2010, p. 24-25. Este trabalho – apresentado na disciplina de História da Filosofia Moderna I, da professora Patricia Coradim, Filosofia, Universidade Estadual de Maringá (UEM), 2017 – em vias de melhor lapidação, tem como finalidade apresentar a corrente do empirismo extremo desenvolvido no Reino Unido a partir do século XVIII – como um episódio regressivo na história desta tradição epistemológica. Iniciado com G. Berkeley e tendo a sua maior repercussão com D. Hume, tal empirismo opera numa drástica redução das ambições filosófico-científicas. Em particular, pretende-se enfatizar como o chamado ceticismo mitigado de Hume é um prelúdio das tendências da tradição positivista e seu padrão formal de cientificidade.
[1] “A filosofia de Epicuro é a única que interrompe essa tendência evolutiva [de ontologias dualistas]. Nela, um materialismo inescrupulosamente crítico destrói toda ontologia de dois mundos”. No entanto “o epicurismo permanece completamente isolado e passa a ser difamado, de modo contínuo, como hedonismo vulgar” (LUKÁCS, 2012, p. 34-35).
[2] Enquanto isso, na contramão dessa linhagem subjetivista, na “antiquada” Itália, o empirismo apresenta uma configuração revolucionária na gnosiologia sui generis de G. Vico. Tal leitura sobre o pensador napolitano foi apresentada no trabalho da disciplina Filosofia da História, do professor Vladimir Chaves dos Santos.
[3] “Entre os homens prevalece a opinião singular de que as casas, montanhas, rios, todos os objetos sensíveis têm uma existência natural ou real, distinta da sua perceptilidade pelo espírito. [...] todos os corpos de que se compõem a poderosa máquina do mundo não subsistem sem um espírito, e o seu ser é serem percebidas ou conhecidas” (BERKELEY, 1980, p. 13-14).
[4] Esse título é questionável em dois aspectos: primeiramente, o fato óbvio de que no senso comum prevalece uma visão prático-cotidiana que concebe que a realidade é muito maior que os dados empíricos; e, em segundo lugar, a concepção de mundo mais básica de todas revela um materialismo espontâneo. Cf. Lukács, 2012, p. 30-33).
[5] “Kant já mencionara ser um ‘escândalo da filosófia’ em Berkeley o fato de que a existência fora de nós era admitida meramente pela fé” (ibidem, p. 54).
[6] A intenção progressista de Berkeley em buscar um sistema filosófico monista, superando o velho dualismo ontológico, é algo louvável; no entanto, o seu conteúdo conservador de atacar a visão de mundo do materialismo britânico é algo indefensável (do ponto de vista do Iluminismo inglês). O resultado deste projeto é ontologicamente bizarro, embora “funcional” do ponto de vista da racionalidade formal que predominaria entre cientificistas a partir do século XIX.
[7] “Sistema extravagante que, me parece, no podria deber su origen más que unos ciegos! Y este sistema, para verguenza del espíritu humano, para verguenza de la filosofia, es el más difícil de combatir, aunque és el más absurdo de todos” (DIDEROT apud LENIN, 1973, p. 11).
[8] Na tradição marxista, primeiramente com Engels, se tornou comum usar o termo agnosticismo para se referir a esta gnosiologia moderna que, através do ceticismo mitigado da cientificidade antiontológica, resulta, a partir do século XIX, na tradição positivista e no neokantismo. Cf. Lenin (1973), Coutinho (2010) e Lukács (2012).
[9] A negação da causalidade objetiva de Hume é um absurdo do mesmo nível que o “ser é ser percebido” e “somos percepções vivendo na mente de Deus” de Berkeley, embora ganhe, estranhamente, ares de maior respeitabilidade científica por muitos devido à sua “laicidade”.
[10] Ibidem, p. 140.
[11] Ibidem, p. 141. Entretanto, logo em seguida, Hume abre espaço para uma exceção sobre as ideias simples ao falar das cores. Mas, ainda sim, ele não altera o seu “princípio geral” (p. 142).
[12] Idem, nota 1.
[13] “Que o sol nascerá amanhã não é uma proposição menos inteligível e não implica mais contradição do que a assertiva contrária, de que o sol nascerá” (idem, p. 144).
[14] “O autoengano em que incorrem aqui o neopositivismo e algumas outras correntes que, com ele, adotam uma orientação exclusivamente gnosiológica, reside no fato de ignorarem por completo a neutralidade ontológica do ser-em-si ante as categorias, diferentemente dimensionadas, do universal, do particular e do singular. Os objetos, as relações etc. são em si ou independentemente de serem singulares, particulares ou universais. [...] É indubitável que a participação do sujeito cognoscente no espelhamento do universal no pensamento é considerável: de fato, o universal não aparece na realidade existente em si de maneira imediata ou isolada, independentemente dos objetos e das relações singulares, sendo portanto necessário obtê-lo mediante a análise de tais objetos, relações etc. Isso, porém, de modo algum suprime o seu ser-em-si ontológico, mas apenas lhe confere características específicas. Não obstante, é dessas circunstâncias que surge a ilusão de que o universal nada mais é que um produto da consciência cognoscente, e não uma categoria objetiva da realidade em si. Tal ilusão induz o neopositivismo a classificar o universal como “elemento” da manipulação subjetivista e a ignorar, como “metafísica”, sua objetividade existente em si” (LUKÁCS, 2012, p. 60).
[15] Eis a miséria da razão. Expressão cunhada por Carlos Nelson Coutinho (2010) para caracterizar a tradição do racionalismo formal (um nome para a ampla e heterogênea tradição positivista). Uma racionalidade empobrecida porque o seu conceito de “razão” se atém ao entendimento/intelecto (Verstand) – e este é apenas uma etapa do processo dialético da razão (Vernunft), onde a etapa ontológica reorganiza e sintetiza universal e historicamente os dados abstraídos na etapa analítica.
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Referências bibliográficas:
BERKELEY, G. Tratado sobre os princípios do conhecimento humano. In: Berkeley/Hume. Trad. Antônio Sérgio. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ªed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
HUME, D. Investigação sobre o entendimento humano. In: Berkeley/Hume. Trad. Leonel Vallandro. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
______. Ensaios morais, politicos e literários. In: Berkeley/Hume. Trad. João Paulo Gomes Monteiro e Armando Mora D’Oliveira. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
LENIN, V. L. Materialismo y empiriocriticismo. In: Obras escogidas, tomo IV (edição castelhana). Moscou: Progreso, 1973,
LUKÁCS, G. Para uma ontologia do ser social I. Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012.
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