terça-feira, 3 de novembro de 2015

ARTE REALISTA| La prueba


Sinopsis: El nuevo jefe de Julia exige una hora extra peculiar.
= = =
La prueba (folletín, PAR, 2015), de Celia Cabral y Estafania Acosta.
= = =

terça-feira, 11 de agosto de 2015

Nota sobre o agnosticismo


por Paulo Ayres

É comum ver ateus e agnósticos serem tratados como "parceiros" de visão de mundo. Como se um estivesse bem próximo ao outro, e ambos são as expressões de uma modernidade secularizada, contraponto da posição tradicional que passou muito tempo tendo o teísmo ditando as regras de forma autoritária. Nessa perspectiva tão disseminada, ateus e agnósticos estariam na mesma trincheira (vide a organização brasileira Atea, que abrange os dois), garantindo sua sobrevivência diante de um mundo ainda preponderantemente teísta. Nada mais enganoso. Há muitas milhas separando ateísmo e agnosticismo.

E não se trata daquela velha forma de ver as coisas, onde o agnosticismo é o meio-termo, o meio do caminho, entre teísmo e ateísmo. Não é esse o problema. O fato é que o agnosticismo nem cumpre direito essa função, pois se trata, na verdade, de uma posição "alternativa" e não de meio-termo. Ele simplesmente não fica apenas em cima do muro, como nega o conhecimento daqueles que estão em um dos lados do muro.

Pode parecer estranho à primeira vista, mas, do ponto de vista filosófico, teísmo e ateísmo estão mais próximos, apesar de um ser o oposto do outro. Ambos dizem que é possível o conhecimento dos fundamentos mais essenciais da realidade. Teísmo e ateísmo são concepções ontológicas. O agnosticismo é uma postura fundamentalmente antiontológica. Para ele, não é possível conhecermos os fundamentos da realidade objetiva.

Filho do ceticismo, o agnosticismo epistemológico marca presença na filosofia problemática de Hume, com seu empirismo extremo, e acaba influenciando Kant que, apesar de clássico da filosofia, possui esse antiontologismo como um aspecto limitador na sua obra (embora Lenin, de maneira perspicaz, observa que em Kant há uma oscilação implícita entre idealismo e materialismo, pois ele, pelo menos, reconhece a existência essencial da coisa em si).

Deste modo, compreendendo-o como um tipo de "ceticismo tardio", não é exagero concluir que o agnosticismo é uma posição filosoficamente conservadora.

Mas isso não significa que não haja um autêntico meio-termo, um meio do caminho ontológico entre o teísmo e o ateísmo. Sim, há um e se chama panteísmo. Como disse Lukács, na história da filosofia, o panteísmo (com destaque para Bruno, Spinoza e o jovem Schelling) cumpriu uma função de estágio de transição nos últimos séculos, despedindo-se da filosofia da religiosidade tradicional e abrindo caminho para as modernas filosofias ateias. Portanto, assim como no plano histórico-universal da história da filosofia, o panteísmo representa uma passagem, no plano singular da história de vida de um indivíduo, se ele quer passar (ou se estabelecer) no autêntico meio do caminho entre teísmo e ateísmo (caso não lhe convença - ainda - uma das duas posições opostas), é mais sensato se abrigar no panteísmo. E não no engodo (pois um falso meio-termo) chamado agnosticismo.
= = =

sábado, 4 de julho de 2015

ARTE REALISTA| Drama de um cotidiano real


Sinopse: Você nasce, cresce, compra, se reproduz e morre...
= = =
Drama de um cotidiano real (folhetim, BRA, 2011), de Marco T. Alves.
= = =

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A teoria marginalista do valor e a economia política neoclássica


 
por Ernest Mandel

A economia política eclética fracassou, entretanto, em servir, seja aos acadêmicos que continuaram a tentar responder às questões deixadas a eles pelas gerações anteriores, seja à própria burguesia, que constantemente se expunha ao risco de que, partindo da popularização das ideias de Ricardo, os economistas pudessem prosseguir até algum ponto na direção do socialismo (como aconteceu com John Stuart Mill). A fim de neutralizar o “perigo socialista”, sentido mais agudamente a partir da revolução de 1848 e, acima de tudo, da Comuna de Paris (1871), toda a estrutura baseada na teoria do valor-trabalho teve que ser demolida. Essa foi a grande virada da economia política burguesa, rumo à teoria marginal do valor, que estava sendo preparada já em 1855, independentemente, por Hermann Gossen e Richard Jennings, e que culminou nas escolas neoclássicas britânica (Jevons, 1871), vienense (Menger, 1871) e suíça (Walras, 1874).

Comparada com as concepções ecléticas e vulgares, os neoclássicos se distinguiram por um maior rigor metodológico. Como os economistas clássicos, eles tentaram não deixar se explicação nenhum fenômeno econômico, não passando por cima de nenhuma questão, para reunir materiais para a construção de uma estrutura coerente. A natureza apologética dessa estrutura não é vista tanto nas conclusões, e sim na metodologia e nas hipóteses iniciais. O sistema é coerente, mas é divorciado da realidade, a qual ele é incapaz tanto de apreender estatisticamente quanto a fortiori, de explicar as suas leis de desenvolvimento.

