quarta-feira, 1 de março de 2017

Do neopositivismo ao estruturalismo


 
por Carlos Nelson Coutinho

O conceito de “estrutura” é a ponte através da qual passa-se do epistemologismo neopositivista à “ontologia” estruturalista. Isso implica, desde logo, a conversão do idealismo subjetivo dos primeiros em uma nova e abstrusa forma de idealismo objetivo. Como vimos, no neopositivismo, a racionalidade e o significado dependem exclusivamente da sintaxe lógica da língua. Além disso, para eles, o estabelecimento dessa sintaxe é um fato “convencional”, arbitrário, que depende de uma decisão puramente subjetiva; ao escolher a sintaxe convencional, escolhemos ao mesmo tempo a racionalidade e os significados, determinando quais as proposições que podemos considerar como “válidas”. Esse “convencionalismo”, claramente idealista subjetivo, desembocaria em Wittgenstein numa explícita defesa do solipsismo:
 
O que o solipsismo nomeadamente acha é inteiramente correto, mas isto se mostra em vez de deixar-se dizer. Que o mundo é o meu mundo, isto se mostra porque os limites da linguagem (da linguagem que somente eu compreendo) denotam os limites do meu mundo.[1]

Já analisamos, num contexto anterior, a situação histórica que condicionou essa tendência subjetivista, extremamente agnóstica. O intelecto, incapaz de compreender a realidade contraditória do início do século, refugia-se nos exíguos limites da “linguagem subjetiva”, convertendo o mundo no “mundo” do indivíduo isolado. A relativa estabilização do capitalismo contemporâneo, a generalização social dos processos manipulatórios, alimenta a ilusão de que a contraditoriedade foi eliminada do real (ou pode ser tratada como simples “resíduo”). Nessas condições, a corrente positivista volta a apresentar pretensões “ontológicas”: o conjunto de regras formais que os neopositivistas lógicos situavam no sujeito aparece agora, no estruturalismo, como uma “coisa” autônoma, superior e independente dos homens. Eis como Lévi-Strauss formula esse “novo” idealismo objetivo:
 
Duvido mesmo que possamos apreender teoricamente, no devir, um momento em que o homem tenha começado a pensar; e eu estaria mais inclinado a admitir que o pensamento começa antes dos homens.[2]

A categoria que serve para fundar essa pseudo-objetividade idealista é a do “inconsciente”. Lévi-Strauss acredita que os fatos conscientes são apenas fenômenos superficiais, em contraste com a “essência” (“estrutura”), constituída pelo fatos “inconscientes”. “A passagem do consciente para o inconsciente — diz ele — é acompanhada por um progresso do especial para o geral”.[3] E, ao definir esse “inconsciente” coisificado, transformado em estrutura mental subjacente às várias instituições humanas, Lévi-Strauss apresenta-o com a face da “sintaxe lógica” dos neopositivistas:
A atividade inconsciente do espírito consiste em impor formas a uma conteúdo (...); as formas são fundamentalmente as mesmas para todos os espíritos, antigos e modernos, primitivos e civilizados — como o estudo da função simbólica, tal como se exprime na linguagem, o mostra de maneira tão notável (...). O inconsciente está sempre vazio (...): limita-se a impor leis estruturais, que esgotam sua realidade, a elementos inarticulados que provêm de outra parte (...). Essas estruturas não são somente as mesmas para todos, e para todas as matérias às quais se aplica, mas elas são pouco numerosas.[4]
O “inconsciente” é o fetiche das regras intelectivas que são próprias da práxis manipulatória. Se o leitor se recorda de nossa definição de manipulação, poderá observar claramente esse fato ao ver o modo pelo qual Lucien Sebag descreve as relações entre o “intelecto” e a realidade:

Ele [o intelecto] encontra na realidade que lhe é exterior a matéria a partir da qual se construirá; submete essa matéria a um conjunto de esquemas, que supõem a diferenciação em unidades constitutivas (...), sua colocação em sistema (...) e o enunciado de um certo número de regras que permitem sua combinação. [Efetua-se] uma combinatória entre as “partes” do real assim isoladas. Quer se trate do mito, da filosofia, da lógica ou da ciência, são sempre essas mesmas operações fundamentais que são postas em ação.[5]

Identificando razão e intelecto, o estruturalismo — ao pretender abarcar “cientificamente” a realidade social — não pode deixar de reduzir a totalidade da atividade humana à pura manipulação.

