quarta-feira, 3 de maio de 2017

Trechos sobre o fetiche da lógica formal



Lógica de classe?

A teoria lógica das classes (classificação das proposições ou hierarquização das coisas) não pode ser identificada com a teoria social e política das classes. Não se trata do mesmo nível de realidade, de reflexão, de elaboração conceitual. Embora haja conexão e embora a teoria das classes — socio-logicamente — comporte uma “lógica social”.

É possível, usando rigorosamente os termos, falar de lógica de classe”? Não. Se se concebe a lógica como elemento transparente e vazio, inerente a todo conjunto de pensamentos encadeado coerentemente e dotado de conteúdo, então a lógica é neutra”. Qualquer "alguém” acolhido entre as classes médias, pode raciocinar ou desatinar, discorrer de modo incoerente ou correto; talvez esse alguém” desatine mais facilmente e mais frequentemente que um proletário habituado a uma prática estrita em locais definidos, ou que um "intelectual” conhecedor tanto da lógica quanto da retórica. Mas esse alguém”, se raciocina corretamente, terá de encadear logicamente palavras e conceitos. A lógica serve a todas as classes (assim como o faz a língua). Todavia, ela só é neutra enquanto é vazia; e na medida em que, implicando a possibilidade de pensar, não seja um pensamento. Nenhum pensamento, nenhuma ideia, nenhuma reflexão” que tenham objeto e conteúdo podem ser completamente neutros. Nem mesmo as matemáticas! Elas não são neutras quando estão a serviço, quando entram na prática social, quando se prestam a uma pedagogia que se dirige a determinadas pessoas e não a outras, etc. Todo pensamento tem um conteúdo, um objeto. Ao mesmo tempo, é uma vontade, uma escola. Existe alguma proposição que não implique responsabilidade? Não existe. Quem pensa inocentemente? Ninguém.

Henri Lefebvre, Lógica formal. Lógica dialética.
 Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 29-30.


A homogeneização da realidade heterogênea

A lógica é um dos mais importantes meios homogêneos criados pela práxis e pelo trabalho mental do homem. Não existem nela elementos e relações que não possam e não devam ser reconduzidos — em última instância — a elementos e relações da realidade. Todavia, a eficácia histórica da lógica no desenvolvimento da humanidade repousa no fato de que tais pontos de partida parecem se extinguir no meio homogêneo da lógica; no fato de que esse meio homogêneo parece se condensar num sistema acabado em sua imanência, apoiado sobre si mesmo, cujo caráter sistemático homogêneo forma a base de sua universalidade. Embora não seja possível examinar aqui a fundo as complicadíssimas questões de concordância com a realidade e dos desvios em relação a ela, temos porém de sublinhar como esse caráter sistemático homogêneo provocou frequentemente nos pensadores a ilusão de poder, mediante um sistema bem-acabado do universo do pensamento homogeneizado em termos lógicos, dar respostas, a partir dele, a todas as questões que nascem das relações dos seres humanos com a realidade. Encontramos tendências nesse sentido já em Raimundo Lúlio e na mathesis universalis de Leibniz; elas muito difundidas ainda hoje, pelo neopositivismo, como teorias da manipulação universal, embora atualmente seja negada, como vimos, qualquer referência ontológica. Hegel se distingue de seus predecessores e mais ainda dos defensores contemporâneos de um sistema logicista universal precisamente porque nele a lógica, apesar do predomínio que obtém na determinação do sistema, não constitui o ponto de partida primário; e isso porque Hegel não tem a mínima intenção de chegar a seu sistema universalista apenas desenvolvendo e aperfeiçoando a lógica, a matemática etc. existentes; ao contrário, pretende criar — partindo de ponderações e noções ontológicas — uma lógica radicalmente nova, a lógica dialética, para desse modo alcançar um sistema lógico do ser e do devir no terreno global do ente-em-si. O sujeito-objeto idêntico e a transformação da substância em sujeito são os veículos dessa passagem da totalidade do ontológico para um sistema da lógica.

Já sabemos que a lógica cria um meio homogêneo de pensamento, cuja estrutura deve ser qualitativamente diversa da realidade, que é em si heterogênea; e essa diversidade deve se manifestar, não fosse por outra razão, pelo fato de que as relações num meio homogêneo devem ser constituídas de modo diverso do que seriam em presença de objetos. forças etc. realmente heterogêneos e atuando .uns sobre os outros. Já nos referimos às operações intelectuais que tal fato torna necessárias, como, por exemplo, à necessidade de uma interpretação física etc. dos fenômenos reais que tenham sido expressos em fórmulas matemáticas; nesse caso, é preciso que aquilo que recebeu homogeneização matemática seja novamente aproximado da realidade objetiva, mediante o destaque e a aclaração intelectuais do caráter heterogêneo de seus componentes. (Não é preciso sublinhar que a homogeneização matemática é capaz de revelar importantes aspectos da realidade, que não poderiam ser percebidos de outros modo.) Se o meio homogêneo que serve de fundamento à conexão cognoscitiva possui caráter lógico, então o contraste entre o meio cognoscitivo homogêneo e realidade heterogênea adquire um traço particular, pelo qual um complexo — infinito — de fenômenos heterogêneos entre si e, portanto, não imediatamente sistematizáveis e hierarquizáveis enquanto tais, vai se reproduzir no pensamento como sistema hierárquico homogeneamente acabado.

György Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo: 2012, p. 220-222.

As verdades metafísicas defendidas pelo logicismo

A questão das verdades eternas e absolutas é recolada no primeiro plano da atualidade filosófica, em decorrência dos esforços dos lógicos contemporâneos (husserlianos e empiristas) no sentido de restaurar essas verdades. O empirismo lógico, em particular, insiste sobre a existência de proposições absolutamente verdadeiras (como esta: chovia em Paris no dia 15 de setembro de 1946). Para a dialética, ao contrário, todo enunciado sobre o concreto implica seu oposto.