De Petty a Ricardo e Marx, toda teoria do valor foi objetiva. Ou seja, o seu ponto de partida era a produção; ou o valor se identificava com o custo de produção ou orbitava em torno dele. A influência da procura sobre o valor, como variável independente, era negada e, mesmo quando era levada indiretamente em consideração, só aparecia como uma função indireta da própria produção, já que todos os rendimentos eram considerados como tendo sido criados na produção. Na verdade, por essa razão, toda a teoria clássica era orientada para uma síntese entre as concepções micro e macroeconômicas, uma síntese que somente Marx se provou capaz de realizar com sucesso.

A escola neoclássica, entretanto, abordava o problema de uma forma totalmente diferente. Era uma escola de pura microeconomia, considerando que o valor poderia e deveria ser determinado para cada mercadoria separadamente. Ela encarava o valor não mais como uma função do custo de produção, e sim como uma função da influência independente da procura sobre o custo de produção. A separação do valor de troca e do valor de uso, o ponto de partida da escola clássica, era questionada. Se declarava, ao contrário, que o valor de troca era essencialmente uma função do valor de uso, da utilidade de uma dada mercadoria.

Mas como essa utilidade poderia ser medida? Aqui, os neoclássicos encontraram uma dificuldade que todos os seus predecessores tinham visto, de Aristóteles a Jean-Baptiste Say, incluindo tanto o monge francês Buridan como o Enciclopedista Condillac. Se perguntarmos a alguém, “Quanto é a utilidade desta faca para você?”, a pessoa vai responder: “Uma utilidade muito grande” ou “Eu a uso muito”, ou “Eu não preciso dela”. Ninguém responde a uma pergunta assim declarando uma quantidade, algum tipo de medida do valor de uso. Resignando-se a não serem capazes de expressar o valor de uso quantitativamente, os marginalistas caíram na expressão quantitativa das necessidades a que o valor de uso precisa atender. Eles elaboraram escalas individuais de necessidades; é por isso que esta escola tem sido descrita, corretamente, como subjetivista, já que o seu ponto de partida é puramente arbitrário, subjetivo. Como disse Rudolf Hilferding, enquanto Marx e os economistas clássicos partem do caráter social do ato de troca, e veem o valor de troca como um elo objetivo entre os proprietários (produtores) de diferentes mercadorias, os marginalistas partem do caráter individual das necessidades, e veem o valor de troca como um elo subjetivo entre o indivíduo e a coisa.

Mesmo assim, a expressão quantitativa das necessidades não é suficiente para superar a dificuldade. Um homem, obviamente, tem mais necessidade de pão e água do que de um diamante. Mesmo assim, o diamante tem um valor de troca mais alto do que o do pão. Um homem tem ainda mais necessidade de ar que, normalmente, não possui valor de troca. É por isso que a teoria neoclássica declara: não é a intensidade da necessidade em si, e sim a intensidade do último fragmento de necessidade não satisfeita (da utilidade marginal) que determina o valor.

Partindo desta ideia geral, a escola neoclássica elaborou uma série de curvas cujos pontos de interseção supostamente mostram as condições de equilíbrio: curvas de oferta e procura, determinando os preços de equilíbrio; curvas de indiferença e de preços, determinando as quantidades de mercadorias procuradas a cada nível particular de rendimento; curvas de custos marginais, determinando para os empresários os níveis de produção que vão garantir os maiores lucros; uma curva de salários e “desutilidade do trabalho”, determinando a procura de emprego; uma curva de taxas de juros oferecidos e lucros esperados, determinando o volume do investimento; uma curva do montante de capital acumulado e da massa de capital-dinheiro disponível, determinando a taxa de juros; e assim por diante. No fim, todo o sistema está em perfeito equilíbrio estático, o próprio “lucro” tendo desaparecido, pelo menos na obra de Walras, já que, em condições de concorrência perfeita, o valor do produto marginal – que determina o valor de toda a produção – se dissolve em capital depreciado, salários, juros e renda.

Aprendemos que “em condições de concorrência, o empresário aumenta o emprego de cada fator de produção até o ponto em que a produtividade marginal deste fator (o produto líquido obtido pela última unidade empregada) é igual ao preço deste fator no Mercado, e ele aumenta a sua produção até o ponto em que o custo marginal do produto (o custo da última unidade) é igual ao preço do produto’.

“Numa situação assim, as satisfações obtidas pelos consumidores são máximas, porque qualquer transferência de um fator de produção resultaria na redução do ‘valor’ criado por este fator. No caso de um trabalhador, por exemplo, ele produz em uma hora, onde ele está trabalhando neste momento, um ‘valor’ igual ao seu salário. Se ele fosse transferido para outro lugar, ele produziria um pouco menos, na verdade, ele seria ‘adicionado’ a um grupo de ‘trabalhadores cuja produtividade marginal seria necessariamente um pouco menor’”.