Por meio de uma análise do conceito de “inconsciente”, poderemos observar com clareza essa arbitrária redução. É indiscutível que os fatos sociais são frequentemente inconscientes, isto é, processam-se sem que a consciência os apreenda em todas as suas determinações. Mas qual é a natureza real dessa “inconsciência”? É bastante significativo quem na tentativa de elucidá-la, Lukács tome como ponte de partida precisamente a evolução da linguagem, que ele considera algo inconsciente. Mas imediatamente nos adverte contra a fetichização desse conceito:

O que hoje muito frequentemente é chamado de inconsciente costuma desenvolver-se, visto psicologicamente, de um modo consciente, ainda que com falsa consciência, isto é, de tal modo que — à consciência subjetiva do processo imediato — corresponde uma consciência objetivamente falsa do fato real, do verdadeiro alcance do imediata e praticamente realizado.[6]

Quando, por exemplo, um operário vende sua força de trabalho, realiza essa operação de modo consciente, mas não tem necessariamente uma justa consciência do alcance do processo, ou seja, da exploração a que será submetido. A causa desse fato não reside em nenhum “inconsciente coletivo”, mas sim na natureza ontológico-social da práxis humana. Sendo essa uma atividade coletiva, o resultado global das várias ações individuais conscientes aparece sempre como algo diverso da intenção subjetiva  dos indivíduos. A fetichização capitalista interfere aqui, impedindo que o indivíduo eleve à consciência essa totalidade objetiva que se reproduz espontaneamente. Mas não se trata de um limite ontológico: se superar a imediaticidade do fetichismo, o operário do nosso exemplo pode tomar consciência da exploração a que está sendo submetido. O “inconsciente”, portanto, é sempre uma falsa consciência, uma ausência de consciência verdadeira, jamais uma entidade objetiva, uma positividade em si, como supõe Lévi-Strauss. Entre inconsciência e consciência há um processo dialético, uma permanente passagem, não uma barreira eterna e intransponível.

Por outro lado, um práxis constantemente repetida, ainda que originariamente consciente, pode paulatinamente converter-se em algo inconsciente.

Esse tipo de inconsciente a que chamamos “costume” ou “hábito— observa ainda Lukács — não é de modo algum uma coisa inata, mas produto de uma práxis social ampla e, no mais das vezes, sistemática.[7]

Como vimos, é precisamente um tal hábito — fixado através de reflexos condicionados — que explica a inconsciência dos fenômenos linguísticos, das regras do intelecto e, em geral, de todas as formas de manipulação. Ao explicar a gênese da categoria intelectiva do silogismo, Lenin observou: “A prática humana repetida milhões de vezes imprime na consciência figuras lógicas”.[8] Desconhecendo a gênese histórico-ontológica dos processos, Lévi-Strauss converte essas regras fixadas pelo hábito e tornadas inconscientes num a priori idealista. Nesse ponto, mais uma vez, sua posição positivista converte-se numa apologia das formas superficiais e espontâneas da práxis social, já que eleva a manipulação capitalista — que só é eficaz quando aplicada a homens “inconscientes” — a algo inato e eterno. A fetichização do inconsciente aparece como um obstáculo à tomada de consciência da alienação pelo homem dos nossos dias.

No conceito de “estrutura”, portanto, observamos não apenas uma redução da razão ao intelecto formal, mas igualmente uma subordinação idealista da práxis humana — da realidade social — às regras “espirituais” do intelecto manipulatório. Sebag, que sempre explicita sua posições em clara polêmica com o marxismo, afirma:

Essa práxis constitutiva que Marx situava na origem do mundo humano, lugar real em função do qual dissolver-se-iam a ambiguidade e a heterogeneidade da ação e da linguagem, recebe ela mesmo, agora, sua significação última de um “alhures” do qual ela jamais poderá ser o correlato (...). Uma tal perspectiva ilumina as categorias intelectivas que são colocadas em atuação pelas sociedades e que regulam tanto a organização dos diferentes “discursosquanto aquela do próprio real.[9]

De acordo com essa concepção, Lévi-Strauss dissolve idealisticamente instituições sociais reais, como o totemismo, numa lógica mistificada que tudo abarca. A sociologia, em sua opinião, deve ser substituída por uma “sócio-lógica”. E, negando claramente a origem histórico-prática dessa lógica, afirma:

Não aceitamos a tese da origem social do pensamento lógico. Ainda que exista indubitavelmente uma relação dialética entre a estrutura social e o sistema de categorias, o segundo não é um efeito ou resultado da primeira.[10]

Lévi-Strauss “esquece-se” de dizer aqui o que entende por “relação dialética”; seria justo, isso sim, falar numa relação de manipulação, na qual a “estrutura social” aparece como matéria-prima a ser manipulada pelo “sistema de categorias”.