Engels, como Hegel, insiste sobre a trivialidade dessas pretensas verdades eternas. Elas servem apenas, diz ele, “para uso doméstico. E acrescenta ainda que todas as leis naturais “eternas transformam-se, com o aprofundamento da ciência, em leis históricas. É uma “lei eterna que a água se conserve em estado líquido entre 0 e 100 graus? Para que isso seja  válido,

[...] é preciso, em primeiro lugar, que haja água; e, em segundo, uma temperatura e uma pressão determinadas. Na Lua, não existe água; no Sol, existem apenas os seus elementos; nesses astros, portanto, a lei não tem o menos sentido [...] Toda teoria se transforma numa representação histórica das mudanças ocorridas numa sistema mundial, desde o seu nascimento até o seu declínio; e, por conseguinte, numa história na qual as leis diferentes aparecem em cada grau, ou seja, formas diferentes do mesmo movimento universal; assim, o que se conserva como universalmente válido? O movimento [...]

Todos os esforços dos lógicos modernos no sentido de estabelecer uma lógica das proposições, das implicações, que elimine a contradição e restaure a identidade pura, a imobilidade e a eternidade do verdadeiro, são eliminados pelo movimento do conhecimento real. No empirismo lógico, eles chegam a tentar dissociar a forma lógica das proposições das implicações de qualquer conteúdo, de qualquer “ontologia. É por isso que a lógica dialética pode concordar com a lógica tradicional, a aristotélica, que ao menos se esforçava por apreender (embora metafisicamente) o ser. Os esforços dos lógicos modernos podem ser definidos muito menos pela busca do verdadeiro e do concreto do que por um desejo — radicalizado ao extremo — de eliminar a dialética. Para eles, toda dialética não passa de uma teia de absurdos. Por isso, a discussão entre esses formalistas e os dialéticos supera o quadro da “pura filosofia”. Duas concepções se enfrentam: a do verdadeiro como vazio, abstrato, imóvel, ineficaz, e a da verdade como processo, como totalidade concreta.

[...] “Todavia, um e um fazem sempre dois!, exclama triunfalmente o partidário das verdades eternas. Vamos ver! Na teoria cantoriana dos conjuntos, um (conjunto numerável) + um (outro conjunto numerável) = um (conjunto numerável). E, em certos casos ou sob certos aspectos, o todo é igual à parte.

Henri Lefebvre, Lógica formal. Lógica dialética.
 Trad. Carlos Nelson Coutinho. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983, p. 263-265.

Valor de verdade fora do ser-em-si

Os fatos possuem sua própria lógica — nem sempre formal. [...] Mas quando se leem com atenção os escritos neopositivistas, tarefa nada agradável, encontram-se por vezes passagens que, na aparência, são constitucional, semântica, logicamente — e quaisquer outras belos termos que ainda haja — derivadas e reguladas linguisticamente com exatidão, nas quais, porém, a correção, a falsidade ou a absurdidade dos enunciados mencionados são determinadas exclusivamente desde a realidade existente em si, na qual esses enunciados são corretos, falsos ou absurdos, conforme concordem com o objeto — vá lá, intencional —, mas de toda forma real. Carnap menciona, por exemplo, no parágrafo sobre as funções propositivas, o “signo não saturado “cidade na Alemanha e diz que obtém uma proposição correta quando se a compõe com Hamburgo, uma proposição falsa com Paris ou uma proposição absurda com a Lua. Tudo muito bem, mas o fundamento determinativo dessas funções proposicionais não é o factum brutum — existente em si — de que Hamburgo efetivamente fica na Alemanha etc. ainda que Carnap cuide de evitar qualquer enunciado “metafísico?

Naturalmente, a resposta de rotina do neopositivismo a tal objeção será: o fato de Hamburgo ficar na Alemanha e Paris na França é um fato empírico e nada tem a ver com “metafísica (com ontologia). Por isso, se assim desejar, pode ser manipulado matemática, semanticamente etc., ou traduzido para qualquer “linguagem, sem com isso nem sequer tocar no círculo problemático da "metafísica (da ontologia). O autoengano em que incorrem aqui o neopositivismo e algumas outras correntes que, com ele, adotam uma orientação exclusivamente gnosiológica, reside por ignorarem por completo a neutralidade ontológica do ser-em-si ante as categorias, diferentemente dimensionadas, do universal, do particular e do singular. Os objetos, as relações etc. são em si ou aparecem em espelhamento independentemente de serem singulares, particulares ou universais. [...] Não obstante, é dessas circunstâncias que surge a ilusão de que o universal nada mais é que um produto da consciência cognoscente, e não uma categoria objetiva da realidade existente em si. Tal ilusão induz o neopositivismo a classificar o universal como "elemento da manipulação subjetivista e a ignorar, como “metafísica, sua objetividade existente em si.

Com o singular surge uma ilusão inversa: a de sua imediata datidade. Também aqui os neopositivistas são induzidos a erro por ignorarem a história da filosofia, por desprezarem soberbamente todas as conquistas do passado na doutrina das categorias. Passam ao largo da dialética da imediaticidade e da mediação e, por isso, não compreendem que o singular, apesar de ser em si tanto quanto o universal, não é nem um pouco menos mediado do que este e que, por essa razão, para conhecer o singular se faz necessária uma atividade mental do sujeito, tal como sucede com o universal. [...].

György Lukács, Para uma ontologia do ser social I.
Trad. Carlos Nelson Coutinho, Mario Duayer e Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo: 2012, p. 259-60.

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