Eric Roll está certo em criticar a tese mecanicista de Bukhárin, segundo a qual a escola marginalista refletiria os interesses especiais de um novo estrato de rentiers que tinha aparecido no seio da burguesia. Mas Bukhárin estava certo quando ressaltou que a escola marginalista adota o ponto de vista do rentier, ou, mais precisamente, do capitalista que se retirou da esfera empresarial, porque esta escola parte do consumo individual, em vez da produção social, que foi o ponto de partida dos economistas clássicos e de Marx. Não é acidental que os exemplos usados pelos fundadores da escola neoclássica sejam quase todos tirados da produção de luxo.

A natureza especial da escola neoclássica é mais enfatizada ainda pelo fato de que ela foi, durante um longo tempo, incapaz de determinar o valor marginal dos bens de capital. No fim, ela só conseguiu fazer isso introduzindo, com Böhm-Bawerk, a noção de um “percurso indireto” da produção, que se torna cada vez mais intensificado, conforme mais bens de capital entram no processo, um “percurso indireto” que tem que ser “pago”. Ela é, mais ainda, incapaz de explicar como, a partir do confronto entre milhões de “necessidades” individuais, emergem não só preços uniformes como preços que permanecem estáveis por longos períodos, mesmo em condições perfeitas de livre concorrência. Em vez de ser uma explicação de constantes, e da evolução básica da vida econômica, a técnica “marginal” fornece, no máximo, uma explicação para variações efêmeras, de curto prazo. É significativo que, na obra fundamental de Walras, ele parta do exemplo de vendedores e compradores “inclinados a negociarem”, ou seja, de especuladores da bolsa.

Hoje, a maioria dos economistas admite facilmente que o sistema de preços de equilíbrio dos neoclássicos é totalmente divorciado da realidade. Ele não leva em conta o padrão institucional do capitalismo, que torna bem absurda a noção de que os salários são determinados pelo “produto da última unidade de tempo que o trabalhador deseja [!] despender, em vez de utilizar para o lazer”. Ele não leva em conta o caráter dinâmico da concorrência e as perturbações contínuas do equilíbrio, que ela causa. Ele é essencialmente estático, e traz a dinâmica no máximo como um elemento perturbador do equilíbrio, enquanto, na realidade, o equilíbrio é apenas um momento transitório num movimento econômico espasmódico em oscilação incessante. Ele não tem explicação nem para as crises periódicas nem para as estruturais. Levado à sua conclusão lógica, ele até mesmo nega o fenômeno do imperialismo ou, mais precisamente, nega que exista alguma conexão entre o imperialismo e as leis de desenvolvimento do capitalismo.

A teoria neoclássica não é somente divorciada da realidade social como um todo. Ela também é divorciada da realidade prática da vida cotidiana. A teoria do valor-trabalho pode ser demonstrada empiricamente, ainda que somente no sentido de que, em última análise, todos os elementos do custo de produção de uma mercadoria tendem a ser reduzidos a trabalho, e somente trabalho, se formos longe o suficiente na análise. Apesar de todos os ensinamentos da escola neoclássica, os homens de negócios continuam a calcular os seus custos de produção nesta base. E, sempre que eles procuram comparar a produtividade, eles o fazem usando como padrão somente a “quantidade de trabalho despendida”.

* * *
A teoria marginalista do valor e a escola neoclássica baseada nela dominaram o pensamento econômico burguês durante três quartos de século. A sua função objetiva era, sem dúvida, puramente apologética – justificar a ordem capitalista como mais ou menos inevitável; justificar os salários, preços e lucros como o resultado de trocas efetuadas em condições de igualdade. À medida que a expansão capitalista que marcou a segunda metade do século XIX e a primeira década do século XX por si só constituiu um “argumento” muito mais poderoso a favor do capitalismo do que qualquer construção teórica, a burguesia não sentiu necessidade de uma tendência do pensamento econômico além desta escola puramente apologética.

Muitas gerações de economistas, contudo, se mostraram insatisfeitas com as respostas dadas pela escola neoclássica, especialmente aos problemas do investimento (a taxa de juros), do dinheiro (a teoria quantitativa da moeda) e das crises periódicas. E escola neoclássica começou a ceder nos seus pontos fracos, ou seja, as dificuldades que encontrou ao formular uma teoria dinâmica, uma teoria do crescimento, partindo dos dados microeconômicos do valor marginal, e da dificuldade de reconciliar a teoria dos preços da oferta e procura com uma teoria dos preços resultante da quantidade de moeda em circulação.

[Pode-se dizer que a escola marginalista nunca foi capaz de resolver o problema do “valor marginal do dinheiro” e que, por essa razão, ela continuou dualista, combinando uma teoria subjetiva do valor com uma teoria objetiva do dinheiro (por exemplo, a teoria da quantidade). É claro que um aumento do “estoque de moeda” não necessariamente reduz o “valor marginal” desse estoque, como aconteceria no caso de um aumento do estoque de milho, já que o dinheiro pode ser usado para comprar, uma após a outra, mercadorias que correspondem a necessidades diferentes de intensidade igual. O dualismo da teoria pode ser visto se imaginando um aumento do estoque de moeda subitamente causando um aumento dos salários, sem nenhuma mudança no valor marginal das mercadorias envolvidas.