A partir desses postulados teóricos, o estruturalismo rapidamente desembocaria numa posição explicitamente anti-humanista. Também aqui estamos diante de uma inovação com relação ao neopositivismo lógico; afastando do domínio da ciência qualquer problema ontológico, o neopositivismo considerava a questão do humanismo um “pseudoproblema”, uma incognoscível questão “metafísica”; mas, com base nesse agnosticismo — abstinha-se de qualquer resposta, positiva ou negativa, às questões propostas pelo humanismo. Indiretamente assim, abandonava tais questões ao irracionalismo, que as dissolvia numa mística subjetivista. A pretensão estruturalista de fundar uma “concepção de mundo” (ou, em termo filosóficos, suas pretensões “ontológicas”) obriga-o a tomar posição diante dos problemas do humanismo. Nesse ponto, ocorre aparentemente uma divergência entre os seguidores dessa orientação filosófica. Lévi-Strauss, por exemplo, assume uma posição ambígua, detendo-se frequentemente ante as consequências últimas do seu próprio pensamento. Embora suas posições teóricas conduzam claramente à dissolução do humanismo (ao negarem o papel criador da ação humana em troca de uma primazia das estruturas), Lévi-Strauss acredita que a antropologia estrutural seja a “inspiradora de um novo humanismo”[11]. Essa crença — que certamente honra a consciência moral de Lévi-Strauss — é todavia um puro desejo verbal, sem nenhuma repercussão em sua concepção do mundo. No próximo capítulo, teremos a ocasião de analisar amplamente o caráter puramente marginal desse “humanismo” lévi-straussiano. Mas, desde já, podemos antecipar um exemplo: diante do problema do progresso humano, questão basilar do humanismo, Lévi-Strauss assume uma posição claramente agnóstica, positivista, objetivamente anti-humanista. “Afinal, me é inteiramente indiferente” — diz ele — “o fato de que o espírito humano melhore ou não. O que me interessa é saber como funciona, eis tudo”[12]. Sempre que vem à tona uma questão desse gênero, Lévi-Strauss reage com um positivismo similar.

Nos estruturalistas posteriores (que quase sempre rejeitam sua inclusão nessa corrente), tais escrúpulos são inteiramente afastados. A morte do homem (Foucault) e o anti-humanismo teórico (Althusser) aparecem como elementos orgânicos da nova “concepção de mundo”. E, ao afirmarem seu anti-humanismo, autores como Foucault ou Derrida fazem questão de sublinhar que estão apenas levando às últimas instâncias os ensinamentos de Lévi-Strauss. Jacques Derrida, por exemplo, partindo da afirmação lévi-straussiana de que a “estrutura não tem centro” (ou seja, não pode ser explicada a partir do telos ou da práxis humana), afirma a supremacia do “jogo” (dos signos formais) sobre o significado (o conteúdo). E continua:

Ora, se Lévi-Strauss, melhor do que ninguém, pôs em evidência o jogo da repetição e a repetição do jogo, não se deixa de perceber nele uma espécie de ética da presença, da nostalgia da origem, da inocência arcaica e natural. (...) Essa é a face triste, negativa, nostálgica, do pensamento do jogo, cuja face positiva seria a afirmação nietzscheana: afirmação de um mundo de signos sem culpa, sem verdade, sem origem. (...) Essa posição, que já não está voltada para a origem, afirma o jogo e tenta passar para além do homem e do humanismo; e o nome do homem é o nome desse ser que, através da história da metafísica ou da ontoteologia, quer dizer, de toda a sua história [sic!] sonhou a presença plena, o fundamento tranquilizados, a origem e o fim do jogo.[13]

Assim, a longa luta do homem para superar a alienação, para se reapropriar da objetividade social, afirmando-se teórica e praticamente como o “centro” e fundamento de suas objetivações, aparece na versão de Derrida como um “sonho” insensato; a história da humanidade identifica-se com a “história da metafísica”, ou seja, converte-se na trajetória de um completo equívoco. A realidade, para Derrida, reduz-se a um “jogo” permanente, absurdo e irracional, do qual podemos compreender apenas as regras mas não a origem e a finalidade. O homem é tão somente uma peça desse jogo absurdo. E não é casual que Nietzsche seja invocado por Derrida: a “miséria da razão” em que se apoia sua abstrusa teoria converte-se facilmente num aberto irracionalismo, num claro anti-humanismo.