A teoria quantitativa da moeda implica que os preços sobem ou descem, dependendo de se a quantidade de moeda em circulação aumenta ou diminui, em relação a um nível de equilíbrio definido.]

Foi desta forma que a ideia de uma taxa de juros resultante da oferta e procura de capital, uma taxa de juros que sobe até que a procura cesse, porque é excessiva, foi refutada no começo do século, pelo economista sueco Wicksell. Este mostrou que a taxa de juros em equilíbrio é determinada pela relação entre poupança e investimento; e Gunnar Myrdal, um discípulo de Wicksell, foi ainda mais longe, explicando que esta taxa de juros, na verdade, depende do retorno esperado dos investimentos, ou seja, da taxa de lucro, como Marx diz.
 
Enquanto, no século XIX, somente os críticos do capitalismo se preocupavam com o fenômeno das crises, depois do fim do século, Tugan-Baranovsky começou, sob a influência direta de Marx, o estudo empírico das crises periódicas, que levou à modernas teorias do ciclo econômico e do crescimento econômico. Ele se inspirou, além disso, por todos os procedimentos realizados por Marx, como a divisão da produção social em dois setores, a questão da renovação periódica do capital fixo etc. Seguindo Tugan-Baranovsky, Spiethoff, Aftalion, Bounatian, W. C. Mitchell, Schumpeter e outros também se preocuparam em estudar e tentar explicar os dados empíricos das crises. Em 1917, a Universidade de Harvard criou um instituto especial para o estudo das flutuações cíclicas (Harvard Committee for Economic Research). Mas foi somente depois da grande crise econômica de 1929-1933 que a teoria econômica oficial fez a virada que passou a ser conhecida como a “revolução keynesiana”.

= = =
MANDEL, E. Tratado de economia marxista. 1962. Tradução de Rodrigo Silva do Ó.
= = =

domingo, 4 de janeiro de 2015

Práxis e ciência na ontologia do ser social de Lukács: uma crítica ao neopositivismo


Resumo: O reconhecimento de Lukács do primado do pensamento ontológico sobre aquele reflexivo-gnosiológico servirá de fundamento para a sua crítica ao neopositivismo que apresentaremos neste trabalho. Queremos mais uma vez salientar que essa crítica possui motivações essencialmente ético-políticas. Tal reconhecimento é algo fundamental na luta contra a manipulação generalizada que, para Lukács, caracterizava a situação mundial do pós-guerra.

Palavras-chave: nominalismo, neopositivismo, ontologia, ciência.

= = =
arquivo em PDF
= = =
GOMES. Marcelo Victor de Souza. Práxis e ciência na ontologia do ser social de Lukács: uma crítica ao neopositivismo. Monografia de bacharelado de Filosofia. Orientador: Alexandre de Moura Barbosa. Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza – CE, 2008. (Monografia).
= = =

sábado, 3 de janeiro de 2015

A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim


 
por José Arthur Giannotti
 
I – A implantação da Sociologia como Ciência positiva não se faz sem pressupostos. Seria ingênuo pensar o sociólogo como garimpeiro das coisas, que se debruça sobre elas distinguindo com argúcia o ouro do cascalho. Não seria ao menos necessário estabelecer o sistema de projeção e o conjunto dos critérios? Desde logo percebemos que Durkheim se situa no espaço desenhado pela imbricação do positivismo e do kantismo. De Comte, se não adota a concepção de história e do progresso, nos termos formulados pelo filósofo, por certo não deixa de tomar a doutrina da ciência e do fenômeno em geral; de Kant aprende a situar o fenômeno social no obscuro plano da moralidade. É nosso intento traçar o mapa dessas pressuposições e sobretudo salientar como não se colocam de modo inerte num campo pré-científico, que pudesse ser isolado do corpo das formulações da Ciência, mas atuam insidiosa e insistentemente em todos os momentos de sua Sociologia, constituindo os bastidores em relação aos quais se tece a trama do seu discurso.

II – A prioridade concedida ao problema da definição inicial, cujo gesto circunscreve o campo onde deve exercer-se a investigação científica, já indica uma noção muito definida de experiência. Esta não se faz desprovida de um quadro de referências preciso, mas amparada por normas capazes de separar, de um lado os fenômenos que devem cair sob o olhar do cientista, de outro, aqueles que necessariamente fogem a ele.

“Nunca tomar como objeto de investigação a não ser um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes são comuns a incluir na mesma investigação todos aqueles que respondam essa definição”[1]. Essa regra, contrapartida positiva da célebre regra que postula a consideração dos fenômenos sociais como coisas, determina a primeira condição de observabilidade. Diante da multiplicidade caótica dos fenômenos urge possuir um critério que os agrupe num mesmo conjunto, que distinga um campo específico da realidade. Isto evidentemente para não cair no erro grosseiro da confusão de gêneros. Devemos, além disso, desconfiar das classificações por assim dizer naturais, daquelas implícitas das denotações das palavras, feitas pelo senso comum para o uso cotidiano. Se a explicação consiste na comparação, como diz a primeira página do Suicídio, é preciso estar seguro de que os fatos a serem comparados sejam homogêneos e pertençam à mesma ordem da realidade. Ora, a necessidade da comparação só se faz sentir se previamente o esforço do cientista for dirigido para o estabelecimento de leis invariantes, isto é, se a proposição científica brotar da indução que, considerando cada fato duma perspectiva previamente determinada, é capaz de separar o aspecto comum a fim de formulá-lo numa lei geral. Este modo de fazer ciência supõe, primeiramente, um distanciamento do sujeito em relação ao objeto e ainda uma separação entre eles de tal ordem que torna impossível a profunda imbricação de ambos. Pouco importa que possa reconhecer que o sujeito está para o objeto e vice-versa, porquanto desde logo o cientista os separa em unidades autônomas, uma capaz de representar a outra, de sorte que a representante, seja ela sujeito individual ou social, liga-se com a representada na base duma peculiar faculdade de espelhamento. Se na verdade certos textos de Durkheim sugerem sua adesão à teoria, desenvolvida por J. S. Mill, da constituição do sujeito e do objeto a partir de um estoque neutro de representações comuns, a solidariedade da origem não impede o funcionamento diferente. Para esta teoria da ciência, o sujeito sobrevoa a realidade, retrata-a de seu ponto de vista. No máximo é possível admitir perturbações passageiras causadas pela fraqueza do indivíduo e de sua ótica imperfeita. De direito, os fatos sociais devem ser tratados como coisas, isto é, como objetos que se dão indiferentemente ao olhar neutro e cauteloso do sujeito.

Constitui a primeira tarefa desse sujeito ideal estabelecer uma classe de equivalência: escolhida uma propriedade estratégica, agrupam-se os fenômenos semelhantes e descartam-se os dessemelhantes. A semelhança, relação reflexiva e simétrica, ganha, graças à predeterminação do aspecto, a transitividade que lhe é necessária par a selecionar no universo o conjunto dos mesmos indivíduos. A investigação inicia-se, desse modo, pela escolha dum critério capaz de reunir o conjunto dos fenômenos a serem estudados. Mas, sob a aparência desse procedimento ingênuo e indispensável, esconde-se uma tomada de posição de enormes consequências para a compreensão do que venha a ser a própria coisa. A definição não é apenas verbal, possuindo um peso ontológico determinado. É bem verdade que Durkheim insiste no caráter inicial dessa definição como em sua distância em relação a uma definição da essência.

Ao definir a religião como “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que unem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ela aderem[2], não se propõe evidentemente estipular a essência da religião, pois isto tornaria inútil toda e qualquer investigação, mas apenas uma via de acesso para ela[3]. O peso ontológico da definição inicial não se situa, pois, em seu conteúdo formulado, naquilo que previamente diz a respeito da religião, mas na maneira pela qual agrupa e isola o fenômeno, excluindo de seu campo, por exemplo, todos os fenômenos messiânicos que não se fixam numa igreja. Apesar de sua fórmula proposicional sem variáveis, a definição opera como uma relação de equivalência: X é igual a Y se possuir os caracteres estipulados.

O que importa uma definição desse tipo? Antes de tudo, na pressuposição de que o fato, o fenômeno, esteja individualmente dado na experiência do sujeito, por mais complexo que esta seja. Estabelecido o critério que o separe da multiplicidade caótica das coisas, o fato em questão é experimentado como uma unidade valendo de per si. Isto quer dizer que a definição serve apenas de auxiliar transparente, a fim de que o sujeito investigador possa debruçar-se sobre o fato constituído como um conjunto de elementos semelhantes. No primeiro instante o fenômeno aparece de um só golpe como um conjunto isolado de seu complementar onde passam a ser incluídos todos os outros fenômenos que não caem na definição. O que vale neste nível para a semelhança dos fenômenos vale para a semelhança das ideias e convém citar um texto de Durkheim referente a essa última: “Duas ideias são propriamente distintas graças aos pontos em que se sobrepõem. Os elementos que se diz serem comuns a uma e a outra estão separadamente numa e noutra; não os confundimos separando-os. É a relação sui-generis que se estabelece entre elas, a combinação especial que formam em virtude dessa semelhança, os caracteres particulares dessa combinação que nos dão a impressão de similitude. Combinação, entretanto, supõe pluralidade”[4]. A posição é clara, cada suicídio, por exemplo, constitui um acontecimento particular e insubstituível; a comparação feita pelo cientista não destrói sua singularidade, apenas o integra numa classe de semelhança, na medida em que vê em todas essas mortes traços comuns. Está longe do ato de comparar a possibilidade de amalgamar indivíduos ou de criar outras substâncias, sua função reside exclusivamente na circunscrição duma série de fenômenos.