Michel Foucault — cujas posições analisaremos mais detalhadamente num outro capítulo — radicaliza ainda mais, se isso é possível, a afirmação positiva do anti-humanismo. Como Lévi-Strauss, Foucault reduz a vida humana a um objeto manipulado por “estruturas” inconscientes:

Em todas as épocas, a maneira como as pessoas refletem, escrevem, julgam, falam, até mesmo na rua, as conversas e escritos cotidianos, inclusive a maneira como as pessoas experimentam as coisas, como sua sensibilidade reage, todo o seu comportamento é dirigido por uma estrutura teórica, por um sistema.[14]

Consequente com essa “ontologia” da manipulação, exclui decididamente do âmbito da razão e da ciência todas as questões do humanismo:

O humanismo finge resolver problemas que não pode formular (...) os problemas das relações entre o homem e o mundo, o problema da realidade, o problema da criação artística, da felicidade, todas essas obsessões que não merecem absolutamente ser problemas teóricos (...). Nosso sistema não se ocupa disso de modo algum".[15]

Mas ainda não chegamos ao pior: “Nossa tarefa atual — diz Foucault — é libertarmo-nos definitivamente do humanismo; nesse sentido, nosso trabalho é um trabalho político”[16]. Foucault não indica o modo pelo qual deva ser realizada essa liquidação política do humanismo. Mas a frase evidencia com clareza — e, nesse sentido, é uma advertência para todos os intelectuais responsáveis — que a posição “anti-humanista” do estruturalismo não é uma simples questão especulativa.

Em suma, como podemos observar, a passagem do neopositivismo ao estruturalismo — da epistemologia pura à ontologia epistemologizada — não representa uma aquisição de novos campos para a razão humana. Todos os elementos ontológicos da realidade considerados pelo neopositivismo como incognoscíveis, como pseudoproblemas metafísicos, continuam excluídos da “razão” estruturalista. Ao explícito agnosticismo dos primeiros, substitui-se agora um “agnosticismo envergonhado”, que oculta sua face por trás de uma falaciosa ideologia cientificista. À “miséria da razão”, que marca o movimento neopositivista, vem juntar-se uma “miséria do objeto”, um empobrecimento radical do pensamento e da vida humana. Os limites da “razão” estruturalista são os limites da consciência fetichizada de nosso tempo.

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Notas:
[1] L. Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, op. cit., 5.62, p. 111.
[2] C. Lévi-Stráuss, “Respostas a algumas questões”. In: Vários autores, O estruturalismo de Lévi-Strauss. Petrópolis, Vozes, 1968, p. 213.
[3] C. Lévi-Strauss, Antropologia estrutural, op. cit., p. 37.
[4] Ibid., p. 37 e 234-235.
[5] L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 166.
[6] G. Lukács, Estética I: La peculiaridad de lo estético. Barcelona-México, Grijalbo, 1966, v.1, p. 95.
[7] Ibid., p. 96.
[8] V. I. Lenin, Cahiers philosophiques. Paris. Editions Socialies, 1955, p. 178.
[9] L. Sebag, Marxisme et structuralisme, op. cit., p. 121 e 133. Grifo meu.
[10] C. Lévi-Stráuss, O pensamento selvagem, op.cit., p. 247.
[11] C. Lévi-Stráuss, “Introdução à obra de Marcel Mauss”. In: Estruturalismo. Antologia de textos teóricos, op. cit., p. 167.
[12] C. Lévi-Stráuss, “Respostas a algumas questões”, op. cit., p. 215.
[13] J. Derrida, “A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas”. In: Estruralismo. Antologia de textos teóricos, op. cit., p. 121-122.
[14] M. Foucault, “Entrevista à Quinzaine Littéraire”, op. cit., p. 31-32.
[15] Ibid., p. 33.
[16] Ibid.
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COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 99-107.
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