Qual é porém o critério que rege a comparação? É óbvio que qualquer propriedade das coisas pode servir de base duma classe de equivalência, de sorte que todo problem reside na sua escolha. O cientista porém não trabalha a partir do nada como uma divindade criadora, o fato de herdar uma linguagem já o encaminha para uma classificação das coisas. A despeito da desconfiança que de ve ter em relação à linguagem, na prática, sua definição inicial toma como ponto de partida o conceito e a palavra vulgares[5]; aqui todo seu esforço visa eliminar as ambiguidades. Isto se faz não tanto pela inércia do pensamento científico, mas fundamentalmente porque seria descabido um traço permanente qualquer não possuir uma razão. “A menos que o princípio de causalidade seja uma palavra vazia, quando caracteres determinados se encontrem identicamente e sem exceção em todos os fenômenos duma certa ordem, podemos estar seguros de que, duma maneira estrita, respeitam à natureza desses últimos, sendo-lhes solidários”[6]. É indiferente desse modo a escolha da primeira propriedade definidora, porquanto todas as propriedades permanentes são solidárias entre si e, o que é mais importante, reportam-se a um fundo comum, responsável pela igualdade observada. Esta surge assim como produto, cuja emergência se faz a partir dum impulso mais profundo, constituindo-se ela própria num efeito comum que manifesta uma causa também comum. Por isso é que a sociologia não se resume numa taxinomia que se contentasse em agrupar os fenômenos em classes de equivalência. Cumprida essa primeira tarefa, começa propriamente o trabalho do cientista, quando este toma a semelhança como índice ou sintoma duma causa oculta, do fator latente responsável pela reiteração do mesmo fenômeno.

[Continua. Ensaio completo no PDF]
= = =
Notas:
[1] Les règles de la méthode sociologique (R), Paris, PUF, 1950, p. 35.
[2] Les formes élementaires de la vie religieuse (F), 4. ed. Paris, PUF, 1960, p. 65.
[3] R. p. 42.
[4] Sociologie et philosophie (So Ph), Paris, PUF, 1950, p. 19.
[5] R., p. 37, nota.
[6] R., p. 42.
[7] Le suicide (S), Paris, PUF, s.d., p. 5.
[8] S, p. 8.
[9] S. p. 143.
[10] Paul Lazarsfeld, Philosophie des sciences sociales, Gallimard, p. 267.
= = =
GIANNOTTI, J. A. “A sociedade como técnica da razão: um ensaio sobre Durkheim”. In: Estudos Cebrap, São Paulo, n. 1, p. 48-98, 1971.
= = =

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O estruturalismo e a miséria da razão


Uma análise humanista da nossa época coloca a nu a mutilação da práxis pela manipulação, a necessária irracionalidade de uma vida voltada para o consumo supérfluo e humanamente intenso. Uma visão concretamente historicista revela as possibilidades de mudança e transformação latentes, embora dissimuladas pelas aparências fetichizadas que se pretendem imutáveis. A dialética finalmente, denunciaria a contradição entre um mundo aparentemente “organizado” (com meios de uma razão burocrática) e a irracionalidade objetiva do conjunto da sociedade, superando assim os limites de uma razão que se concentra nas regras, nos meios, enquanto abandona como incognoscível o conteúdo e a finalidade da vida e da sociedade. (C. N. Coutinho)
= = =
= = =
COUTINHO, C. N. O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.São Paulo: Expressão Popular, 2010.
= = =

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Breve descrição do racionalismo formal

= = = 
Último tratamento: 27/02/2024.
= = =
 
Características
 
O termo racionalismo formal designa uma tradição filosófica bem heterogênea e que é parte do processo de decadência ideológica burguesa. Em sentido estrito, o racionalismo formal se caracteriza por ser um racionalismo agnóstico, isto é, uma abordagem gnosiológica parcial (rejeitando a ontologia da natureza) ou total (rejeitando a ontologia da natureza e da sociedade). Tal corrente tem o seu prelúdio no empirismo extremo de Berkeley e Hume no século 18, mas a sua afirmação enquanto abordagem consolidada ocorre na primeira metade do século 19 com o positivismo e o neokantismo. Esse intelectualismo reduz o conceito de razão (Vernunft) ao entendimento (Verstand), porém, na verdade, o entendimento é somente a primeira etapa do processo dialético da razão. Desse modo, há um conceito empobrecido de racionalidade.

Em sentido amplo, essa racionalidade formal também está presente de forma residual em uma abordagem ontológica integral do período contemporâneo: o materialismo metafísico, no sentido de uma ontologia da natureza. Como a burguesia se torna contrarrevolucionária no plano histórico-universal no ano de 1848 (Primavera dos Povos), consequentemente o seu padrão filosófico-científico se mostra empobrecido e insuficiente para captar a totalidade; época em que a razão dialética, enquanto método autoconsciente, revela a limitação dessa visão de mundo. A miséria da razão ignora ou simplesmente não aceita o padrão ontológico-dialético, que tem a sua antessala com Hegel e a sua consolidação com Marx. É, portanto, uma razão metafísica (antidialética) refém, em algum nível, da rigidez binária que o entendimento opera num primeiro nível da racionalidade.

As bandeiras da visão politicista do ser humano e da fetichização da democracia formal (liberal), por exemplo, também se revelam expressões do racionalismo formal no momento em que essa racionalidade defasada precisa justificar a irracionalidade metabólica do sociedade capitalista consolidada e/ou a conciliação de classes. Dessa forma, os racionalistas formais, insistindo nesse terceiro padrão ontológico da história ocidental, o moderno-liberal — os outros dois padrões teórico-metafísicos são o antigo e o medieval —, fazem uso de lentes racionalistas ultrapassadas, cuja a validade para a ampliação da massa crítica vence no início do século 19. O racionalismo formal é, em suma, tanto a redução agnóstica da filosofia burguesa clássica como, também, a sobrevida materialista dessa mesma filosofia, agora vista em suas insuficiências lógico-formais, científicas e humanistas.
 
Entre as características marcantes que floresceram nessa tradição, se encontram:
 
* cruzada antidialética: falar na realidade como essencialmente contraditória é uma blasfêmia para a maioria dos racionalistas, pois eles enxergam o mundo tendo aquelas regrinhas aristotélicas da lógica formal como norte petrificado. Ou seja, as ontologias antidialéticas refletem o mundo descartando o tertium datur (terceiro incluído). O hegelianismo, como se sabe, é uma exceção incompleta, pois todo o idealismo é, em suas bases, antidialético.

* agnosticismo: é a abordagem gnosiológica (abordagem antiontológica) de positivistas e neokantianos, recusando o discurso diretamente ontológico, pois consideram que toda ontologia é metafísica. A grande ironia é que, como a ontologia significa o conhecimento mais básico de todos, mesmo na postura metodológica de “abstenção ontológica”, toda teoria apresenta pressupostos ontológicos, ainda que de maneira implícita. A posição agnóstica é, em suma, uma ontologia metafísica camuflada.

* objetivismo: herança do empirismo e significa uma pseudo-objetividade decorrente do fetiche da empiria, da supervalorização do experimento científico ou, ainda, de um declarado anti-humanismo metodológico.

* fetiche da analítica: herança do racionalismo clássico e tende a gerar a matematização ou a logicização da realidade objetiva, isto é, o matematismo e o logicismo.
 
* cientificismo: o fetiche da ciência é a fé numa suposta “neutralidade científica”, que seria independente das classes sociais, ideologias e indivíduos. É a principal bandeira de uma parte dos racionalistas formais.
 
* fetiche da técnica: a ideologia que coloca a técnica num pedestal neutro, como se ela, por si mesma, estivesse nos conduzindo ao melhor dos mundos e, assim, a tecnologia/coisa/trabalho morto, seria o motor do desenvolvimento histórico e não a atividade fundante e as relações sociais. 

* politicismo: o fetiche da política institucional (republicanismo e democratismo) — ascendente no período de Maquiavel a Hegel — torna-se o “coração de um mundo sem coração” para os democratas decadentes. Uma disciplina acadêmica própria para tratar a política, a politologia, surge como necessidade para o status quo afirmar (semi)cientificamente a abordagem liberal, que é essencialmente politicista. O principal credo dessa fé é a “neutralidade do estado” e a democracia liberal é tratada apenas como “a” democracia. 

* humanismo abstrato: o humanismo liberal — fundamentado na concepção teórico-metodológica do individualismo —, tão vigoroso na fase ascendente da burguesia, mostra-se parcial após a emancipação política e o esgotamento do caráter revolucionário da ideologia dessa classe; resta a fé no auto-aperfeiçoamento da democracia burguesa para gerar a expansão dos direitos civis e humanos. Esse humanismo político-jurídico e, portanto, formal, é o fetiche da cidadania.
 
* naturalismo: o humanismo abstrato dos liberais tem como base um naturalismo fraco. No entanto, na fase de decadência ideológica, há uma tendência de maior visibilidade do naturalismo forte. Esse naturalismo metodológico significa olhar o ser social com as lentes da física (fisicismo) ou da biologia (biologicismo).

* neoiluminismo: o fetiche da educação/ilustração é o slogan unilateral de que “a educação muda o mundo e a saída é investirmos bastante no sistema de educação”. É como se os aspectos desumanizantes do mundo moderno fossem causados por entulhos arcaicos e obscurantistas e, com efeito, pudessem ser resolvidos via esclarecimento. Isso é parte da ode à “inclusão social” que, aliás, esconde o caráter burguês da cidadania moderna.

* apologia direta do capital: no mais das vezes, os racionalistas formais são os técnicos e defensores diretos do mundo capitalista, da lógica do mercado, da democracia liberal e/ou da conciliação de classes. Mundo que, geralmente, eles enxergam apenas como “moderno-científico-empreendedor-democrático-pluralista-laico-de-direitos”.

Correntes e teóricos

No âmbito ontológico-gnosiológico, as vertentes dessa tradição teórica são:
  • Empirismo extremo
  • Positivismo sociológico
  • Neokantismo
  • Empiriocriticismo
  • Pragmatismo
  • Fenomenologia transcendental
  • Empirismo lógico
  • Behaviorismo
  • Estruturalismo
  • Filosofia analítica
  • Sociobiologia
De maneira residual, a miséria da razão se manifesta em uma ontologia da natureza no período contemporâneo:
  • Materialismo metafísico
No âmbito moral:
  • Utilitarismo
  • Deontologia moderna
No âmbito estético:
  • Naturalismo (artístico)
No âmbito econômico:
  • Liberalismo econômico
  • Keynesianismo
No âmbito político:
  • Liberalismo social (é o liberalismo progressista e reformista que surge no século 19, incluindo o feminismo liberal e similares. Na sua versão clássica se inclina ao intervencionismo econômico; numa versão mais recente se apresentou como “neoliberalismo progressista”.)
  • Social-democracia (em seu sentido bernsteniano, essa corrente politicista também é chamada de socialismo democrático, pois fetichiza a democracia liberal como via gradual para uma sociedade socialista.)
Uma grande tarefa da filosofia emancipatória (materialismo dialético) é combater essa miséria da razão e peneirar a obra de grandes pensadores ligados a este campo, para ver se há algum “trigo” a acrescentar à teoria social, livre do “joio” do racionalismo decadente.

Alguns dos herdeiros ilegítimos do Iluminismo:

Comte, B. Bauer, L. Büchner, L. A. Lange, Malinowski, Durkheim, Spencer, Dühring, Jevons, Walras, T. H. Green, Mach, Avenarius, Kelsen, Bogdanov, Bernstein, Frege, W. James, Peirce, Husserl, Radcliffe-Brown, Skinner, Russell, Saussure, Keynes, Hayek, Mises, Abbagnano, Wittgenstein, Althusser, Bobbio, Piaget, N. Hartmann, Carnap, Parsons, Quine, Lévi-Strauss, Wertheimer, Cassirer, G. A. Cohen, Bertalanffy, Merquior, Habermas, M. Bunge, Kripke et alii.

Além de conteúdos, essa tradição fundamenta novas formas de expressão da produção acadêmica. A especialização é um processo inevitável na produção de conhecimento, mas o que caracteriza o fatiamento positivista da ciência social é a fragmentação que não apreende a articulação coerente com a totalidade do ser social (e deste com o ser natural). A decadência na divisão do trabalho intelectual gera um conjunto de semiciências:

* economia vulgar (economics), sociologia, politologia, antropologia, historiografia, ciência jurídica (direito moderno) e psicologia unilateral.

No âmbito estético, a forma contemporânea de produção e distribuição da arte gera uma padronização e massificação que tende a rebaixar os conteúdos e mercantilizar intensamente as expressões dessa esfera. É a chamada indústria cultural.
 
Relações com outras ideologias

1ª observação: o herdeiro legítimo do Iluminismo é o materialismo dialético. É justamente esse novo padrão filosófico-científico que supera (aufheben) o padrão moderno-burguês (que, de maneira ascendente, vai de Maquiavel até Hegel, com o epílogo em Feuerbach).
 
2ª observação: No final do século 18, o liberalismo clássico (revolucionário) começa a se desdobrar como liberalismo conservador. No século seguinte,  desenvolve-se uma tendência política distinta, de caráter democrata e reformista: o social-liberalismo. Paralelo à tradição liberal, o socialismo moderno, na sua vertente científica, sindicalista, parlamentarista e sem inclinação romântica, também se revela um descendente direto do Iluminismo. Porém, o padrão político superior pode retroceder, em algum nível, ao padrão racionalista ultrapassado da ideologia liberal: no período da Segunda Internacional (1889-1916), a social-democracia, depois de espremer e expelir a ala revolucionária (comunista) de suas fileiras, torna-se sinônimo de reformismo politicista no movimento socialista.
 
No âmbito filosófico (e metodológico), a tendência à formatação da ciência social em semiciências (sociologia, antropologia, politologia, historiografia, economics etc.) e a compreensão inadequada da dialética materialista contribuíram para que a tradição marxista desenvolvesse uma coloração neoiluminista.  Surge o protomarxismo filosófico; no caso racionalista, um marxismo formal. Por outro lado, um social-democrata pode ser, filosoficamente, um marxista heterodoxo (o protomarxista E. Bernstein) ou um marxista ortodoxo (C. N. Coutinho tardio), pois o revisionismo oportunista só é uma condição necessária no pensamento político desses socialistas que fetichizam a democracia liberal. Da mesma forma, pode haver um protomarxista racionalista que é, politicamente, um leninista (L. Althusser é um exemplo nesse sentido). Quanto à questão do uso das semiciências pelo pesquisador marxista, também é preciso ver como estão sendo usadas em cada caso. Se há consciência dessa fragmentação e, com isso, o objeto de estudo está fundamentado na categoria da totalidade (dialético-materialista), pode conseguir resultados para além da miopia que o academicismo coloca para a sua disciplina.

3ª observação: a decadência ideológica burguesa não implica somente no racionalismo formal: há, junto a ele, outra tradição filosófica decadente. O irracionalismo moderno significa a destruição da razão (como bem diz o título de um livro de G. Lukács) e filia pensadores como Burke, Nietzsche, Heidegger e Deleuze. No âmbito político e econômico, é possível ver uma combinação que gera um romantismo liberal com as variantes de conservadorismo liberalfascismo liberal e anarcocapitalismo.
 
Não há nenhuma ideologia “inocente”, como disse Lukács. Nesse sentido, temos que analisar a arte e a teoria (filosofia e ciências), principalmente, a teoria social (ciências humanas), em si, em sua coerência e função histórica, independente das (boas) intenções de seus porta-vozes.

= = =